Um balanço da Saúde sob Bolsonaro

Investidas contra o Mais Médicos. Desastre no meio ambiente. Ameaças graves para o já frágil financiamento do SUS. E, em meio a tudo isso, declarações disparatadas como as de Damares. Polêmica e muito pouco dinheiro marcaram o ano

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres, originalmente publicado em Das Lateinamerika-Magazin

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Jair Bolsonaro começou a mudar a saúde brasileira mesmo antes de assumir a Presidência do país. Tudo se iniciou com o desmantelamento do programa Mais Médicos. Durante a campanha eleitoral em 2018, mas também ao longo de sua atuação como deputado federal, ele usou muitas vezes o acordo celebrado pelo governo de Dilma Rousseff (do Partido dos Trabalhadores, o PT) com Cuba – braço fundamental do programa –, como arsenal para o seu discurso paranoico. Os profissionais do país caribenho seriam, nas suas palavras, agentes do governo estrangeiro prontos a implantar o socialismo no Brasil.

O resultado das urnas em outubro revelou que 55% dos votos válidos foram para o político de extrema direita, de modo que a questão deixou de ser se, mas quando a parceria iria acabar. O que não se esperava era que isso já acontecesse mais de um mês antes da posse do novo presidente, e por iniciativa do governo cubano que, em nota, frisou que o povo brasileiro saberia a quem responsabilizar pela decisão. Com um histórico de parcerias com dezenas de países ao longo de décadas, Cuba era a maior responsável pelo provimento de profissionais do programa. O Mais Médicos tinha a aprovação de 94% dos usuários e, graças à iniciativa, 700 municípios tiveram um médico pela primeira vez na história.

A lacuna afetou particularmente indígenas e povos tradicionais, mas logo se perceberia que a súbita falta de médicos não era o único problema dessas populações: o governo inaugurou uma era de ameaças constantes a seus territórios e direitos. O presidente afirma com frequência a intenção de mudar a Constituição para abrir as terras indígenas ao agronegócio e à mineração. Foram noticiadas no mundo inteiro suas tentativas de minimizar as evidências do aumento exponencial no desmatamento da Amazônia – grande alvo do interesse de fazendeiros e garimpeiros –, o que resultou inclusive na exoneração do então presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão.

Ainda nas eleições, os congressistas integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária declararam apoio a Jair Bolsonaro. Desse grupo, que representa os interesses de associações e empresas ligadas ao agronegócio, saiu o nome da ministra da Agricultura no novo governo: a ex-presidente da Frente, Tereza Cristina. Financiada por empresas produtoras de agrotóxicos, ela é conhecida pela sugestiva alcunha de “musa do Veneno”.

Embora a força política desse setor tenha sido onipresente nas últimas décadas, o caminho nunca esteve tão livre para ele. Era de se esperar, portanto, um grande aumento na aprovação e no uso de agrotóxicos. Mesmo assim, é espantosa a velocidade com que as mudanças têm acontecido, e em apenas dez meses o governo anunciou o registro de 382 desses produtos, ou mais de um por dia. É o número mais alto desde que os registros começaram a ser contabilizados, em 2005. Bolsonaro também extinguiu, logo no primeiro dia de mandato, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) – órgão que teve fundamental importância para a criação de programas de combate à fome e de fomento à agricultura familiar e orgânica nos governos petistas.

O ministro escolhido para a Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também tem vínculos estreitos com os chamados ruralistas. Em 2015, quando era deputado federal, presenciou um conflito de fazendeiros contra índios da etnia Guarani Kaiowá que levou ao assassinato do indígena Simão Vilhalva. Médico, ele examinou o cadáver e garantiu que a vítima havia morridohoras antes do confronto. Porém, mais tarde, um laudo médico indicou o oposto. Já à frente do Ministério da Saúde, Mandetta expressou a intenção de mudar a organização da assistência aos indígenas – hoje centralizada no nível federal, dentre várias razões, para evitar a pressão das elites locais contra os interesses dos índios. A ideia, felizmente, não se concretizou.

Com exceção da saúde indígena, no Brasil o governo federal não tem um papel muito importante na prestação direta de ações e serviços à população. O sistema público universal de saúde brasileiro, conhecido pela sigla SUS, é organizado com grande ênfase na municipalização. Mas o Ministério da Saúde herdou de períodos anteriores um conjunto de hospitais e institutos especializados, todos localizados na antiga capital do país, o Rio de Janeiro. E foi justamente aí que a presença de militares, flagrante no governo como um todo, se expressou mais intensamente na saúde. Uma onda de nomeações de membros das Forças Armadas para cargos administrativos foi apresentada como ‘solução’ para essas unidades que, há anos, sofrem com falta de investimentos e de servidores públicos –, problemas dos quais também padecem os hospitais universitários, ligados ao Ministério da Educação, em 2019 ainda mais atingidos pelos cortes de verbas federais.

A maior campanha persecutória verificada no período contra instituições do SUS não veio da Saúde, mas do Ministério da Cidadania e do próprio Palácio do Planalto, e tem a ver com o chamado núcleo ideológico do governo. Desde a administração anterior, de Michel Temer, os resultados do terceiro levantamento nacional sobre consumo de drogas no país, elaborado a pedido do próprio governo federal pela maior instituição pública de pesquisa da América Latina – a Fiocruz – tinham sido deixados em uma gaveta. Isso porque o estudo apontou que não há uma epidemia de drogas ilegais no Brasil. Igualmente insatisfeito com a conclusão, o governo Bolsonaro foi além e iniciou uma movimentação para processar a instituição. Na sequência, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, deu seguidas declarações de que não acreditava na Fiocruz.

O mesmo Terra começou outra campanha difamatória, desta vez contra a agência reguladora Anvisa, que abriu uma consulta pública para regulamentar o plantio e a comercialização de Cannabis medicinal. Nesse caso, o governo estudou destituir o diretor-presidente agência, mas, prevendo reações do Congresso, apenas decidiu nomear… um militar para uma das diretorias e fazer pressão para não se aprovarem as mudanças.

Ainda sob o manto do conservadorismo, o governo já mirou prontamente a prevenção à gravidez e às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). “Quem ensina sexo para a criança é o papai e a mamãe. Escola é lugar de aprender física, matemática, química”, disse Bolsonaro, logo após as eleições. Na mesma linha e também durante a transição presidencial, Mandetta declarou que cabe às famílias, e não ao governo, atuar na prevenção do HIV-Aids.

A primeira ação concreta veio em janeiro, quando o Ministério da Saúde removeu de seu site um material voltado para homens transgênero com informações sobre ISTs. Pouco depois, Jair Bolsonaro pediu à Pasta que recolhesse uma caderneta destinada a adolescentes, elaborada segundo as orientações da Organização Mundial da Saúde e distribuída desde 2008. O documento informava sobre temas como alimentação saudável, transformações no corpo e, é claro, a prevenção de gravidez indesejada e ISTs. O presidente afirmou que o material era “complicado”, pois continha ilustrações dos órgãos sexuais e ensinava como colocar preservativos, por exemplo. E sugeriu aos pais que, enquanto a caderneta não fosse recolhida, eles rasgassem as páginas contendo tais ilustrações.

À parte as questões específicas ligadas a sub-áreas da saúde, há um problema histórico do SUS, discutido desde a sua criação: o do financiamento. E, se os recursos disponíveis nunca foram suficientes para manter o sistema, depois de 2016 ficou evidente que a situação só poderia piorar. Isto porque naquele ano foi aprovada a chamada Emenda do Teto dos Gastos, que congela até 2036 determinados gastos da União, incluindo os destinados à saúde. Jair Bolsonaro, à época deputado, votou favoravelmente à emenda. E a política de austeridade levada a cabo por sua equipe econômica não deixa dúvidas de que, na avaliação deste governo, a saúde não precisa de mais verbas.

O argumento é semelhante ao do Banco Mundial, que em 2018 publicou um conjunto de notas com recomendações aos então candidatos à presidência do Brasil frisando que era possível ter resultados no SUS sem aumentar os seus recursos financeiros. Mas, nesse aspecto, até o Banco consegue ser mais razoável do que a atual presidência, já que o documento ao menos sinaliza a necessidade de excluir a saúde do Teto dos Gastos. Já o governo Bolsonaro não apenas quer manter essa legislação, como também apresentou uma proposta que pode reduzir os valores mínimos constitucionais que estados e municípios precisam destinar à área.

Em uma coisa, porém, o governo e o Banco Mundial estão em perfeito acordo: para ambos, a universalidade – princípio basal do SUS – não é tão importante1. Dirige-se a ela o golpe mais recente no novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde, anunciado em novembro. Uma das principais mudanças é na forma como o governo federal vai repassar recursos aos municípios. Atualmente, esse repasse é feito com base no número de habitantes de cada um deles. Com as mudanças, passa a se basear apenas no número de pessoas cadastradas nas unidades básicas de saúde (unidades da atenção primária).

Um alteração tão importante, com implicações graves sobre o modelo de atenção à saúde que tornou o SUS mundialmente conhecido, jamais poderia ser feita sem diálogo com a sociedade. No entanto, o novo modelo foi pactuado apenas entre gestores municipais, estaduais e federais, sem a aprovação do Conselho Nacional de Saúde, órgão de controle social da área. Legalmente, a mudança não pode ser efetivada sem a deliberação do colegiado. No entanto, de um governante que se coloca abertamente favorável a regimes ditatoriais de extrema-direita e despreza qualquer forma de ativismo social, sabe-se bem o que esperar.

1 O Banco Mundial, assim como a OMS, prefere o conceito de cobertura universal à saúde. Não é nosso objetivo neste artigo pontuar as diferenças, mas há mais informações aqui e aqui.

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