TI: a precarização chega à alta tecnologia

Proliferam no Brasil as plataformas que oferecem consultorias, projetos e suporte técnico em computação. Em comum: trabalho sem direitos, longas jornadas, despotismo algorítmico e gestão férrea do tempo que se deve estar disponível

Imagem: Albert Tercero/The New York Times
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> Este artigo integra as discussões sobre o espraiamento do processo de digitalização da economia, sobretudo no que se refere às empresas-plataforma de trabalho, no Brasil. São publicadas semanalmente em Outras Palavras e fazem parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho. A publicação é fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros textos desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.

> Título original: Plataformas de trabalho no setor de Tecnologia da Informação – TI

As tecnologias de informação e comunicação são tão essenciais nos dias de hoje a ponto de ser consideradas o motor da nova revolução do capitalismo, ao transformar praticamente todas as dimensões da civilização, inclusive as relações de produção e de trabalho. Este macro setor engloba os subsetores de Tecnologia de Informação e Comunicação – TIC (fabricantes de hardware, empresas de telecomunicações e de serviços) e de Tecnologia de Informação – TI (empresas de software e serviços de tecnologia da informação).

No Brasil, em 2020, segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação – BRASCOMM1, o macro setor produziu R$ 505,2 bilhões, ou seja, 6,8% do Produto Interno Bruto – PIB, crescendo 2,1% em relação a 2019 e empregando 1,62 milhão de pessoas. Somente o setor de TIC cresceu 4,4%, empregando 897 mil pessoas, dos quais 679 mil apenas no subsetor de software e serviços (TI) e deve gerar mais de 250 mil postos de trabalho, até 2024.

Trata-se de um macro setor onde o processo de inovação sempre esteve muito presente. Os computadores, por exemplo, são introduzidos na esfera pública, nos anos 1960, com a criação da empresa pública federal SERPRO, seguida da DATAPREV e de outras empresas públicas estaduais e municipais, além da criação de empresas de prestação de serviços de desenvolvimento e operação de sistemas (“birôs de serviços”) para empresas dos mais diversos setores econômicos. Este arranjo empresarial dá origem ao subsetor de software e serviços (TI).

Em sua maioria operando como “fábricas de dados” com áreas de desenvolvimento/manutenção, de entrada e saída de dados e de operação de equipamentos, estas empresas conviviam com multinacionais fornecedoras de equipamentos, sistemas operacionais e software, além de crescente número de empresas de consultoria ou especializadas em segmentos específicos. Apesar da predominância do assalariamento, trabalhadores autônomos (“freelancers”) e birôs de serviços eram contratados quando o projeto exigia um maior número de profissionais ou determinadas especializações.

Os sindicatos, por sua vez, foram criados, em sua maioria, nos anos 1980, a partir de uma forte base constituída nas empresas estatais e representação importante nas empresas privadas. Nos anos 1990, as entidades sindicais sofreram com a reforma do Estado e a reestruturação decorrente da microinformática e da ampliação da capacidade de armazenamento, processamento e transmissão de dados até chegar, nos anos recentes, na nova revolução industrial, sustentada nas tecnologias da informação e comunicação. Vale ressaltar que o subsetor de serviços e software tem um modelo de negócio e de relações de trabalho, no Brasil, que não se diferencia efetivamente dos demais setores econômicos na sua adesão às ideias e padrões hegemônicos neoliberais, incorporando-os com mais rapidez e de forma mais profunda, dada a relação intrínseca com as tecnologias.

Assim, as mudanças políticas e tecnológicas ocorridas no setor nas últimas décadas resultaram no convívio de antigos e novos modelos de negócio: empresas públicas e privadas; grandes fornecedoras de tecnologia e serviços; multinacionais brasileiras e internacionais; desenvolvedoras/sustentadoras de software e serviços; empresas ocupando nichos especializados; rede de empresas; terceirizadoras de atividades externas e internas; fornecedoras de mão de obra; empresas com ambientes físicos e virtuais de trabalho, bem como startups e mesmo unicórnios2. Além de privatização das empresas públicas e terceirização de suas atividades.

Os modelos de negócio estão alterando totalmente o perfil profissional com a redução da digitação e da operação; com o surgimento do suporte ao/a usuário/a final em hardware e sistemas; com o crescimento das funções de programação e análise; com a redução dos postos de trabalho nas empresas públicas e com o crescimento acelerado nas empresas privadas. Consequentemente, antigas e novas relações de trabalho convivem: assalariados/as e autônomos/as; antigos/as freelancers/PJs com os/as microempreendedores/as individuais (MEI); contratação direta e terceiros; tempo indeterminado, determinado ou intermitente; jornada integral e parcial, além de cooperativas controladas pelos/as cooperados/as e falsas cooperativas.

Em meio a essas transformações, os sindicatos tentam ampliar a sua representação para abranger a crescente quantidade de trabalhadores/as em empresas terceirizadoras, autônomos/as, em pequenas empresas e em empresas-plataforma de trabalho.

No que se refere às plataformas de trabalho digital, estas entram no subsetor de software e serviços de TI e são apresentadas ao/a consumidor/a como um modelo de negócio de atendimento ágil, com profissionais qualificados/as, escolhidos/as pelos/as próprios/as demandantes de serviços (empresas e pessoas físicas) e a preços inferiores frente aos demais modelos de serviços. Aos/as trabalhadores/as é narrada a falsa vantagem de tornar-se um/a empreendedor/a, autônomo/a, com flexibilidade de horário e retorno financeiro imediato, podendo escolher seus clientes e determinar os preços a serem cobrados.

No quadro a seguir apresentamos algumas das plataformas de trabalho no subsetor de TI que atuam no Brasil:

https://www.vibbra.com.br/: banco de profissionais para serem “contratados” como freelancer nas áreas de desenvolvimento de software, design, consultoria e projetos e para completar o quadro de TI das empresas
https://encontreumnerd.com.br: suporte e infraestrutura de TI num leque amplo, além de suporte na elaboração de projetos. Também atua na terceirização de serviços
https://www.getninjas.com.br: oferece trabalho em diversas áreas. No caso da TI, são profissionais para o desenvolvimento/manutenção de sites, redes sociais, projetos de e-comercio, sistemas de gestão empresarial e assistência e manutenção de computadores
https://www.findup.com.br: de cobertura nacional, a plataforma oferece serviços na área de TI para empresas em hardware, internet, desenvolvimento, monitoramento e execução de projetos, consultoria e treinamento. Oferta diferentes pacotes de serviço, inclusive de terceirização, sendo uma das mais renomadas.
https://conquestone.pt – plataforma de trabalho que atua mundialmente, ofertando trabalhos em áreas de TI como desenvolvimento, cibersegurança, controle de dados, design, dentre outas.
https://netsupport.com.br: oferece profissionais para a realização de suporte técnico para residências e empresas em microinformática, mobile e telecom e serviços em segurança, redes, sistemas, bancos de dados, etc.

Assim como em outros setores da economia onde as empresas-plataformas de trabalho já estão presentes, como já discutido em outros artigos desta série, no setor de TI elas controlam todo o processo produtivo, através de algoritmos, definindo qual profissional estará disponível e onde, qual será a quantidade de demandas, o tempo e valor do trabalho realizado. Assim, a autonomia, vendida como empreendedorismo, esconde uma relação de trabalho subordinada, sem proteção social e jornadas exaustivas para que os.as trabalhadores.as consigam garantir os rendimentos necessários à sobrevivência. Por outro lado, as plataformas têm receitas garantidas, sem grandes riscos.

No Brasil, num primeiro momento foram as plataformas de trabalho generalistas, que atuam em diferentes atividades econômicas, que passaram a ofertar serviços de assistência e suporte em TI. Mas, rapidamente, novas empresas-plataforma de trabalho foram invadindo o subsetor de TI e ampliando o leque de serviços prestados pelos/as trabalhadores/as, inclusive para aqueles mais complexos, como consultoria, projeto, análise, desenvolvimento de sistemas e sites, suporte técnico em hardware, software e redes, dentre outros, impulsionando o surgimento de plataformas específicas de TI.

Algumas destas plataformas ampliam seu portfólio, ofertando trabalhos a serem executados por profissionais por elas contratados, numa típica atividade de terceirização. Da mesma forma, empresas tipicamente de TI passam a ofertar serviços via plataforma, ampliando a concorrência, mas também precarizando o trabalho.

Todas as plataformas anunciam seleção “rigorosa” dos/as profissionais, com avaliação de currículo e teste de competência, disponibilização de cursos e treinamentos e, ainda, avaliação contínua da qualidade do atendimento. Entretanto, na prática, essas empresas não se responsabilizam pelo trabalho prestado.

Entre as características presentes na maioria das plataformas estão: a cobrança de taxa de adesão e/ou mensalidades; um percentual sobre as transações efetivadas – escalonado em função da quantidade de atendimento; a fixação de limites para a quantidade de atendimento e delimitação do tempo que o/a profissional deve estar disponível.

Esse novo modelo de negócio baseado em empresas-plataforma na área de TI desenvolve-se rapidamente, reunindo um número crescente de profissionais e desafiando a capacidade dos sindicatos de TI na busca para garantir melhores condições de trabalho e proteção social. Esta rápida expansão aponta para a necessidade de uma ampla investigação sobre o seu funcionamento, os subsetores onde as plataformas estão entrando e como os/as trabalhadores/as estão vivenciando essa nova relação de trabalho, destituída de direitos. Esta ação pode permitir aos sindicatos do setor identificar os anseios e necessidades de seus/as representados/as e, dessa forma, construir novas estratégias de enfrentamento. E aponta, também, para o papel do Estado, seja como empregador (no caso das empresas públicas de TI), seja como garantidor dos direitos trabalhistas para a classe trabalhadora, impedindo a continuidade de empresas que negam todos os direitos aos/as seus/uas trabalhadores/as.


1 Para mais informações sobre o setor ver: https://brasscom.org.br/wp-content/uploads/2021/10/BRI2-2021-005-01-Relatorio-Setorial-v61-Restatement.pdf

2 São nomeadas empresas unicórnio aquelas startups avaliadas em mais de um bilhão de dólares. O termo que se baseia na ideia de “um ser raro no mundo de lendas e fábulas”, foi empregado pela primeira vez em 2013 por Aileen Lee, fundadora de uma empresa de investimentos, buscando destacar o quanto é incomum uma empresa crescer tanto em tão pouco tempo.

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