Mensalão: o bom e velho espetáculo do auto-de-fé

Savonarola (Bartolemeo): o moralista anti-maquiavélico

Savonarola (Bartolemeo): o moralista anti-maquiavélico

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Mídia e parte da esquerda brasileira agem como  velho moralista Savonarola, que além de condenar a corrupção terminou por provar seu próprio veneno

Por Hugo Albuquerque, no Descurvo

 

A última semana foi marcada pelo estardalhaço midiático em relação ao início do julgamento do mensalão, os tribunais da razão convertidos em telenovela e apresentada em capítulos. Esta semana que se inicia tem mais. De um lado, uma oposição pouco crível pedindo a condenação por algo no qual ela também está envolvido, do outro, uma situação que passou as últimas eleições incólume falando em julgamento “técnico” e “justo”, mas não político. Bem…

 

Para ser bastante direto, no que toca ao mensalão, este blog, como não poderia ser diferente, não irá rufar tambores pela condenação de quem quer seja no julgamento do STF, seja o petista José Dirceu ou o tucano Eduardo Azeredo – e de qualquer um outro suposto envolvido – porque, ao contrário de ambos, não é punitivista e também porque não crê em saídas penais (que costumam ser entradas em becos sem saída infernais), muito menos para problemas políticos, que se resolvem com a devida reforma. 

 

Não serão os tribunais da razão que darão resolução ao problema, ainda mais diante de um nexo de coisas tão confuso, no qual a decisão “justa” seria a abolição do sistema pelo próprio sistema como em uma autodestruição. Mas, ainda assim, nos resta tecer alguns comentários sobre o cenário geral.

 

Se a filosofia aparece, desde tempos imemoráveis, sob as mais diversas máscaras concebíveis, é certo que com a doxa – a glória, a aclamação ou a mera opinião – também não é muito diferente: no Brasil de hoje, apesar das conquistas todas, ela vem na forma de uma curiosa telenovelização do debate político, o que se espraia da mídia tradicional até as redes sociais. Da direita mais anti-democrática à intelectualidade de esquerda.

 

É dessa conversão de tudo em dramalhão, do estímulo à má consciência e da produção constante de superstições que se faz a cortina de fumaça do que realmente interessa: a questão social, a urgência da crise ambiental a problemática da política. Isso ajuda a explicar toda a história do mensalão, cuja incessante e pouco desinteressada repetição ocupa boa parte do dito noticiário político nos últimos anos.

 

A mídia de massa tradicional, presa a interesses que vão do comezinho sensacionalista – que demanda vilões, mocinhos etc – até interesses políticos e econômicos maiores – que importam na sua própria sobrevivência – assume as rédeas do processo, cria histórias para justificar suas teses e condena previamente quem ela deseja. Para completar o quadro, é preciso lembrar que se setores da nossa política vivem de certo idealismo e purismo, outros são suficientemente espertos para manipularem isso.

 

De repente, toda a disfuncionalidade histórica do Congresso Nacional é narrada de modo a parecer que ela foi causada por um governo em específico, em um fantasioso esquema de compra por votos – o que cai por terra rapidamente quando as investigações avançam e chegam até um influente político da oposição. Os anos sequer pouparam um outro senador, há pouco alçado a paladino da moral, mas rapidamente desmascarado (e mesmo seus aliados mais íntimos se declaram traídos, afinal, como ele pode ter nos enganado por tanto tempo?)

 

O sistema político brasileiro funciona mal, os partidos estão distantes da sociedade, a maioria deles sequer existe realmente, e o Legislativo é eleito dentro de um sistema ruim. Não obstante o fato da problemática histórica do Estado. O Congresso Nacional, que consegue piorar a cada legislatura, vive da defesa de seus lobbies, configurando-se em uma constante ameaça de desgoverno para o país: seja pelo seu modus operandi ou pela chantagem que exerce. 

 

E desgoverno é diferente de antigoverno, é uma catástrofe só pode gerar alento em mentes niilistas suficientemente bem colocadas, ou iludidas, para não naufragarem, ou acharem que não vão junto. O que se passa na zona cinzenta entre o executivo e o legislativo importa por completo tanto quanto não importa. É uma zona de guerra, que não raro é desenhada como zona de paz conforme o sabor do momento (e do adversário).

Fica a lição, para todas as partes envolvidas, do velho Savonarola, o moralista militante e antítese de Maquiavel que tentou purgar a Itália renascentista da corrupção como se ela fosse uma entidade transcendental e onipotente, mas terminou provando de seu próprio veneno e morreu queimado nas mesmas fogueiras que tanto incitou contra os outros – e isso vale para a esquerda que hoje queda vítima desse ardil, mas que alimentou durante anos essa perspectiva moralista de política, quanto para a oposição oportunista que se regojizou com a presente situação, mas que morre pela língua de uma forma tão rápida que é digna de piada.

O que está em colapso aqui não é este ou aquele partido, tampouco as “instituições” – como se sua funcionalidade não compreendesse uma disfuncionalidade permanente, uma doença crônica -, mas a perspectiva moral(ista) de pensar e de fazer política e, sobretudo, como a glória sem limites, seja das fogueiras dos autos-de-fé ou da mídia, produz uma luminosidade tão intensa que nos deixa cegos. O Brasil está aí, ao lume, e, curiosamente ou não, os pobres que ignorara

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5 comentários para "Mensalão: o bom e velho espetáculo do auto-de-fé"

  1. Richard Lopez disse:

    pra gente pensar, aquee ivre de cupa atire a primeira pedra….

  2. Richard Lopez disse:

    pra gente pensar…

  3. DE pleno acordo com o artigo. A escandalosa profusão do assunto encobre os verdadeiros problemas que atingem o PAIS. Não são fruto da corrupção e sim de um sistema de governo FALIDO no mundo- O CAPITALISMO – cujo objetivo fundamental é o LUCRO a qq preço aí , incluida a corrupção das elites dirigentes, durante e após a DITADURA CIVIL- MILITAR que ainda tem postos de comando nos governos pós ditadura. Cade a reforma AGRÁRIA PROPOSTA pelo governo JOÃO GOULART? Verdadeira causa do golpe de estado e da miséria da população do campo e da cidade? Disto os MCM não falam. Usam os escândalos pra esconder os verdadeiros motivos da miséria da filosofia.

  4. Hugo Albuquerque disse:

    Waldez, preste atenção no texto: o penúltimo parágrafo é bastante claro quanto ao fato do PT , em dados momentos, ter feito uso de um jogo moralista na política e agora estar no mesmo ardil, o que acontece é que a questão é um tanto mais complexa, uma vez que a oposição está no mesmíssimo impasse, vide o envolvimento de Eduardo Azeredo na história bem como questões correlatas como a queda do Senador Demóstenes Torres, convertido há pouco em guardião da ética pela mídia. É esse estado de coisas que o post se presta a criticar. No mais, não há deslocamento no tempo na questão de Savonarola, ele é o passado, o presente e o futuro de qualquer modo de fazer política que se reduza à moral.
    abraços

  5. waldez disse:

    Vamos às pontuações.
    Por omissão é que foi possível que seu texto não se voltasse contra ele mesmo em sua desarticulação temporal.
    Começando pelo final, há de se dar nomes aos personagens, assim como é necessário pô-los nos seus devidos lugares.
    Não é a oposição que encarna Savonarola, muito pelo contrário. Durante toda a década de noventa o discurso do PT sobre a corrupção foi exatamente esse, um discurso moralista, maniqueísta, superficial e, principalmente, como não poderia deixar de ser, um discurso eleitoreiro. O PT na década de 90 foi o partido da ética, monopolizando-a – ao menos nas falas de seus integrante.
    A fogueira na qual o PT o arde hoje foi constrída com saliva e vontade dos petistas.
    Embora esse simulacro de debate político retire atenção daquilo que é importante de fato. Foi esse, entretanto, o debate alimentado pela oposição na década de 90. E ainda hoje dito por petistas quando pretendem “justificar” o mensalão. Não é raro ouvir ou ler “Lista de Furnas”, “Mensalão Tucano” etc.
    O erro petista – por incompetência intelectual, moral ou simples ingenuidade – foi acreditar que suas armas não poderiam se voltar contra ele, foi acreditar que por ter DNA infiltrado na lenha, a fogueira nunca se acenderia contra ele.
    Não posso, então, deixar de apreciar a ironia das chamas.
    A oposição teve meios, que faltaram ao PT no passado, para acender a fogueira.
    Devo concordar, contudo, que é preocupante a postura da oposição de esquerda – parte dela derivada do PT da década de 1990.
    Terminando. É desse modo, então, que seu texto está deslocado no tempo: Savonarola está na fogueira agora e a luz de seu corpo ardente não cega ninguém que já não estivesse cego.

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