Quilombolas: a longa batalha pelo território

Agressão a líderes de um quilombo no Norte de Minas expõe triste realidade: de 3 mil comunidades quilombolas do país, apenas 250 foram demarcadas

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Associação Quilombola Marobá dos Teixeiras é fundada em 2008 por descendentes de João Teixeira de Souza e Ana Maria de Jesus. Junto com outros trabalhadores fugidos da escravidão, estes ancestrais criaram, em 1870, a comunidade nas terras de Feijoal, Coelhos e Marobá

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. Para evitar reconhecimento, proprietários ricos recorrem a violência

Por André Borges de Mattos e Guilherme Mansur Dias

Episódios de violência contra comunidades rurais no Brasil, particularmente em áreas marcadas por conflitos históricos em torno da posse da terra, são tão comuns quanto desconhecidos da maior parte da sociedade brasileira. Exceção feita a poucos fatos de maior repercussão ou impacto, que ocupam algum espaço nos noticiários, casos como o ocorrido recentemente na comunidade quilombola Marobá dos Teixeira, localizada no norte de Minas Gerais, quase sempre permanecem ocultos do grande público, obscurecendo a triste realidade de práticas centenárias de coronelismo que ainda relutamos em superar.

Segundo nota emitida pela Pastoral da Terra de Minas Gerais em conjunto com a comunidade, posteriormente repercutida nas redes sociais e em alguns poucos meios de comunicação, o presidente da Associação Comunidade Quilombola de Marobá dos Teixera e sua esposa foram violentamente agredidos, no que parece ter sido uma tentativa de homicídio, por homens que em seguida levaram documentação relativa ao processo de demarcação do território, que atualmente corre na justiça.

Mais um entre tantos, o evento é emblemático do acirramento de conflitos decorrentes da morosidade e ineficiência do Estado na efetivação das políticas públicas voltadas a grupos etnicamente diferenciados. Embora a Constituição Federal brasileira de 1988 tenha garantido o direito à propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombo, a regularização destes territórios tem caminhado a passos lentos. Atualmente, segundo dados da Comissão Pró-Índio, apenas 250 comunidades quilombolas detêm o título de propriedade de seu território, num universo estimado em aproximadamente 3.000 comunidades. Várias razões convergem para explicar a lentidão do processo de titulação, mas a falta de priorização política e institucional é, sem dúvida, a principal delas.

No âmbito do governo federal, desde 2003 o Incra é o órgão responsável pela titulação dos territórios quilombolas. A instituição opera com base em normativas infraconstitucionais que preveem distintas fases para a titulação: desenvolvimento e publicação de estudos técnicos, apelação em 1ª e 2ª instância, Portaria de Reconhecimento, além do envolvimento da Presidência da República na assinatura de Decreto de Desapropriação por Interesse Social, com vistas a arrecadar as propriedades privadas incidentes no território. Este processo, demasiado lento e burocrático, não tem dado conta de efetivar o direito constitucional das comunidades quilombolas de maneira suficientemente célere. Muitas vezes, a própria lentidão acaba acirrando as tensões e levando riscos às lideranças e pessoas envolvidas na luta pela consolidação de tais direitos.

Não bastasse a lentidão do governo federal, a política quilombola também vem sendo questionada no âmbito dos poderes legislativo e judiciário. No legislativo, a PEC 161/2007 foi apensada à PEC 215, e visa transferir para o Congresso a competência de regularização dos territórios quilombolas. Além disso, encontra-se em andamento desde 2015 uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados destinada a investigar supostas irregularidades nos processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas. No âmbito do poder judiciário, por sua vez, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239/2004 questiona os procedimentos de titulação previstos na legislação em vigor e aguarda julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Tais fatos concorrem para postergar ainda mais efetivação dos direitos das comunidades quilombolas.

Assim como Marobá dos Teixeira, cujo Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi publicado no final de 2013, diversas comunidades espalhadas pelo país aguardam a regularização de seus territórios. De acordo com o INCRA, atualmente encontram-se abertos 1.536 processos referidos a comunidades quilombolas: 872 no Nordeste, 279 no Sudeste, 143 no Sul, 130 no Norte e 112 no Centro Oeste.

Devido ao histórico escravocrata, Minas Gerais é o terceiro estado com maior demanda de processos e responde, no Sudeste, a 196 dos 279 processos existentes. Neste enorme universo, porém, Minas exibe outra marca distintiva: é um dos poucos estados da federação que não possui sequer um único território quilombola titulado (Aqui, o monitoramento das áreas tituladas).

Simbolicamente, o episódio ocorrido em Marobá dos Teixeira impressiona tanto pela crueza dos agressores quanto pelo conteúdo dramático que atualiza uma ideologia racista forjada em pelo menos três séculos de escravidão. As informações divulgadas pela Pastoral da Terra falam em tortura e espancamento a que foi submetido o casal. Enquanto ela resistiu a uma ingestão forçada de algo que parecia conter veneno, ele, presidente da Associação, foi amarrado a um poste de luz elétrica, agredido e enforcado até perder a consciência. Apesar da evidente gravidade da agressão e toda sorte de humilhações que disso decorre, este não foi o primeiro caso de violência sofrido pela comunidade, cujos ancestrais, fugidos da escravidão, ocuparam o território por volta de 1870. O mesmo território que no início da década de 1940 passou a contragosto para mãos de coronéis, dando origem a um ciclo de exploração de trabalho em muitos sentidos análogo à escravidão.

Em uma tentativa de lidar com a dívida histórica profunda em relação aos grupos constituintes do processo civilizatório nacional, os constituintes de 1988 deram destaque às populações indígenas e afro-brasileiras, reservando a eles o direito à livre manifestação cultural, à autodeterminção e à proteção de seus territórios. Para as comunidades tradicionais, mais do que simples produto com valor fixado pelo mercado, o território, como parte de sua história, constitui a base de sua reprodução econômica e cultural, estando por isso fortemente ligado à dimensão simbólica de sua existência e de seu senso de identidade. Sua regularização, neste caso, se não pode ser pensada como a solução de todos os problemas, certamente é um passo fundamental para que, além de terem o mínimo de segurança diante das constantes ameaças de expropriação, essas comunidades possam ter o direito à identidade e livre manifestação garantidos.

Sobre o episódio, quando consultada, a comunidade reforçou sua disposição para a luta, não importam as práticas de intimidação, sempre recorrentes. Para aqueles que conviveram de perto com alguns de seus dramas, isso apenas reforça uma capacidade histórica de resistência, tantas vezes demonstrada ao longo de décadas de marginalização e descaso. Não seria, pois, este episódio, a despeito de sua brutalidade, razão para arrefecer os ânimos. Naturalmente, o que se espera, não importam os interesses a serem feridos, é que a investigação do crime, já em andamento, possa identificar e punir urgentemente os culpados. De nossa parte, não podemos senão reiterar a nota de repúdio emitida pela Pastoral da Terra e pela comunidade, a qual transcrevemos na íntegra.

NOTA DE REPÚDIO E DENÚNCIA: FAMÍLIA QUILOMBOLA É ESPANCADA VIOLENTAMENTE NA COMUNIDADE QUILOMBOLA MAROBÁ DOS TEIXEIRA.

Na noite de 24/03/2017, por volta das 20 horas, três homens armados e encapuzados chegaram à residência do casal na comunidade Quilombola Marobá dos Teixeira no município de Almenara, eles estavam em um veículo Novo Uno de cor branca, ao chegarem, chamaram os moradores pelos nomes e quando atenderam acreditando que seria alguém conhecido, foram abordados por um dos homens, o qual afirmou que “graças a Deus” encontrou Jurandir, pois ele era um homem difícil de ser encontrado e já estavam procurando ele há dias. Inicialmente, torturaram a Maria Rosa (esposa do Jurandir e também é agente voluntária da Comissão Pastoral da Terra). Segundo ela, além de espancá-la, deram a ela alguma substância que parecia ter chumbinho dentro e quiseram obrigá-la a tomar, mas ela disfarçou e não engoliu. Além disso, ela foi obrigada a deitar no chão e foi coberta por um pano e insistentemente, perguntavam onde estavam as armas. Enquanto isso, um deles procurou o Jurandir (presidente da associação da comunidade) e quando o encontrou, amarrou-o ao poste de energia elétrica e o espancou e também tentou enforcá-lo com uma corda, até ele desmaiar. Acreditando que ele estava morto, saíram e vasculharam a casa, além de levar pertences da casa, levaram documentos da associação comunitária, documentos relativos aos processos administrativos e judiciais relacionados ao território.

Acreditamos que isto está ligado ao conflito agrário ligado as lutas em defesa do Território. Em outros momentos, vários momentos de conflitos foram registrados, muitas ameaças já foram feitas, também agressão física e verbal. Muitas outras evidências nos levam a fazer tal ligação. As burocracias, a morosidade e a omissão dos órgãos de governo e até a morosidade do Judiciário têm contribuído para acirrar o conflito. Diante do exposto a Comissão Pastoral da Terra e a comunidade Quilombola Marobá dos Teixeira vêm denunciar este atentado e exigimos que seja investigado e punidos os responsáveis.

Belo Horizonte, 25/03/2017

Comissão Pastoral da Terra – MG e Comunidade Quilombola Marobá dos Teixeira.

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