O que foi destaque na Assembleia Mundial da Saúde

Pela primeira vez em 70 anos, o principal fórum de saúde global aconteceu por vídeoconferência. A distância não amenizou em nada os embates que apontam para um preocupante enfraquecimento do papel da OMS. Nossos analistas contam o que aconteceu, tim-tim por tim-tim

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Por Matheus Z. Falcão e Clara Alves Silva

A semana começou intensa na agenda global. Nos dias 18 e 19, a Assembleia Mundial da Saúde, cúpula máxima da OMS da qual participam todos os Estados-membros, realizou sua 73ª sessão, pela primeira vez na história de forma virtual e quase que integralmente dedicada ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.

Os obstáculos impostos pelo ambiente de videoconferência foram diversos: conexões de internet ruins, dispositivos de áudio falhando, delegações fazendo suas declarações em língua não traduzida pela ONU e a perda das interações que apenas o ambiente presencial propicia. Entretanto, nenhum dos problemas chega a fazer sombra aos desafios que se impõem à Organização Mundial da Saúde, seja na resposta à covid-19, seja em relação ao seu próprio futuro.

Resolução final e a questão de acesso a vacinas e tratamentos

A resolução final da Assembleia, inicialmente proposta pela União Europeia, buscava enfrentar os pontos principais associados à crise global. Já durante as negociações sobre a resolução, antes do evento, a proposta de texto foi vista com certo ceticismo por organizações da sociedade civil por ser insuficiente quanto ao acesso a medicamentos.

Talvez um dos pontos mais positivos da medida adotada seja o reconhecimento de vacinas para a covid-19 como bem público global, o que cumpriria a função essencial de impedir que empresas farmacêuticas obtenham o monopólio da produção graças às patentes.

Por outro lado, faltou uma medida similar para medicamentos e outras tecnologias de saúde associadas à covid-19. Sobre isso, a delegação da Costa Rica levou uma proposta exemplar: a criação de uma ferramenta global de compartilhamento de tecnologias, que impediria que aquelas desenvolvidas com recursos públicos fossem patenteadas. Infelizmente não foi aprovada.

Uma decisão nesse sentido seria especialmente importante para o Brasil. Um dos medicamentos potenciais no combate à covid-19, o Remdesevir, está sob proteção de patente em favor da empresa norte-americana Gilead, que já anunciou um programa de acesso baseado em licenças voluntárias para uma lista de países de média e alta renda, que exclui o Brasil.

O Remdesevir, assim como vários outros medicamentos, incluindo até a Cloroquina defendida por Trump e Bolsonaro, compõem um esforço coordenado pela OMS (Projeto Solidarity) de realização de testes clínicos em busca do tratamento da covid. Em torno de 45 países contribuem, dentre eles, o Brasil, que realiza os testes sob coordenação da Fiocruz em 12 estados.

Mais uma vez, fica evidente que um novo tratamento será oriundo de investimento público, o que, somado à gravidade e à dimensão da pandemia, torna injustificada qualquer medida que garanta o monopólio de empresas farmacêuticas na produção. Seria, portanto, excelente se a proposta costariquenha tivesse sido aprovada.

Para entender melhor o embate, é preciso ter em mente que patentes são medidas concedidas pelo Estado a instituições e empresas que desenvolveram uma nova tecnologia. Em tese, como forma de estimular a inovação. O monopólio concedido pela patente permite a prática de elevados preços para bens de saúde essenciais, como uma vacina ou medicamento.

Países como EUA, Japão e Suíça tradicionalmente defendem mais proteção de patentes, em acordo com a indústria farmacêutica multinacional, enquanto países do Sul global sustentam a utilização das chamadas flexibilidades do Acordo TRIPS, tratado que protege os direitos de propriedade intelectual internacionalmente.

A principal flexibilidade é a licença compulsória, quando um país suspende direitos de patentes por razões de interesse público. A resolução da Costa Rica trabalhava desde o início com o estímulo a licenças voluntárias, quando a detentora da patente autoriza por contra própria a produção para algumas outras empresas, o que passa pela negociação de um contrato com a empresa detentora da patente, normalmente corporações transnacionais com influência política e econômica muito superior a vários países do mundo.

A despeito das limitações da resolução aprovada, o pequeno avanço já foi suficiente para que a delegação dos EUA retirasse seu apoio ao documento, especificamente nos pontos que tocam em questões de acesso a medicamentos e uso das flexibilidades do acordo TRIPS e em direitos sexuais e reprodutivos.

A ressalva reitera o discurso conservador e pró-indústria farmacêutica do país, que nas assembleias costuma se alinhar com os países europeus, mais ricos, em pautas econômicas e com os países do Oriente Médio mais conservadores, como a Arábia Saudita, em pautas que envolvem direitos sexuais e reprodutivos.

Uma nova era bipolar?

O destaque maior da Assembleia, no entanto, talvez não seja essa resolução, mas sim o ambiente de tensão em que ocorreu, com o acirramento da polarização entre China e Estados Unidos e o enfraquecimento da OMS, com redução de recursos e de competências.

A polarização global é evidente nos discursos de Donald Trump contra o governo chinês. A Assembleia viu uma discussão particularmente acalorada, com direito a vários pedidos de resposta em torno da participação de Taiwan como membro observador. Proposta defendida pelos EUA e rechaçada pela China.

O maior embate, no entanto, rondou a acusação estadunidense de que a China teria ocultado informações relevantes no início da epidemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 e a acusação à OMS de ser conivente com o país asiático.

O discurso inicial da delegação norte-americana criticou “um país” que teria escondido dados da OMS, sem citar seu nome e frisou que a Organização necessitava de uma profunda reestruturação, destoando inclusive dos países europeus, que teceram elogios ao diretor-geral do organismo, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

OMS na mira

Os discursos elogiosos à Organização, bem como a reafirmação de sua importância na resposta mundial à emergência sanitária, escondem a profunda ameaça que a OMS enfrenta para se manter a máxima autoridade em Saúde Global. Ataques à Organização, como os proferidos por Trump, assim como discursos de descrédito e deslegitimação são recorrentes. O fenômeno não é novo, mas se acirra com a covid-19 e tem pelo menos duas faces: financiamento e governança.

Do lado do financiamento, a OMS tem 80% dos seus recursos vindos de doações voluntárias, muitas vezes carimbadas para fins específicos definidos pelo doador. Os principais doadores são fundações filantrópicas privadas, como a Fundação Bill e Melinda Gates, mas também governos, como o dos Estados Unidos.

O já combalido caixa da OMS sofreu um novo golpe quando, no meio da Assembleia, o presidente dos EUA publicou no Twitter uma carta dirigida a Tedros sustentando que cortaria todos os recursos e reavaliaria a própria associação do país à Organização caso não veja mudanças substanciais nos próximos 30 dias.

A despeito da ameaça, a tônica anti-OMS pareceu restrita à delegação norte-americana. Outra iniciativa, no entanto, defendida por vários países europeus e mencionada inclusive pelo presidente francês Emmanuel Macron, em vídeo enviado para a abertura do evento, mina a Organização em outra face: a governança global em saúde.

A Assembleia é pensada para ser o fórum máximo de discussões em Saúde Global e, ao longo de décadas, a OMS construiu sua legitimidade enquanto autoridade sanitária mundial – expressa, por exemplo, na competência da Organização para declarar emergências internacionais de saúde pública e pandemias, como a atual. Seu sistema de um voto para cada país dá algum sentido democrático ao seu funcionamento.

No entanto, várias são as iniciativas que tentam suplantar essa posição, colocando em xeque o papel da Organização. Em geral, são regidas com menos transparência e maior presença de interesses privados. A Aliança Global para Vacinas e Imunizações (GAVI) é um exemplo de parceria pública-privada criada nesse sentido. E a correspondente para a covid-19 é o chamado acelerador ACT (Access to Covid Tools Accelerator).

Essa iniciativa, que marcou o discurso de países como França e Itália, é uma parceria internacional entre a indústria farmacêutica, Fundação Gates, GAVI, o fundo inglês Wellcome Trust e a própria OMS para promoção do acesso a novas tecnologias, como diagnósticos, medicamentos e vacinas.

Contudo, por mais que possa parecer positivo e tenha bons resultados, o acelerador ACT mina a participação da OMS na governança global em saúde e garante mais espaço para a indústria. Além de retirar a participação de diversos países de sua decisão, a relevância dada a projetos pode dificultar o uso de medidas para acesso a tecnologias de saúde, como o uso das flexibilidades do acordo TRIPS, em especial o licenciamento compulsório.

E o Brasil?

A tímida participação do Brasil na Assembleia se resumiu a uma intervenção do ministro interino, general Eduardo Pazuello, que destacou a resposta nacional à pandemia, falando sobre coordenação do governo federal com estados e municípios e também sobre uma “reavaliação diária de evidências científicas”. O discurso, obviamente, pouco reflete a realidade nacional, em que o governo federal boicota os outros entes federativos, ignora evidências científicas e demonstra completa incapacidade de gestão. Talvez a única contribuição brasileira ao mundo dada pela União nessa pandemia venha da Fiocruz e das universidades federais, que participam do Projeto Solidarity.

O mais decepcionante, contudo, é ver o país que já foi uma potência diplomática na área da saúde, exercendo liderança especialmente na discussão de acesso a medicamentos em defesa dos países do Sul global, minguar a ponto de tornar-se o exemplo do que não fazer na maior crise de saúde dos últimos tempos.

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