Plataformas: Resgatar direitos sem voltar à relação fabril

Mega-vazamento da Uber mostra: é crucial à democracia regular Big Techs. Mas há que superar equívocos sobre trabalhadores de apps. Desejo de controlar o próprio tempo sem lidar com patrões é legítimo – e pode somar às lutas por uma nova CLT

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Desbloquear o celular e pedir um carro para deslocamento ou uma entrega de objeto/comida por meio de aplicativos já faz parte da rotina de milhões de pessoas ao redor do mundo. Naturalizamos tais ações e muitas vezes esquecemos que a Uber, a primeira empresa a oferecer este modelo de serviço, iniciou suas operações há somente 13 anos, sendo que a entrada no mercado brasileiro ocorreu em 2014. A tranquilidade que nos dias atuais temos para convocar motorista ou entregadores contrasta com os primeiros anos da chegada destas empresas, em especial as vinculadas ao setor de transporte. Foram momentos bastante turbulentos, com greves de taxistas, ações jurídicas-parlamentares para liberarem o funcionamento dos aplicativos e até mesmo cenas de violência promovidas entre taxistas e motoristas em terminais rodoviários e aeroportos.

A novidade revelada esta semana é que muitas destas ações que resultaram em violência foram incentivadas pela própria Uber, que acreditava que o caos facilitaria a (des)regulamentação das leis existentes nos países para liberar a entrada da empresa. Essa é umas das revelações do jornal britânico The Guardian, nomeadas por #UberFiles. O jornal, com o apoio de diversos outros veículos de imprensa, teve acesso a mais de 124 mil documentos secretos da Uber, arquivos que abrangem ações da empresa entre os anos de 2013 a 2017 para adentrar e expandir seus negócios em 40 países. Nos documentos é revelada uma intensa colaboração entre executivos da empresa e políticos relevantes, como Emmanuel Macron, Joe Biden, Olaf Scholz e Benjamin Netanyahu, tendo em vista o favorecimento da corporação.

Além de revelarem que Travis Kalanick, ex-CEO da empresa, incentivou motoristas a irem para locais de confronto com taxistas, os primeiros documentos demonstram também que os diretores da empresa sabiam que seu modelo de negócio operava (e segue operando) na ilegalidade e promovendo práticas de burla dos direitos trabalhistas; o gasto de US$ 90 milhões, em 2016, para lobby junto a políticos influentes, dinheiro muitas vezes utilizado de forma não oficial; o pagamento para pesquisas acadêmicas demonstrarem os lados positivos da empresa com o intuito de disputar a opinião pública e a existência de mecanismos construídos pelo setor de tecnologia da corporação para limpar seus sistemas de dados quando os escritórios eram fiscalizados por autoridades locais, o que ocorreu na Índia, Bélgica, França, Holanda, Hungria e Romênia. Essas são apenas as primeiras denúncias, que ilustram como a empresa buscava esconder suas fraudes trabalhistas e comprar poderes locais para seguir operando.

Práticas ilegais não são algo isolado da Uber, sendo comum no mundo das empresas plataformizadas. Recentemente a iFood também foi acusada de promover uma série de ações ilegais para a manutenção dos seus interesses. Neste caso, o foco eram práticas antissindicais organizadas pela empresa para barrar ações coletivas dos entregadores. Entre as práticas estavam campanhas de publicidade organizadas nas redes sociais de maneira camuflada e a tentativa de “penetrar” falsos entregadores nos protestos para desvirtuar suas pautas.

Esquemas para a cooptação de motoristas/entregadores visando a evitar protestos são bastante comuns por estas empresas, com algumas delas inclusive contratando motoristas/entregadores para fazerem a intermediação entre trabalhadores e seus escritórios, buscando apaziguar os ânimos dos que se sentem injustiçados pelas corporações. No Estado espanhol, durante as disputas em torno da “Ley Rider”, a Deliveroo incentivava, através de bônus e promoções, a filiação dos entregadores numa associação contrária à regulação do trabalho, buscando com isso demonstrar que os próprios trabalhadores não queriam o reconhecimento do vínculo empregatício. Vale dizermos que quando suas práticas não dão certo e as empresas passam a ter a obrigação de garantir alguns direitos trabalhistas, elas muitas vezes param de ofertar seus serviços nos países, como a própria Uber fez recentemente na Colômbia e em Bruxelas (Bélgica).

Nesses termos, as práticas de pressão da Uber, demonstradas pelos #UberFiles, sobre políticos influentes para atacar os trabalhadores e as leis existentes não são necessariamente uma novidade, os setores de “relações governamentais” da empresa já foram bastante denunciados. Entretanto, tais documentos servem para reforçar a denúncia de uma intensa relação entre empresários, investidores de capitais de riscos e o poder político para desregulamentar mercados em favorecimento de seus capitais. As grandes empresas detentoras de plataformas digitais são entes ativos no aprofundamento das políticas neoliberais na contemporaneidade, buscando, muitas vezes por meios ilegais, desmantelar mercados de trabalho, a liberdade sindical e toda e qualquer forma de compromisso social, fortalecendo uma sociedade em que a lógica mercantil e a disputa de todos contra todos seja o único horizonte possível.

Em seu comunicado oficial de resposta ao #UberFiles, a Uber argumenta que estas foram práticas que ficaram no passado, remontando ao período em que Travis Kalanick era o CEO da corporação. Kalanick foi um dos criadores da empresa e deixou o seu comando em 2017, após inúmeras denúncias de assédio sexual e moral contra funcionários. Entretanto, o fato de ser ou não uma prática do passado, o que os documentos revelaram não deve ser analisado como algo pontual que envolve uma empresa – o que por si só é bastante grave –, mas para ilustrar como as empresas vinculadas ao chamado capitalismo de plataforma são parte responsável por mudanças sociais profundas que estão redefinindo a nossa sociedade desde, pelo menos, a crise econômica mundial de 2008, a partir de práticas que atacam a nossa democracia. Portanto, seus modelos de negócio devem ser enfrentados.

Buscando recuperar as taxas de lucro no pós-crise, temos atualmente um momento de reconfiguração da relação entre capital versus trabalho. Um processo de modernização conservadora em que as empresas proprietárias das plataformas digitais são as expressões mais bem acabadas, porém não únicas. Nestas mudanças, busca-se que trabalhadores recebam estritamente pelo que produzem, mercantilizando totalmente a força de trabalho a partir da retirada dos direitos trabalhistas, dos salários indiretos e de seguros que marcaram parte das relações de trabalho, além de transferir riscos e custos dos negócios aos próprios trabalhadores.

Este processo não se iniciou e não se resume ao capitalismo de plataformas. Porém tais empresas são hoje uma parte bastante visível e a mais bem acabada deste movimento do capital. Defendemos essa tese pois a constituição de novas maquinarias, com uma enorme capacidade de captação, armazenamento e análise de dados, permite a cristalização de relações de trabalho marcadas pela intermitência e por uma suposta autonomia, mas que configuram trabalhos baseados na organização pela dispersão. Além de cristalizar tais relações sociais, as empresas dão um passo a mais neste movimento devido a subsunção dos processos de trabalho, marcados pela informalidade, aos processos de valorização do capital. Isto é, vendem-se como promotoras de um trabalho livre e autônomo, mas na verdade praticam novas formas de gerenciamento, controle e organização do trabalho e dos trabalhadores, principalmente a partir do gerenciamento algorítmico, com o intuito de potencializar seus ganhos, além de ampliar as fronteiras do capital.

Os estados nacionais favorecem este processo de redefinições da relação capital versus trabalho principalmente através de Reformas Trabalhistas, que já foram realizadas em mais de 100 países desde 2008. Em sua maioria, como no caso brasileiro, tais reformas flexibilizaram as leis trabalhistas com base na argumentação de que a redução dos custos do trabalho atacaria o desemprego e que era necessário modernizar as leis trabalhistas para que novas relações de trabalho, tais como as promovidas pelas empresas plataformizadas, pudessem ser abarcadas pelas legislações, o que faria com que as taxas de informalidade diminuíssem. O resultado foi justamente o oposto, haja vista que as taxas de desemprego e informalidade não se alteraram na maioria dos países e a força de trabalho foi desvalorizada, levando ao crescimento da miséria e a dificuldade da recuperação econômica. A partir de tais resultados e de pressão dos trabalhadores, alguns países passaram a redebater suas reformas, repensando as leis de trabalho com o intuito de garantir mais direitos.

Entretanto, a promoção de mudanças que visem regular as relações trabalhistas sofre resistência de parte da classe trabalhadora. Como Boltanski e Chiapello demonstraram em seu livro “O novo espírito do capitalismo”, o capitalismo se desenvolve também assimilando sua crítica e toda esta reconfiguração da relação capital versus trabalho se dá a partir de uma forte disputa ideológica sobre os trabalhadores, com a aparente incorporação de parte de seus interesses.

Em decorrência da generalização do que chamamos de modo de vida empreendedor, as palavras “liberdade” e “autonomia” são mais valorizadas do que nunca, o que faz com que os empregos nos moldes ofertados pelas empresas plataformizadas sejam vistos como vantajosos. E em diversos aspectos realmente são, pois a flexibilidade de horário de trabalho permite, por exemplo, que diversos problemas cotidianos possam ser resolvidos com um pouco mais de facilidade. Entretanto, estes pontos não podem encobrir os fundamentos destas mudanças, que consistem justamente no aumento das taxas de exploração da força de trabalho. Pode-se, em tese, trabalhar quanto e quando quiser, mas ao analisarmos algumas das consequências deste modelo de trabalho temos um aumento da jornada total de trabalho, a desvalorização da força de trabalho e o aumento da insegurança para os trabalhadores.

Nas inúmeras entrevistas que já realizei com trabalhadores plataformizados e até mesmo em seus protestos, como no caso dos “Breque dos Apps”, as contradições deste processo foram temas presentes, geralmente a partir de uma chave que reflete a busca pela garantia de alguns direitos ao mesmo tempo que se evita a regulamentação dos empregos. Perante tais dados, devemos fugir de duas leituras que considero limitadas sobre a questão. A primeira, e mais perigosa, é a que identifica tais trabalhadores como conservadores ou de direita somente por valorizarem sua autonomia para organizar suas rotinas de trabalho, pois essa valorização muitas vezes reflete uma fuga do despotismo fabril e das diversas humilhações que marcam as relações hierárquicas em um país com um passado escravocrata como o nosso; o desejo de poderem organizar situações cotidianas de não-trabalho (como a ida ao médico, o aniversário do filho etc.) sem uma negociação direta com o empregador e até mesmo a leitura, em alguns casos correta, que no imediato não ter a carteira assinada permite um aumento dos seus salários (ainda que saibam que no longo prazo isso não é verdade, devido a dificuldade em se aposentarem, a ausência de seguros saúdes em casos de acidentes e de décimo terceiro salário, por exemplo).

A segunda saída é dizer que nesta forma de trabalho estão presentes todos os elementos que configuram uma relação empregatícia e que basta, portanto, incorporar tais trabalhadores à CLT. Essa é uma afirmação verdadeira, já que este trabalho é realizado por uma pessoa física e tem como elementos a pessoalidade, a não eventualidade, a onerosidade e a subordinação. O problema é que este discurso não convence a maioria desses trabalhadores, dando assim munição para que as coisas sigam como estão.

Em nossa opinião, o combate ao trabalho precário, intermitente e sem direitos deve vir, primeiramente, pela valorização do emprego formal. A base para tanto é uma reforma trabalhista que vise não apenas recuperar o que foi perdido com a Reforma Trabalhista de 2017, mas superar os seus limites a partir da ampliação do número de trabalhadores abarcados pelos direitos trabalhistas e o aumento da desmercantilização da força de trabalho, medidas que devem ser complementadas com a valorização dos salários e o combate ao desemprego. Assim, as empresas plataformizadas deixarão de encontrar um terreno fértil para a sua proliferação, pois passarão a enfrentar um mercado de trabalho mais regulado e que propicie melhores rendimentos aos trabalhadores.

Pensando mais detidamente nos trabalhos plataformizados, é necessária a criação de iniciativas que busquem garantir os direitos previstos na CLT ao mesmo tempo em que sejam mantidos os pontos valorizados pelos trabalhadores. Isso não parte da necessidade de garantir menos direitos trabalhistas para estes trabalhadores, mas uma adaptação das leis de acordo com os seus interesses. É necessário atacar o centro do gerenciamento algorítmico, retirando a remuneração vinculada a produtividade e promovendo um salário baseado na hora trabalhada (independente do trabalhador ser ativado pelo aplicativo), ao mesmo tempo em que se pensem formas de garantir jornadas de trabalho flexíveis, a manutenção dos direitos trabalhistas e a liberdade sindical. Aparato tecnológico para fiscalizar e garantir essas medidas existem, pois temos plenas capacidades de abrir as caixas-pretas das empresas e mapear as atividades desempenhadas por cada trabalhador, o que é necessário é uma disputa política em torno dos rumos da nossa sociedade, não permitindo que os discursos em prol de uma suposta modernização tenham como consequência ataque aos trabalhadores e a sociedade.

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Um comentario para "Plataformas: Resgatar direitos sem voltar à relação fabril"

  1. Rosenilda Augusto Sant'Anna disse:

    Boa tarde prezad@s,
    Excelentes leituras das análises conceituais e empíricas.
    Estou muito bem impressionada.
    Bom trabalho a tod@s.
    Cordialmente,
    Rosenilda.

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