Cinema: um salto vertiginoso no horror da guerra

Em Redacted (2007), Brian De Palma retrata crime real das tropas dos EUA no Iraque. Mas, em vez de elegante ficção, cineasta aposta no estilhaçamento do real — e na estética da precariedade como potência narrativa na era do Youtube

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Vencedor do Urso de Prata de direção em Berlim, eleito pela Cahiers du cinéma o melhor filme de 2008, Redacted, de Brian De Palma, jamais lançado comercialmente no Brasil (só passou no Festival do Rio, com o título Guerra sem cortes), chega agora ao streaming, na plataforma Mubi. Valeu a espera: é um trabalho extraordinário.

O cerne dramático é inspirado num fato real: durante a ocupação do Iraque por tropas norte-americanas, um grupo de soldados estupra uma garota de 15 anos e mata sua família (incluindo a própria adolescente).

Mas, diferentemente dos filmes de Kathryn Bigelow sobre temas análogos (Guerra ao terror, A hora mais escura), Redacted não oferece uma reconstituição ficcional dos eventos para criar a ilusão de uma realidade dada, unívoca e inequívoca. Em vez disso, embaralha visões parciais e fragmentadas, apresentando um “real” muito mais problemático, instável, cheio de arestas. Em vez de catarse, entrega o incômodo, a perplexidade. Cabe ao espectador lidar com isso depois.

Precariedade construída

Quem se habituou à exuberância, precisão e elegância (mesmo no coração da violência e do horror) do cinema de De Palma há de estranhar a colagem de imagens apressadas, enquadramentos toscos, iluminação precária, “ruídos” visuais e sonoros e texturas díspares que compõem Redacted. O que se buscou ali foi simular, como se fossem registros documentais, uma série de fontes: um “diário em imagens” produzido por um soldado, cenas de telejornal, um documentário francês, vídeos produzidos pela Al-Qaeda, etc.

Esse método de construção abole virtualmente toda narração “objetiva”, em terceira pessoa. Tudo é mediado por algum olhar interessado, parcial nos dois sentidos do termo, isto é, incompleto e tendencioso. O espectador é instado a preencher as lacunas, o “fora do quadro”, e a confrontar os diferentes olhares.

Em decorrência disso, a densidade dramática vai se construindo não por meio dos artifícios narrativos habituais, mas mediante uma hábil orquestração dos fragmentos, além da utilização sagaz da trilha musical (Handel, Puccini), terreno em que o melômano De Palma sempre foi um mestre. O ápice emocional se dá sobre as únicas imagens de fato documentais (que não vou dizer quais são), encharcadas com a música arrebatadora do terceiro ato da Tosca.

À célebre formulação de Godard, segundo a qual “o cinema é a verdade a 24 quadros por segundo”, De Palma costuma responder com uma boutade: “Não, o cinema é a mentira a 24 quadros por segundo”. E ele próprio sempre foi um grande prestidigitador, que brincou com o estatuto da imagem e problematizou a realidade do que julgamos ver e ouvir, em filmes como Dublê de corpo, Vestida para matar e Um tiro na noite.

Impotência do discurso

Em Redacted, é como se De Palma levasse esse jogo a um outro patamar, fazendo um filme que é uma reflexão séria sobre o seu ofício (narrar com imagens e sons) e a denúncia de uma realidade que não cabe em nenhum discurso audiovisual: o horror da guerra e da desumanização que ela produz em algozes e vítimas. Uma vez na vida, o slogan publicitário não mente: “Numa guerra, a primeira baixa é a verdade”.

É, de certo modo, um filme que se (re)volta contra sua própria impotência, sua própria impossibilidade. Daí a angústia que produz. Daí também, talvez, sua dificuldade em ser comercializado e consumido. Pecado mortal para uma indústria cada vez mais poderosa materialmente e apequenada moralmente.

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