Como a perversidade tomou conta do Brasil

Os limites da “Janela de Overton” foram esgarçados desde 2015. Como resposta, a esquerda autorizou-se a um amálgama estranho, que tolera Arthur Lira e abre espaço para aberrações. As mulheres que saíram às ruas na noite de quinta-feira são alento

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
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Tenho a impressão de que giramos a chave no Brasil. A perversidade, revestida de fundamentalismo religioso, foi além do imaginável com o projeto de lei (PL) dos Estupradores. Foi como um soco no estômago de quem tem um mínimo de empatia com a vida de crianças que sofreram abusos e atrocidades.

Ao ver o rosto impassível de Arthur Lira após encaminhar nebulosamente a votação simbólica da urgência deste projeto de lei da perversidade, veio à mente uma passagem de uma minissérie sobre Marco Polo. A cena se passa na segunda temporada desta série é uma das mais angustiantes que já assisti: Kublai Khan abraça a criança Zhao Xian e o sufoca até a morte. A criança representaria uma ameaça ao avanço do poder mongol no sul da China porque fazia parte da dinastia que acabava de ser destruída.

A repulsa que a cena causa tem relação direta com o PL do Estupro. A reação das mulheres que saíram às ruas em tantas cidades brasileiras na noite de quinta-feira, dia 13, um dia após o dia que o comércio comemora as vendas do dia dos namorados foi um alento, mas não limpou o gosto amargo que permanece na boca de quem não consegue entender como a maldade avança em nosso país com tanto desembaraço.

Acredito que tudo começou com o arrombamento da “Janela de Overton” a partir de 2015. Esta janela indicaria a tolerância de uma sociedade ou comunidade a respeito de comportamentos ou ideias que passam a ser aceitáveis. Em 2015, o Brasil sofreu um ataque de escroques que articularam ofensas gratuitas no parlamento e que se somaram aos ataques em massa desferidos nas redes sociais. A fusão das duas frentes atordoou os setores progressistas, que demoraram a reagir. O ataque que alargou os batentes da Janela de Overton brasileira envolveu um enorme investimento de setores empresariais. Somente entre janeiro de 2019 e agosto de 2021, período do desmando do governo Bolsonaro, onze canais bolsonaristas no YouTube, responsáveis por propagar fake news sobre as urnas eletrônicas e defender o governo federal, lucraram mais de 10 milhões de reais, segundo o TSE.

Segundo o Intercept Brasil, o Estado brasileiro entregou mais de R$ 11 milhões ao Google, entre maio de 2019 e julho de 2020, para que o gigante da internet distribuísse anúncios do governo de extrema direita pela internet. Parte considerável desse dinheiro (até 68%, segundo o próprio Google) foi parar no bolso dos editores dos sites que veiculavam fake news.

A enorme manipulação da opinião pública disseminada por sete anos seguidos gerou um esgoto informacional que quebrou parte dos limites morais que definia a identidade pública dos brasileiros.

Tenho para mim que o impacto desta quebra de limites morais foi tão significativo que atingiu a leitura dos segmentos democráticos organizados em partidos políticos. A convicção sobre a aliança necessária para se vencer o extremismo fascista no Brasil criou uma chancela para construção de uma amálgama estranho, desequilibrado, quase amorfo.

E é este cenário que liberou as maldades na Câmara dos Deputados. Não se trata de um parlamento majoritariamente conservador. O pensamento conservador, a começar pelos princípios do seu grande formulador, Edmund Burke, nunca rompeu com princípios morais básicos, de defesa da infância, por exemplo. O que temos no parlamento brasileiro não é conservadorismo, mas escárnio. Uma ambição política tão desmedida que não teme dizer seu nome em canais de TV a cabo, declarando que vão impor o fim do aborto “custe o que custar”, incluindo o futuro de crianças abusadas, o que criará um ciclo sem fim de sofrimento e segregação social.

Não há como respirar ar puro num país que não consegue conter mais a maldade dos fundamentalistas que colocam seu poder e ideário acima da vida e da humanidade. Não há como alimentar esperança num país em que fundamentalistas zombam de quem consideram que vive à sua mercê.

No Império Mongol não havia o conceito de sociedade civil. Os mongóis eram caçadores e exploravam rebanhos, passando a maior parte da sua vida na sela de seus pôneis das estepes. Aprendiam a cavalgar e usar armas ainda com pouca idade. Autores como o consagrado Reinhard Bendix sugerem que as sociedades que foram dominadas pelo Império Mongol não conseguem, ainda hoje, consolidar uma democracia porque vivem sob o manto da violência e imposição das elites nacionais.

Não temos na nossa história qualquer vínculo com o Império Mongol. Porém, o fundamentalismo desumano que toma conta da Câmara dos Deputados procura, de todas as formas, negar os princípios da sociedade civil e sufoca o futuro de muitas crianças brasileiras. Um basta seria pouco para este tipo de ataque à democracia e humanidade em nosso país. É preciso algo grandioso para restabelecermos as bases da nossa Janela de Overton.

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