Walter Salles expõe um mestre chinês
Em Jia Zhang-ke, diretor brasileiro homenageia cineasta que jamais perdeu simplicidade e modéstia, apesar dos dez longas em que trata seu país com a profundidade de um Rosselini
Publicado 25/09/2015 às 17:46 - Atualizado 15/01/2019 às 17:53
Em <i>Jia Zhang-ke</i>, diretor brasileiro homenageia cineasta que jamais perdeu simplicidade e modéstia, apesar dos dez longas em que trata seu país com a profundidade de um Rosselini
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Por que o chinês Jia Zhang-ke é um dos cineastas fundamentais de nosso tempo? A rigor, só os dez longas e dez curtas que compõem até agora sua filmografia podem responder a essa pergunta, mas o documentário Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, de Walter Salles, fornece chaves inestimáveis para entender e apreciar uma obra tão esplêndida e multifacetada.
A ideia do filme, sua “plataforma”, é enganosamente simples e modesta, como aliás o próprio Jia: acompanhar o diretor em uma visita aos lugares de sua infância e juventude em Fenyang, no norte da China, e às locações de seus principais trabalhos. Nessa jornada, que tem um tanto de “volta do filho pródigo” e um tanto de balanço autocrítico, vai ficando cada vez mais clara a complexa interação do artista com o seu país, a sua cultura, o seu tempo.
China em transformação
Emerge daí um retrato (pessoal e parcial, inevitavelmente) dos bastidores de um cinema que expressa ao mesmo tempo as vertiginosas transformações da China nas últimas décadas e o efeito desse processo nos corações e mentes dos indivíduos que o vivem, sobretudo na região natal do cineasta.
Mineiros, operários, prostitutas, balconistas, empresários, ladrões, políticos, todos respiram, agem e se expressam como seres contraditórios, desejantes, e não como “tipos”, nessa filmografia que, a despeito de sua heterogeneidade de temas e estilos narrativos, parece sempre transmitir a sensação de um país em escombros, onde cada um tenta se virar como pode.
Talvez esteja aí a proximidade entre Jia e Rosselini, observada pelo próprio Walter Salles no livro O mundo de Jia Zhang-ke, de Jean-Michel Frodon (Cosac Naify, 2014). Assim como o mestre italiano, Jia, mesmo lançando um olhar incisivamente crítico à realidade social, não se coloca acima de seus personagens, não os julga – com a possível exceção do ignóbil homem que agride uma prostituta com maços de dinheiro em Um toque de pecado (2013), uma rara “forçada de mão” do diretor.
O minuto e o milênio
São particularmente significativos os trechos de Um homem de Fenyang que revisitam os filmes O mundo (2004), e Em busca da vida (2006). O primeiro, cuja principal locação é um parque temático de Pequim onde se reproduzem locais célebres do planeta, encerra uma ironia amarga: uma das civilizações mais antigas e ricas do mundo contempla cacos de outras culturas (em geral posteriores) que ali retornam sob a forma do kitsch. No segundo, mostra-se uma cidade quase fantasma do cento-sul da China, Fengjie, que será destruída por uma imensa barragem. Talvez em nenhum outro momento a estética dos escombros de Jia Zhang-ke tenha atingido uma clareza tão pungente.
Cena de Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, de Walter Salles
Outro momento tocante é aquele em que a voz do diretor se embarga, pela primeira vez, ao relembrar o pai, perseguido pelas sandices da Revolução Cultural maoista e preocupado com os destinos do filho numa China perenemente submetida à tirania. Os solavancos da história e seus efeitos na constituição das famílias chinesas não são, aliás, um dado secundário no cinema de Jia Zhang-ke, artista íntegro e generoso, sempre atento ao minuto sem perder de vista o milênio.
Cabe esperar que outras praças sigam o exemplo do Instituto Moreira Salles do Rio e aproveitem a deixa para exibir os filmes de Jia Zhang-ke.
Um filme francês
Num registro muito mais modesto, entrou nas brechas do nosso cruel circuito exibidor outro longa-metragem que exala a cada fotograma a paixão pelo cinema: Um filme francês, de Cavi Borges.
Sua trama é exígua: Cleo (Patricia Niedermeier), uma jovem cineasta, prepara seu primeiro filme, uma história de amor protagonizada pelos igualmente jovens Michel (Erom Cordeiro) e Patricia (Juliana Terra). As locações são pontos icônicos do Rio de Janeiro (lagoa Rodrigo de Freitas, Museu de Arte Moderna, floresta da Tijuca, ponta do Arpoador etc.) onde atores e diretora se encontram para ensaiar, rodar as cenas, conversar, namorar.
Trata-se, desde o título, de uma declaração de amor e humor ao cinema francês, em especial à Nouvelle Vague. O triângulo central mimetiza ou glosa cenas famosas de clássicos do movimento, como Jules e Jim, de Truffaut, e Banda à parte, de Godard. A fotografia em preto e branco sublinha a referência. Mas é também um filme profundamente carioca, pela paisagem, pelo sotaque, pelo humor, pelo espírito solar. É como se Cavi Borges e sua turma aclimatassem aos trópicos – e aos nossos tempos – a energia e as inquietações da Nouvelle Vague.
É um filme de grande frescor e leveza, rodado em preto e branco com baixíssimo orçamento e aberto às imperfeições da vida. É impossível dissociá-lo da figura de seu diretor, Cavi Borges, um dos mais ativos e singulares produtores independentes do cinema brasileiro atual, queridíssimo no meio, personificação de um amor incondicional ao cinema.
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