Rio Doce, a farsa da “recuperação”

Estado brasileiro omite entrega a ONG subordinada à Vale a “reparação” dos danos sociais e ambientais causados pelo crime de Mariana. Resultado é desastroso

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Estado brasileiro omite-se e entrega a uma ONG subordinada à Vale os trabalhos de “reparação” dos danos sociais e ambientais causados pelo crime de Mariana. Resultado é desastroso

Por Paula Guimarães e Raul Lemos dos Santos*, do Indebate

Uma interpretação corrente para os encaminhamentos institucionais dados ao rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP Billiton no Vale do Rio Doce aponta que as fragmentações impostas transcendem a esfera socioespacial e atingem as estruturas institucionais, a partir da deslegitimação do aparelho estatal e da concomitante emergência do terceiro setor como saída viável para gestão dos processos de reparação do desastre-crime.

A partir deste argumento justificou-se a criação da Fundação Renova, que garantiu às empresas culpadas pelo desastre-crime e mantenedoras da fundação não apenas o controle sobre os processos de reparação e compensação, como também a acumulação de capital em meio ao desastre-crime que segue em curso.

O discurso que coloca o Estado como incapaz de gerir os recursos para a recuperação ganhou força em meio à crise política do país, sob a capa da ideia de que a corrupção é imanente ao setor público e passível de ser superada pela ação empresarial a partir de mecanismos de gestão. Com a aplicação de normas de Compliance (transparência), na linha de frente do arranjo de governança da Fundação Renova, colocou-se ainda mais lenha na fogueira do discurso sobre a corrupção estatal. No entanto, se o embate é por legitimidade, o arranjo de governança do qual emerge a Fundação Renova e o Comitê Interfederativo (CIF) não é legítimo nem judicialmente, nem é legitimado pelos atingidos pelo rompimento da barragem: o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta que embasa a criação deste arranjo sequer foi homologado pela justiça e também não conta com a anuência dos atingidos.

Recentemente, tal arranjo institucional foi colocado em xeque por mais uma questão: a falta de um posicionamento efetivo do CIF frente às empresas e à Fundação Renova para garantir o cumprimento da deliberação Nº 58 elaborada pelo próprio comitê; a medida exige o reconhecimento das comunidades do norte e sul da foz do Rio Doce como atingidas, o que implicaria o cadastramento imediato e posterior a concessão do auxílio emergencial[1]. Após quatro meses de descumprimento da deliberação pela fundação, o CIF, em benefício dos  interesses empresariais, se restringe a notificar a entidade em vez da devida multa, em respeito às comunidades até agora desassistidas. Com isso, a deliberação, que gerou grandes expectativas nas comunidades do norte e sul da foz, serviu exclusivamente para conter os processos de resistência até então efervescentes.  Tal experiência comprova que os encaminhamentos assertivos para o reconhecimento de direitos e reparações não virão nem pelos direcionamentos do Comitê Interfederativo nem pela Fundação Renova e suas mantenedoras Samarco, Vale e Bhp Billiton. A saída é clara: militância e ação direta.

Na contramão, o recorrente esforço de concatenar as saídas pelo terceiro setor – leia-se ONGs e fundações – é central para o avanço do ambientalismo de perfil neoliberal, estimulado pelo Banco Mundial através da adoção de diretrizes para a concessão de recursos direcionados às questões ambientais no sul global, que prezam pela substituição do Estado por organizações não governamentais. Nesse sentido, o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves nos alerta para o espírito colonialista implícito em tais políticas ambientais, pois implicam manter os recursos naturais salvaguardados por organizações em sua maioria internacionais, com uma agenda submetida aos interesses do Banco Mundial, isto é, sob o controle do grande capital internacional.

No caso do rio Doce, a relação entre entidades do terceiro setor e as empresas vai muito além de uma mera aproximação de vocabulário, constituindo um modelo de gestão empresarial com roupagem verde, a exemplo da parceria com o Instituto Terra. O fotógrafo Sebastião Salgado há bastante tempo tem alguns de seus projetos profissionais financiados pela Vale, além de manter ONG ambientalista focada em projetos de recuperação das nascentes do Rio Doce também financiados pela empresa e atualmente em parceria com a Fundação Renova.

O que antes era apenas mais um investimento empresarial em publicidade verde, após o crime converteu-se em uma grande jogada em benefício da reputação das empresas. Logo após o crime, o fotógrafo deu uma série de declarações polêmicas em defesa das empresas, dizendo que “essas empresas primam pela preocupação ecológica” e que a degradação do Rio Doce é anterior ao desastre, argumento enfatizado pela Renova na denominação desastre silencioso.

O argumento de Salgado, ao manter o foco no  processo prévio de degradação (causado diretamente pela mineradora!) ofusca a morte instantânea de mais de 11 toneladas de peixes de 98 espécies, sendo várias delas endêmicas do rio, além da ameaça à fonte de sobrevivência das várias comunidades ao longo da bacia. É uma estratégia de desresponsabilização das empresas. A criação da Fundação Renova, enquanto entidade da sociedade civil – ainda que permeada em todos os escalões por antigos funcionários das empresas criminosas – para tratar questões relativas aos atingidos, opera na mesma lógica e foi um dos primeiros artifícios para preservar a imagem das empresas culpadas pelo crime, retirando-as em grande parte dos holofotes.

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Rio, 2015: protesto contra o crime ecológico de Mariana, cometido pela Samarco-Vale-Billington

 

O processo de desresponsabilização atinge até mesmo os desdobramentos judiciais, culminando na suspensão recente, pela Justiça Federal, do processo criminal contra a Samarco, Vale e a BHP e alguns de seus representantes.

O avanço da racionalidade neoliberal propicia não só a emergência de uma diversidade de ONG’s ambientalistas articuladas por uma rede de interesses empresariais como abre espaço para uma visão tecnicista sobre os problemas ambientais. Esta ascendência ocorre a despeito da atuação militante que resiste aos golpes das políticas adotadas pelas empresas e ONGs a elas ligadas, como nos mapeamentos de stakeholders (pessoas interessadas ou impactadas) componentes do estudo de “risco social corporativo”. Muito comuns às práticas empresariais, estes estudos visam a estabilização das resistências, a fim de legitimar a atuação das empresas, a partir da “acumulação de capital social”, que se realiza por meio da ruptura entre comunidade e capacidade crítica[2].

Seguindo esta lógica, a organização e mobilização da sociedade recebe atenção central no gerenciamento dos riscos sociais. Visando lidar com esses “riscos”, as empresas, por canais próprios ou articulados a outras entidades do terceiro setor, buscam aproximar-se e incentivar as organizações, apropriando-se de conceitos como “mobilização” e “engajamento”, quando na verdade estas adequações se limitam ao campo discursivo.

Na atual conjuntura, não só os movimentos de resistência encontram-se em risco diante do avanço neoliberal e das estratégias empresariais, como a produção de conhecimento comprometida pela dimensão ético-política. O desmantelamento das estruturas estatais e dentre elas a Universidade abriu uma fissura estratégica para o entranhamento das empresas culpadas na produção de conhecimento, através dos financiamentos de pesquisa. É neste cenário propício que cresce o assédio da Fundação Renova aos grupos de pesquisa e universidades, visando legitimar suas ações. Processo que se concretiza na parceria entre Fundação Renova e os Fundos de Apoio à Pesquisa e Ensino de Minas Gerais e do Espírito Santo (FAPEMIG e FAPES).

Confluindo com as práticas empresariais, o mito da neutralidade científica é a racionalidade na qual se recostam os interesses hegemônicos, em detrimento da concepção de Universidade em prol daqueles desfavorecidos socialmente. Diante disso, a recusa ao financiamento empresarial e da Fundação Renova é a única forma de garantir que as críticas não sejam neutralizadas.

De modo análogo à ruptura socioespacial explícita na divisão entre os atingidos “com cartão e sem cartão”[3], o ambiente acadêmico afetado pelas estratégias empresariais é esgarçado pela divisão entre os financiados e os não financiados pela fundação. Tal segmentação ultrapassa a questão dos recursos para questionar o lugar da Universidade se coloca, como legitimadora das estruturas postas ou desestabilizadora do campo de forças em prol dos atingidos.

É com o mote “somos todos atingidos” que O Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens convocou o 8º Encontro Nacional do Atingidos por Barragens com lema “Água e energia com soberania, distribuição da riqueza e controle popular”, que ocorreu entre os dias 1 e 5 de outubro, no Rio de Janeiro. A reunião debateu a criação de um modelo energético popular para o Brasil, o fortalecimento da luta pela aprovação da Política de Direitos para as Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e denunciou a desresponsabilização das empresas culpadas pelo crime no Rio Doce.

* Paula Guimarães é mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, pesquisadora do Indisciplinar na frente ação Cartografias frente ao desastre-crime no Rio Doce, vinculado ao projeto extensionista Cartografias Emergentes; Raul Lemos dos Santos é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG,  pesquisador do Indisciplinar na frente ação Cartografias frente ao desastre-crime no Rio Doce, vinculado ao projeto extensionista Cartografias Emergentes.

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[1] O processo de cadastramento nas comunidades atingidas de São Mateus foi iniciado em setembro/2017

[2] ACSELRAD, H. PINTO, R. A gestão empresarial do “risco social” e a neutralização da crítica. Revista PRAIA VERMELHA, Rio de Janeiro, v. 19 nº 2, p. 51-64, Jul-Dez 2009 2009.

[3] Leia mais no InDebate: Com cartão, sem cartão: as fragmentações como estratégia de controle do território pela Samarco (Vale-BHP) https://goo.gl/NpxXZ4

 

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