Nas telas, Pequeno Príncipe questiona mercado e família
Ao traduzir para animação valores do livro de Saint-Exupéry, Mark Osbourne mostra-se ácido, diante de mundo imerso em egoísmo, cálculo e alienação
Publicado 30/08/2015 às 18:31 - Atualizado 15/01/2019 às 17:53
Ao traduzir para vida quotidiana valores do livro de Saint-Exupéry, animação de Mark Osbourne mostra-se ácida, diante de mundo marcado por egoísmo, cálculo e alienação
Por Lais Fontenelle
“O problema não é crescer, mas esquecer”, ensina o Pequeno Príncipe. Quando tinha oito anos sofri a primeira grande perda em minha vida. Meu primo mais novo, na época com três anos, foi levado por uma doença comum na infância, mas que para ele foi fatal. A catapora não marcou e feriu somente sua pele, mas toda a história de nossa família. Pedro nos deixou sem palavras e com saudades. Tinha personalidade forte, como todas as crianças da família, os cabelos de um loiro quase branco e uma risada tão contagiante como a do Pequeno Príncipe – personagem que me acolheu nesse momento de dor e me guiou em profundos ensinamentos baseados em valores humanos e não materialistas. Hoje, posso olhar para o céu e ouvir as estrelas para não esquecer de Pedro, do seu sorriso e da infância que compartilhamos.
O livro O Pequeno Príncipe, do francês Antonine Saint-Exupéry, emociona e ajuda as pessoas a entender a essência da vida há mais de 70 anos. Foi traduzido para cerca de 250 idiomas e dialetos, e vendeu mais de 150 milhões de cópias em todo o globo. É há meio século o livro infantil mais vendido no Brasil, e somente no ano passado vendeu mais de 140 mil exemplares. Seu autor faleceu um ano após o seu lançamento, em 1943, numa missão da segunda Guerra Mundial, sem poder dimensionar o alcance da obra.
O livro conta a singela história de amizade vivida por um aviador e um principezinho que mora no longínquo asteroide B612 e ama uma rosa. Quando o príncipe sai em viagem pela Terra, esbarra com o aviador encalhado num deserto e ali compartilham histórias e ensinamentos sobre as dores e as delícias de ser humano. Seus ensinamentos tratam do que é realmente importante nessa vida fugaz que levamos na Terra. Contemplar as estrelas, cativar amigos, amar e respeitar animais e plantas, cooperar mais do que competir, olhar e escutar mais do que assistir, trocar mais do que acumular. Bem diferente do que a sociedade de consumo quer nos fazer crer.
A animação homônima ao livro chegou às telas esse mês, dirigida pelo americano Mark Osbourne, e traz uma nova e igualmente bela narrativa para esse clássico da literatura infanto-juvenil. Desta vez quem fica amiga do Aviador, hoje um velhinho, é uma garotinha de olhos curiosos, abandonada pelo pai e confinada pela mãe numa casa cinza. Com tarefas obsessivamente calculadas por uma mãe ausente, a menina tem uma rotina espartana durante as férias de verão, para conseguir vaga numa escola de renome que promete futuro de sucesso. Sem tempo para dedicar-se ao ócio, aos amigos, ao contato com a natureza ou ao exercício de sua criatividade, a menina experimenta os dias sozinha e assim vai perdendo a essência da infância, até ser resgatada pelo vizinho excêntrico – um velhinho aviador que lhe conta a história do Pequeno Príncipe e com quem acaba por passar suas férias.
Seus pais não têm tempo de cuidar dela – como muitos, atualmente, que terceirizam os cuidados dos filhos para babás, creches ou tablets. O pai da protagonista vive longe, trabalha muito e mantém contato com ela somente no aniversário – por meio de um mesmo presente que envia todo ano, com um cartão que nada diz e ela tristemente coleciona. A mãe também trabalha demais e não a escuta, adultizando essa menina para ser seu par – e dizendo que faz isso para lhe garantir o futuro, sem perceber que assim lhe arranca o presente. Triste retrato da infância de hoje, abandonada e afastada de sua essência em meio a tantas atribuições do universo adulto.
Fui assistir ao filme em família e fiquei feliz ao perceber que a amizade e os ensinamentos compartilhados entre o adulto e a criança ainda emocionam todas as gerações. A meu lado um pai com a filha no colo derramavam lágrimas que mostram haver saída para a vida cinza e planejada que a maioria de nós experimenta nos grandes centros urbanos. O filme emociona e faz refletir sobre os valores que aprisionam as crianças contemporâneas numa infância igualmente cinza e solitária, com a agenda repleta de atividades supostamente desempenhadas para lhes garantir um bom lugar na Terra – a mesma que estamos destruindo pelos padrões de consumo e produção que adotamos.
Aparentemente perdidos na árdua e deliciosa tarefa de cuidar dos filhos, pais e mães da atualidade acabam recorrendo às promessas que o mercado lhes oferece. Tenho sido com frequência chamada a falar nas escolas sobre o tema da desaceleração na rotina das crianças, e minha fala debruça-se sobre a importância de respeitarmos a infância e seu tempo: de encantamento e conexão, em que contemplar e imaginar são atividades essenciais na construção de significados para o mundo real.
É preciso desacelerar e desconectar para entrar em contato com a criança que fomos e com as que estão ao nosso lado. Rever nossas urgências e o que é realmente importante para promover uma infância plena. Crianças não são feitas para ser criadas em bolhas. Elas precisam se relacionar, cair para aprender a levantar, perder para aprender a sonhar e elaborar. Precisam de histórias vividas e narradas para se lembrar. E não precisam, para ser felizes, de objetos e atividades que as cansem para desligar-se à noite. Não precisam de um coach para aprender a brincar – sim, parece que estes personagens existem!
Crianças precisam de muito pouco para crescer de forma saudável e se tornar adultos melhores. Precisam de tempo e espaço para brincar e se relacionar entre pares, com adultos e com a natureza. E nós, adultos, temos o dever e a responsabilidade de oferecer a elas o que é realmente essencial – embora invisível aos olhos.
Parabéns Lais pelo lindo texto.
O filme para mim deixou claro que a ingenuidade da criança esta perdida e tudo a sua volta esta “adultarizado”.
Hoje, acompanho as notícias, sites e artigos relacionados ao tema consumo infantil afinal, minha dissertação no mestrado “Publicidade que consome a infância: o desperdício de valores duradouros por prazeres instantâneos” – esta direcionada a este universo.
Mesmo não tendo filhos e nem sobrinhos – vejo a importância de “educar” esses futuros jovens com valores duradouros.
abraços,
Solange
Que bom ler suas palavras Patricia e saber que minhas reflexões ecoam em pessoas e pais tão bacanas. Feliz !
A liberdade e poesia a gente aprende com as crianças. Já dizia Manoel de Barros. Vale mesmo nos reconectarmos com a criança que fomos.
Que informação bacana. Vou levar minha pequena lá onde mora seu avô paterno. Obrigada pela dica!
Obrigada Israel. E não deixe de assistir ao filme!
Fui eu quem me emocionei agora! Feliz que minha sinceridade tenha alcançado pessoas tão bacanas. Depois leia minhas outras reflexões sobre a infância contemporânea por aqui. um beijo
Texto maravilhoso e verdadeiro, onde foi que deixamos essa criança que fomos um dia.??
Agora que somos país, podemos resgatá las, brincando e participando do universo infantil com nossos filhos.
Talvez muitas pessoas não saibam é que Exupery esteve trabalhando para os Correios na Argentina.,como piloto. E em uma de suas viagens foi obrigado a fazer um pouso forçado em Florianópolis. Aterrizou numa Praia que leva o nome de “Pequeno Príncipe”.
Com tantas coisas horrendas que leio ultimamente na internet, fiquei muito feliz por ter encontrado teu texto. Obrigado!
Parabéns Lais Fontenelle pela escrita sensível de seu texto, me emocionei enquanto fui lendo ao perceber a profundidade e verdade de suas palavras. Me inspirou a assistir ao filme junto com meu filho de 10 anos!
Vale a pena ler esse texto de Lais Fontenelle Pereira sobre a animação Pequeno Príncipe. “É preciso desacelerar e desconectar para entrar em contato com a criança que fomos e com as que estão ao nosso lado. Rever nossas urgências e o que é realmente importante para promover uma infância plena.” E acrescento, Lais => para entrar em contato com a criança que sempre mora em nós e que nos acompanha em todas as idades, a partir da pureza, inocência, honestidade e verdade, com carinho e amizade. Um livro que também me formou, além do Pequeno Príncipe, foi o Menino do Dedo Verde. Ambos ainda vivem em mim. Agradeço suas palavras divulgadas aqui pelo Outras Palavras, um ar de leitura que me refresca, sempre.