Bicicleta lifestyle

Assim como os tuk-tuks na India, ou as bigas em Roma, ela distingue-se dos carros. A outra pessoa está cara a cara. Não tem vidro nem buzina. De repente, o diálogo é novamente possível

170321-TukTuk

.

Assim como os tuk-tuks na India, ou as bigas em Roma, ela distingue-se dos carros. A outra pessoa está à sua frente, cara a cara. Não tem vidro nem buzina entre vocês. De repente, o diálogo é novamente possível.

Crônica de Maria Bitarello

Esses dias fiquei pensando que o tuk-tuk é, pra uma cidade indiana, o que a carroça é (ou foi) no ambiente rural. O que a charrete foi no século 19. O que talvez as bigas tenham sido na Roma antiga. Um meio de transporte que te permite deslocar-se enquanto interage e observa o entorno de outro ângulo, em outra velocidade, mas ainda assim, em proximidade dos demais. O tuk-tuk, mesmo motorizado como é hoje, me parece ser um sobrevivente desse contato no trânsito que ainda era pessoal. E o que me veio à cabeça e ao coração todas as vezes que entrei num tuk-tuk na minha última viagem à Índia, há poucos meses, foi a bicicleta. Eles têm uma vibe parecida. Você tá ali, no corpo-a-corpo. Sobre rodas, mas ao ar livre. O trânsito apertado. O calor do escapamento dos carros. As pessoas a pé. Tudo muito perto. Olho no olho.

Tenho pra mim que andar de bicicleta é o único jeito de sobreviver numa cidade como São Paulo. Pra não enlouquecer, nem deixar o espírito morrer e murchar como um maracujá esquecido na gaveta. Ela humaniza um espaço que pode, aos poucos, desumanizar seus habitantes. Ela me faz lembrar que somos bichos humanos, animais sociais, espécies da convivência. E praticá-la em megalópoles é um árduo, porém vital exercício diário. É preciso estar atenta e forte. Se não, a primeira agressividade que eu receber de alguém vou passar pra frente. Mas não quero fazer isso. Nem quando chutam minha bicicleta na ciclovia, nem quando me “xingam” de petista porque pedalo. Sobre rodas, observa-se o objeto de outro ponto de vista. A bicicleta permite à alma respirar. Os pensamentos vagueiam. Aeram-se as inquietações. E é impossível ficar mal humorada depois de uma pedalada. Simplesmente não dá.

Essa não é a primeira vez que escrevo sobre o “bicicleta lifestyle” (leia os outros dois textos aqui e aqui). Sou uma entusiasta. No período que morei em Paris, a bicicleta salvou meu espírito. Aquela escuridão toda, aquele inverno cinza; estavam arruinando meu bom humor e alegria de viver. Com minha Peugeotzinha mágica atravessei Paris, os invernos e a depressão sazonal. Ela me fazia lembrar que eu tinha corpo, que eu existia. E quando cheguei em Sampa, cinco anos atrás, minha primeira aquisição material foi uma bicicleta. Para além do próprio corpo e da sanidade, pedalar aqui me faz lembrar que habitamos uma das maiores cidades do mundo, com uma concentração humana absurda, e de tal forma isolante que, arrisco dizer, é uma das cidades mais solitárias também. Pedalar é preciso.

Em cidades como o Rio, a natureza é maior que o homem. Existe a cidade, o urbano, as pessoas, os carros, mas a natureza permanece preponderante, como deve ser mesmo. Não estou dizendo que não haja problemas de urbanismo na capital carioca, claro que não. Mas o mar, a serra, as pedras monumentais: não dá pra ignorar. E isso tem um impacto direto sobre a vida nesse espaço, sobre as pessoas que vivem nele, sobre como elas se veem, a si e a seu entorno, sobre o ritmo de suas vidas. Já em cidades como São Paulo e sei lá, Gotham City, o homem tornou-se maior que a natureza. A vontade humana ultrapassou os limites dela; não a enxerga. Levou até uma cidade cercada por dois rios passar por uma seca. E isso também tem impacto concreto sobre os habitantes daqui e afeta diretamente nossa forma de ver o mundo.

Em São Paulo, não se curva um desejo humano diante da potência da natureza. Dobra-se a natureza. Nada pode deter um motorista determinado a atravessar a marginal o mais rápido possível. Pedestres, ciclistas: coisa de pobre, coisa ultrapassada. O negócio é acelerar. São Paulo é a cidade da modernidade. Antropocêntrica. O homem-máquina, por dentro e por fora. O carro blinda tudo. Barulho, calor, poluição, mas também sentimentos, empatia, olho no olho, até a chance de cair, de esbarrar em alguém.

Enquanto isso, cá fora da estrutura de metal, nunca vi um ciclista tão possuído pela ira quanto um motorista que é cortado na pista ou tem sua vaga perdida. O jogo muda. A outra pessoa tá ali na sua frente, cara a cara. Não tem vidro nem buzina entre vocês. Só duas pessoas. De repente, o diálogo é novamente possível.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *