Como a educação brasileira começou a mudar

Em todo o país, coletivos e escolas enxergam atraso dos métodos educacionais vigentes e constroem alternativas. É hora de mapear e articular este movimento

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Oficina do Projeto Autonomia, iniciativa da UnB, em Brasília. Lançada em 2012, procura investigar e refletir sobre práticas educacionais inovadoras

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Por Tathyana Gouvêa

Junho de 2013. Homens e mulheres das mais diversas idades, classes sociais e etnias nas ruas do Brasil. De Norte a Sul, de megalópoles a pequenas cidades do interior do país, as manifestações populares ganharam as ruas e a mídia brasileira. Dentre as diversas reivindicações estava a melhoria da educação. Para entendermos tal clamor das ruas é preciso compreender que o Brasil, por muitos séculos, teve um sistema educacional para poucos. Apenas com o Manifesto dos Pioneiros, de 1932, a educação laica, pública, gratuita, obrigatória e única entrou na pauta das políticas públicas.

Durante todo o século XX a luta foi para garantir a educação de todos (uma nação que na época já tinha mais de 100 milhões de pessoas). Ainda na década de 1970 as dificuldades eram grandes. Mesmo conseguindo que todos estivessem matriculados no 1º ano, a desistência e a reprovação eram altíssimas, resultando em apenas 40% de alunos matriculados no ano seguinte. O sistema foi se adequando para reter os alunos na escola: criaram-se os ciclos, a progressão automática, e outras tantas estratégias para consolidar a escola como a principal, única e oficial instituição de transmissão dos conhecimentos socialmente valorizados, demanda esta introduzida inclusive por órgãos internacionais. No final do século XX o país tinha garantido a entrada e permanência, chegando em 2006 com 98% das crianças de 7 a 14 anos na escola.

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Pactuação entre educadores e alunos, numa das iniciativas do Projeto Autonomia, da UnB

Mas essa marca foi alcançada com o crescimento do número de escolas e profissionais vinculados a elas sem valorizar a cultura local, a formação dos profissionais, as adequadas condições de trabalho, etc., resultando em um ensino massificado, baseado em apostilas e provas (internas e externas). É diante desse cenário que surgem as manifestações de 2013, cujo clamor era “melhorar a qualidade”, sem direcionar essa demanda para alguma solução, sem especificar o que a população entendia por qualidade. Se por um lado a demanda é genérica nas ruas, as diversas pessoas que já trabalham por uma melhor educação nos diversos cantos do país apareceram nesse momento como articuladores, esboçando possíveis respostas. Ainda que evidenciem ou não em suas falas e ações a correlação com as manifestações (até porque a grande maioria deles já desenvolvia seus projetos antes disso), o fato é que é possível perceber no país um novo discurso se formando em contraposição à escola convencional.

Os projetos que já existiam estão hoje mais fortes e atraindo maior interesse. Novos projetos estão sendo criados e algumas redes começam a se formar e ganhar força (como a Rede Nacional de Educação Democrática), culminando, por exemplo, em um novo manifesto, intitulado “III Manifesto pela Educação” (fazendo referência aos manifestos de 32 e 59, ambos seguidos e “abafados” por golpes de Estado). Diferentemente dos outros manifestos, este foi escrito por educadores e contesta a própria estrutura da escola. Suas proposições vão desde a comunidade de aprendizagem e o ensino integral em tempo integral até a permissão do ensino domiciliar. Este documento teve assinaturas coletadas por internet  e está aberto para contínuas contribuições e debate. Foi entregue em Novembro de 2013 ao Ministério da Educação durante a primeira Conane (Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação), realizada em novembro de 2013, em Brasília.

A Conane foi um marco do movimento que vem ganhando força no Brasil por ter atraído diversas iniciativas de todo o território nacional, dando maior visibilidade a cada uma delas, fomentando também a troca de experiências e a criação de uma rede. O evento foi o resultado coletivo de uma série de iniciativas que vale a pena descrever, para exemplificar as redes que vêm se formando e como atuam. O professor José Pacheco, da Escola da Ponte em Portugal, mudou-se para o Brasil e passou a trabalhar junto a escolas e projetos brasileiros (em 2013 chegou a fazer cerca de trezentas viagens para visitar os mais de cem projetos que acompanha pelo país). Inspirado por ele, um grupo de educadores criou em 2008 a rede “Românticos Conspiradores”. Essa rede se mobiliza principalmente pela internet, trocando informações e conteúdo, mas também realiza encontros presenciais, visando à superação do paradigma educacional vigente. Em 2012 fizeram o 3º Encontro Nacional da Rede Romântico Conspiradores.

Por sua vez, o Coletivo Gaia Brasília, formado em 2012, ligado às práticas sustentáveis, e o Projeto Autonomia, criado em 2010 na Universidade de Brasília (UnB) para investigar e refletir sobre práticas educacionais inovadoras, começaram a se articular para fazer um evento em Brasília dando seguimento às atividades do Manifesto. Em 2013 ocorre ainda a chegada no Brasil de quatro europeus, motivados pelas notícias a respeito das manifestações, reunidos sob um projeto chamado “EduOnTour”. Este coletivo visava fazer um giro pelo país levantando diversas iniciativas, articulando e mobilizando a rede. Esses jovens reuniram todos esses interesses e propuseram o Conane. Além do evento, a iniciativa alimentou o mapa do Brasil no Reevo e terá ainda a produção de um documentário. A ideia de um levantamento de práticas também foi desenvolvida pelo coletivo Educ-Ação no livro “Volta ao Mundo em 13 escolas” e pelo “Caindo no Brasil”, que em breve terá um livro e um mapeamento lançados. Sobre mapeamentos é importante constar que a socióloga brasileira Helena Singer, em 1995, foi quem fez o estudo pioneiro no mundo levantando as práticas educacionais democráticas pelos 5 continentes.

Além de inúmeros coletivos que estão sendo criados, fomentando um novo olhar para a educação, as Fundações têm tido um importante papel dentro do movimento. Elas viabilizam algumas iniciativas e organizam diversos encontros para se pensar o futuro da educação. De maneira geral, atuam diante de uma abordagem tecnológica, buscando atrelar empresas de software, especialmente startups, com empresas educacionais, na tentativa de trazer inovação para a área, passando, portanto, por um redesenho da organização escolar.

É possível perceber que o movimento de repensar o modelo escolar vigente ganha força no país também em função dos conteúdos que começam a ser veiculados na grande mídia. A rede Globo e o grupo Abril têm veiculado reportagens, documentários, entrevistas, etc. em que escolas não convencionais são apresentadas ao grande público. Com uma abrangência menor, porém com uma comunicação mais efetiva e profunda, está uma série de filmes que tratam sobre um novo olhar para a educação e a escola, como o documentário argentino de grande repercussão no Brasil “Educação Proibida” (2012), ou ainda “Sementes do nosso quintal” (2012) e “Quando Sinto que Já Sei”, que será lançado este ano. Esses e outros filmes que tratam dessa temática, com destaque à infância, foram apresentados na Ciranda de Filmes em 2014, estimulando o olhar de muitos paulistas a uma nova e possível educação.

As práticas alternativas à escola convencional sempre existiram no país e no mundo, algumas sufocadas por movimentos ditatoriais, como os Colégios Vocacionais da década de 1960 em São Paulo, outras que desde que iniciaram suas atividades seguem se sustentando e se tornam cada vez mais estruturadas e de interesse para a sociedade, como as escolas Waldorf. A diferença que evidenciamos agora é a convergência dos discursos para a superação da escola convencional. Educadores, jornalistas, empresários e governo reconhecem, ainda que por razões diversas, o fracasso do sistema de ensino brasileiro e do modelo escolar vigente e partem, em certo grau juntos, para desenhar algo novo e que ainda é bastante incerto. O foco na criança, no respeito ao seu ritmo e aos seus interesses, em uma escola que dialogue mais com a comunidade, com conteúdos ligados diretamente à realidade das crianças e jovens, com um espaço flexível, aberto e dinâmico, parece ser uma tendência.

Mas em alguns importantes pontos essa discussão ainda não chegou, provavelmente por serem temas divergentes e não aglutinadores, em um movimento que ainda está se estruturando. Algumas dessas questões seriam: o papel do professor, o currículo, as formas de avaliação, a sustentação de projetos de caráter pessoal, o repasse de verba pública, a coexistência de modelos diante de uma rede pública estruturada, baseada em vestibular e avaliações externas, dentre outras. De qualquer maneira, é notável o avanço que o movimento teve em menos de um ano das manifestações no Brasil. Que os debates continuem e as possibilidades floresçam!

Este artigo é baseado na tese de doutorado que venho desenvolvendo desde 2012 e que será concluída em 2016 junto à Faculdade de Educação da USP. O objetivo deste estudo é analisar o movimento de renovação escolar que está acontecendo no Brasil. Se você tem comentários, criticas ou sugestões que possam contribuir com esta investigação, por favor, me escreva! ([email protected])

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16 comentários para "Como a educação brasileira começou a mudar"

  1. Tania Beatriz Trindade Natel disse:

    Gostei muito de seu texto, Tathyana. Penso que pesquisas inovadoras, como a sua, são extremamente necessárias, a fim de construir alternativas profícuas para a educação no Brasil.
    Com o mesmo intuito que você, elaborei minha tese pensando em encontrar alternativas eficazes para ensinar a língua espanhola a aprendizes adolescentes brasileiros de escolas públicas. Para isso, criei um projeto com diversas tarefas colaborativas, com temas de estudo retirados da realidade dos alunos.
    Na sequência, apliquei essas tarefas com a finalidade de verificar a interação entre os estudantes e a assistência dada e prestada entre eles, objetivando a aprendizagem significativa da língua espanhola.
    Em suma, segundo a percepção dos aprendizes participantes do estudo, as tarefas colaborativas realizadas nas aulas de espanhol foram potencializadoras da aprenderam da língua espanhola e de sua cultura. Além disso, eles acreditam que aprenderam a respeitar-se.
    Tathyana, se você desejar trocar ideias comigo, estarei à disposição.
    Parabéns pelo seu trabalho!
    Um abraço.
    Tania Beatriz Trindade Natel

  2. Flávio Prox disse:

    Tathiana
    Parabéns pelo bom trabalho.
    Mas preciso dizer para você: Eu sou um cara meio velho, já vi muita coisa. E minha conclusão é que precisamos preparar os jovens para este mundo!
    Vou divagar… Quando era mais jovem, defendia que cada um deveria contribuir de acordo com a sua capacidade, e cada um deveria receber de acordo com a sua necessidade. Belo.
    Mas não é assim que o mundo funciona. Nós temos que preparar os jovens para um mundo tecnológico (que assusta um velho como eu, mas representa oportunidades para os que estão chegando),
    Agora chegamos ao ponto: Eu não acredito que com promoção automática, etc., etc., etc., vamos levar esses jovens a algum lugar.
    Escola tem que ser exigente. Os pais devem esperar isto das escolas.

  3. Tathyana disse:

    Fico feliz que tenha gostado do texto Camis. E a publicação deste artigo fez com que escolas e projetos que eu ainda não conhecia me procurassem. Muita coisa está acontecendo pelo Brasil!

  4. Tathyana disse:

    Prezado José Carlos, agradeço muito suas colocações! Seria possível entrar em contato por e-mail com o senhor? Obrigada, Tathyana

  5. Tathyana disse:

    Oi Zinda! Sim, você tem razão. A educação tem sim se tornado um negócio. Não gosto de pensar em grupos “bons” e grupos “maus”, mas é importante reconhecer que se articulam em torno de interesses diversos. Não só pensar que alguns trabalham “de coração”, enquanto outros trabalham “por dinheiro” (até porque normalmente tem um pouco de cada em cada sujeito), mas que também sustentam visões muito diferentes sobre o que é educação. O que a Abril acredita ser uma educação de qualidade certamente é algo muito diferente do que uma escola democrática entende por educação de qualidade. Ou seja, no meu entendimento, a Abril quer sim melhorar a educação do país, e vê nesse trabalho a possibilidade de lucro, a questão é que a educação que a Abril vislumbra para os brasileiros é uma educação baseada em apostilas, por exemplo. O que por sua vez sustenta uma visão de sociedade, que pode não ser a que partilhamos…. o que você acha?
    Abraços!
    Tathyana

  6. Tathyana disse:

    Olá Luciana, concordo com você, muito ainda precisa ser feito. A realidade é muito complexa, são inúmeros sujeitos, com interesses diversos, compreensões variadas e muitos encontros e desencontros. Gosto da ideia de começar pela formação dos educadores. Mas para que haja mudança real, precisa ser completa, não em parte. Prefiro pensar que todas as áreas são importantes e quem tiver interesse em começar por onde vê mais facilidade, que comece! =) Abraços, Tathyana

  7. Tathyana disse:

    Olá Marcio, muito obrigada por partilhar sua experiência conosco! Abraços, Tathyana

  8. Tathyana disse:

    Olá Suzana! Já fui 2 vezes ao Âncora, mas pretendo ir mais! Inclusive fiz o curso “Fazendo a Ponte no Brasil”, que recomendo para quem quiser saber mais detalhes do projeto 😉 Abraços, Tathyana

  9. Tathyana disse:

    Olá Andressa! Fico feliz que tenha gostado do artigo. Sobre o que é sua pesquisa? Abraços, Tathyana

  10. Camis Daniels disse:

    Parabéns muito interessante este artigo, muito bom saber que iniciativas como esta existem e que estão a brotar em nosso país, nos motiva a seguir adiante!

  11. José Carlos Abrão disse:

    Prezada Tathyana, o seu artigo (síntese do seu projeto?) é provocativo e instigante. À medida em que eu o lia, me surgiam várias questões e questionamentos. Por exemplo: ao mesmo tempo que vc. se envolve com dados empíricos na ânsia, quem sabe, de demonstrar que tem um apoio em “dados científicos”, acabou deixando de lado a sua concepção de “vida cotidiana” e suas implicações históricas, filosóficas, dialéticas, etc. para o processo ensinar/aprender. Sinto-me à vontade para percorrer estes caminhos porque, entre outras razões, tive como mestres aqueles professores e pesquisadores que assinaram, dentre outros, o 2o. manifesto (“Mais uma vez convocados”) a que vc. se refere: José Mário Pires Azanha, João Eduardo Rodrigues Villalobos, Roque Spencer Maciel de Barros, que foram meus mestres na graduação (“Conjunto de História e Filosofia da Educação”) e pós. Além disso, para encerrar e sem ter esgotado, ao final dos anos 90 apresentei na reunião da ANPed uma comunicação que girou em torno do movimento que ocasionou discussões que foram parar no Congresso Nacional quando da realização do I Congresso Estadual de Educação do Estado de São Paulo (Ribeirão Preto,1956), quando então a Igreja entrou pra valer na discussão parlamentar que levou ao surgimento da aprovação da I LDBEN. Para encerrar, uma singela sugestão: procure articular as suas idéias, se for o caso, aos grandes tópicos aprovadas recentemente pelo Congresso Nacional com relação ao Plano Nacional de Educação (2.011-2020). (Uma pequena sugestão: cuidado com o uso do termo “Abafado”, porque entre outras razões a Lei 5.692/71 é a chamada “lei da educação da ditadura”, e ela teve algumas bases apoiadas na experiência educacional do Estado de São Paulo que por volta de 68 extinguiu os chamados exames de admissão ao ginásio… (um dos “nós” que eram levantados então contra a ascensão dos filhos da classe pobre ao ginásio… ).

  12. Zinda Maria Carvalho de Vasconcellos disse:

    Só tenho medo desses “grupos de software”, Abril, empresas educacionais etc. Esse pessoal só visa o lucro, nao a melhora da educaçao, Abril sobretudo.

  13. Luciana Maria Rodrigues disse:

    Penso que MUITO ainda precisa ser feito.
    Penso que muitos fazem o máximo que podem e quase nada do que fazem aparece.
    Acredito na FORMAÇÃO DOS EDUCADORES como o primeiro passo, sobretudo educadores da infância.

  14. marcio ramos disse:

    … que beleza… espero que iniciativas assim acontecam em TODO O BRASIL. Seria legal conversar com a professora Maze de Caceres que formou um grupo de educacao com professores, funcionarios e alunos para discutir o racismo e preconceito. Entrevistei 30 professoras que sofreram com o racismo e preconceitos por serem negras, indigenas ou mesticas mas estao superando problemas atraves dos estudos e reunioes extra curriculares. Em Santarem fiz trabalho com escola em Alter do chao que vale a pena conhecer e aqui em Bela Vista da Santissima Trindade, divisa com a Bolivia em uma das maiores comunidades negras que conheco as tradicoes africanas sao cantadas, escritas e vivenciadas. Mas a maioria dos lugares o ensino ainda e precario, poucas aulas, infra estrutura ruim e professores precisando de orientacao comO nos assentamentos do MST que luta muito mas e deixado quase sempre de lado pelo poder publico, uma tristeza como acontece no assentamento Laranjeiras onde estive e cuidam mais de 200 criancas com recursos escassos, estrada horrivel, sem posto de saude, material escolar mas com um povo criativo que eu nem sei como ja colocaram seus pupilos em diversas faculdades, etc.
    Vou enviar emeio dA AUTORA DO TEXTO PARA PROFESSORA mAZE ENTRAR EM CONTATO e outros lugares que eventualmente transito.
    Ah, o povo adora conhecer o OUTRAS….

  15. Tathyana, venha visitar o Projeto Âncora que é a escola que aparece no filme Quando Sinto Que Já Sei.É importante conhecer nosso trabalho na busca da autonomia de nossas crianças e também nossa. Aliás o maior problema acontece com os adultos. As crianças “mudam” com a maior rapidez.

  16. Obrigada pelo excelente compilado de informações sobre essa mobilização nacional em torno das mudanças na educação. Muito útil para nós que pesquisamos isso!

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