Escala 6×1: Hora de acordar os sindicatos
Surgiu, enfim, nova bandeira capaz de reencantar o mundo do trabalho. Mobiliza o desejo de uma vida menos bruta. Desafia a pequenez do capital. Para ser vitoriosa, precisa se espraiar. O movimento sindical poderá assimilá-la – e se renovar?
Publicado 21/01/2025 às 18:56 - Atualizado 21/01/2025 às 19:09
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Dari Krein, um dos autores deste texto, vai debatê-lo no programa Outra Manhã:
Quarta-feira, 22/1, às 8h30
Por Ana Paula Colombi, Anderson Campos, Ariella Silva Araújo, Andréia Galvão, Dari Krein, Elaine Amorim e Patrícia Vieira Trópia1
O debate em torno do fim da escala 6X1 alcançou grande repercussão nas redes sociais, sendo a primeira bandeira em favor da defesa de direitos que as forças do trabalho conseguem emplacar desde o embate em torno da reforma trabalhista de 2017. Além de remeter a uma escala específica, de seis dias trabalhados e um dia de descanso semanal, esse debate recolocou na ordem do dia o tema da redução da jornada de trabalho sem redução de salário, já que as condições de uso do tempo de trabalho não se restringem à forma pela qual a jornada é distribuída.
A popularização da crítica à escala 6X1 começou a ganhar destaque a partir de um desabafo feito por Rick Azevedo, um jovem negro, homossexual, que foi auxiliar de serviços gerais, vendedor, frentista e, na ocasião em que publicou seu vídeo no Tik Tok, era balconista de farmácia2. Mas a que se deve a repercussão dessa pauta? E por que essa mobilização não foi puxada pelo movimento sindical, uma vez que a extensão da jornada laboral é um problema comum a milhares de trabalhadores(as)?
Um primeiro aspecto a ser destacado é que a trajetória laboral de Rick reflete as características preponderantes no mercado de trabalho brasileiro, pois transita entre empregos formais que exigem baixa qualificação profissional e ocupações informais, em que os baixos salários e as longas jornadas se somam à ausência de direitos. O fim da escala 6×1 expressa, por um lado, a denúncia do fato de que uma parte considerável da população ocupada, a despeito de trabalhar muito, não consegue viver de modo compatível com suas aspirações, havendo uma discrepância entre o tempo dedicado ao trabalho e a remuneração obtida. Por outro lado, constitui um clamor, especialmente por parte da juventude trabalhadora, de que a vida não pode ser reduzida ao trabalho. O sentimento de exaustão, compartilhado por trabalhadoras e trabalhadores de diferentes ocupações, fez com que essa bandeira de luta ganhasse expressão na sociedade, obtendo apoio de 70% da população3.
Um segundo aspecto a ser mencionado é que, depois de 40 anos de hegemonia neoliberal, globalização financeira, inovações tecnológicas e reformas laborais que aprofundaram a precarização do trabalho, a insatisfação com as condições de trabalho, o desencanto com o modelo de trabalho contemporâneo, as críticas ao trabalho excessivo – que vêm levando ao adoecimento e ao burnout – têm dado origem a diversas iniciativas de resistência. Uma hipótese é que podemos estar observando a emergência de um movimento, em grande parte ainda subterrâneo, em que as pessoas avaliam que não vale a pena se engajar no trabalho, pois este tem sido mais fonte de frustração do que de realização. Algumas experiências nesse sentido são o 4 Day Week Global, o movimento “Antitrampo”, o “Quiet Quitting”, a “Great Resignation” e o Joy of Logging Off (J.O.L.O.), que priorizam a qualidade de vida, a saúde e o convívio social4. Ao buscar um maior equilíbrio entre a atividade remunerada e as outras dimensões da vida, essas iniciativas têm revelado capacidade de engajar pessoas e repercutir socialmente, sobretudo a partir de campanhas em redes sociais. No caso do Brasil, esse debate tem sido alavancado pelo movimento Vida além do Trabalho (VAT), que tem quase 3 milhões de seguidores.
A proposta 4X3 visa redefinir a escala para 4 dias trabalhados e 3 de descanso. Elaborada por um empresa de consultoria, está sendo vendida para as empresas como uma alternativa para melhorar o ambiente de trabalho, diminuir o absenteísmo e o adoecimento, e aumentar a produtividade e o engajamento. Algo próximo do que foi realizado por Henry Ford no começo do século XX quando, para disciplinar a força de trabalho e, assim, viabilizar a linha de montagem, propôs uma jornada de 8 horas diárias e um salário de U$5,00 ao dia. O 4 Day Week está sendo testado em alguns países centrais, a exemplo de Alemanha, França, Austrália, Canadá, EUA, Islândia, Irlanda, Japão, Países Baixos e Reino Unido, sobretudo em setores que exigem maior criatividade e usam tecnologias avançadas, a exemplo da área de comunicação.
O mercado de trabalho brasileiro é fortemente marcado pela informalidade e precariedade. As longas jornadas, a ausência de descanso e até mesmo de férias, os baixos salários e a desproteção social constituem a realidade de um amplo contingente de trabalhadores(as), com consequências adversas para sua saúde e sociabilidade. Ao mesmo tempo, a carência de serviços sociais adequados e os problemas no transporte público, principalmente nas grandes cidades, agravam o quadro. Além das melhorias no bem-estar e na qualidade de vida no trabalho, a limitação da jornada pode reduzir o adoecimento. Os estudos no campo da saúde ocupacional mostram que a intensificação e a extensão da jornada são os principais fatores que causam doenças, afastamentos, mutilações e mortes. A redução da jornada de trabalho sem redução salarial tem, ainda, um potencial de geração de emprego, podendo, também, melhorar a qualidade do emprego e inclusive aumentar a produtividade do trabalho, com redução da informalidade. Essa medida pode, ainda, incentivar o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho e a promoção de uma melhor distribuição do tempo entre trabalho remunerado e não remunerado entre todos os membros da família.
Esses argumentos embasaram várias propostas de emenda constitucional apresentadas ao Parlamento, como as de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) e do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), entre outras, que propõem a redução gradativa da jornada para 36 horas, sem redução de salário. A elas veio se somar a proposta defendida pela deputada Érica Hilton (PSOL-SP) que, ao encampar a luta contra a escala 6X1, propõe a adoção da escala 4×3 e, ainda, a redução imediata da jornada para 36 horas5.
Como o movimento sindical pode contribuir para o avanço desta pauta?
A luta pela redução da jornada de trabalho faz parte da história do movimento sindical6. Na conjuntura brasileira recente, a bandeira da redução da jornada de 44 para 40 horas semanais sem redução salarial vem sendo levantada pelas centrais sindicais desde 2004. Mas por que os sindicatos não conseguiram mobilizar sua base em torno dessa pauta, enquanto o VAT conquistou tamanha audiência7?
Uma primeira hipótese é que o movimento VAT incorpora aspectos mais abrangentes do que redução da jornada e que vão além de uma mudança na legislação, exigindo mudanças culturais. Uma segunda hipótese é que o movimento sindical se restringe aos assalariados formais, tendo pouca representatividade e legitimidade perante amplos setores da classe trabalhadora, ao passo que o VAT tem sido capaz de interpelar também os(as) trabalhadores(as) informais, constituindo-se em uma expressão política da luta contra as condições precárias de trabalho.
O VAT apela para a necessidade de tempo livre, defendendo uma vida com um nível de exploração e expropriação menos brutal. Ao fazê-lo, coloca em evidência as disputas no capitalismo contemporâneo em torno do tempo de trabalho e de não trabalho, isto é, do tempo destinado ao descanso, aos estudos, ao lazer, à convivência com a família e os amigos. A liberação de tempo de trabalho permite conciliar as atividades da produção com as da reprodução social, mas essa demanda não tem as mesmas implicações sobre homens e mulheres, brancos e negros, tampouco para a população LGBTQIAPN+. Nesse sentido, essa pauta indica ser possível associar a luta coletiva em prol de uma reivindicação universal à defesa das diferenças, afinal, nem todos são iguais e são diferentes as formas pelas quais as pessoas são afetadas pelo uso do tempo. Isso permite, ainda, articular o tema do trabalho a diferentes movimentos sociais, fortalecendo-os mutuamente.
Essas diferenças também dizem respeito aos tipos de vínculo ocupacionais, quer dizer, às formas de inserção no mercado de trabalho, e às categorias profissionais a que cada trabalhador(a) pertence. Reconhecer essas diferenças e, ao mesmo tempo, buscar superar as desigualdades a elas associadas, buscando construir pontes e unificar trabalhadores(as) de diversas categorias, constitui um desafio significativo para o movimento sindical. Isso nos convida a refletir sobre os limites da estrutura sindical. Como balconista de farmácia, Rick seria representado pelo Sindicato dos Práticos, Técnicos e Auxiliares de Farmácia e Empregados no Comércio de Drogas, Medicamentos e Produtos Farmacêuticos do Rio de Janeiro, mas foi no Sindicato dos Comerciários que encontrou apoio para levar adiante sua demanda. É forçoso reconhecer que muitos(as) trabalhadores(as), não se sentem representados(as) pelo sindicato de sua categoria. Apesar disso, e muito embora o fim da escala 6X1 não tenha sido alavancado pelo movimento sindical, isso não significa que os sindicatos não possam e não devam encampar essa luta!
Os desafios, entretanto, não são triviais. Como sabemos, a resistência do patronato e a divisão no interior do próprio movimento sindical fragilizaram a proposta de redução da jornada de trabalho de 48 para 40 horas na Assembleia Nacional Constituinte, levando ao estabelecimento de 44 horas atualmente vigente. Quais as chances do fim da escala 6×1 e da redução da jornada para 36 horas, tal como proposto pelas PECs acima mencionadas, obterem sucesso hoje? De um lado, a atual composição do Congresso Nacional é desencorajadora, pois compreende uma maioria de parlamentares que não tem compromisso com a pauta dos direitos trabalhistas e o STF tem sistematicamente julgado de forma contrária a essa pauta. De outro, a proposta vem ganhando popularidade e, inclusive, adesão de parlamentares de diferentes espectros políticos.
Ainda assim, alguns sindicalistas e militantes argumentam que uma eventual derrota no Congresso Nacional pode enfraquecer o governo. No entanto, o apoio do movimento sindical à pauta, inclusive pressionando o governo, jogaria todo o ônus político de uma eventual derrota no colo do Congresso Nacional. Neste sentido, considera-se fundamental não apenas o envolvimento de distintas organizações trabalhistas, movimentos sociais e de partidos políticos comprometidos com a luta por direitos, mas também a unidade do movimento sindical em torno desta bandeira, fazendo a disputa nos locais de trabalho e demais espaços sociais. Do mesmo modo, é fundamental apoiar a causa sem subordiná-la às condições de manutenção da governabilidade, pois apenas com mobilização social haverá pressão sobre os parlamentares.
A bandeira do fim da escala 6×1 e a redução da jornada de trabalho constituem uma oportunidade política para as forças do trabalho e, especialmente, para o movimento sindical, se reconectar com uma classe trabalhadora cada vez mais heterogênea. Estará o sindicalismo à altura desse desafio? Em outras palavras, será capaz de se somar a uma campanha que emerge a partir de outras formas de organização, participando das manifestações convocadas pelo VAT, em nome da unidade na luta em torno da igualdade social? A história mostra que, com unidade e coragem, é possível transformar indignação em conquistas. O tempo é agora!
1 Grupo de pesquisa sobre sindicalismo ligado à Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar das Reconfigurações do Trabalho (Remir) e ao projeto Fundo Brasil. As pesquisadoras e pesquisadores são institucionalmente vinculados à Unicamp e às Universidade Federal de Uberlândia e do Espirito Santo.
2 O vídeo, que viralizou nas redes sociais, dizia o seguinte: “Eu estou querendo saber quando é que nós, da classe trabalhadora, iremos fazer uma revolução nesse país em relação a essa escala 6×1” […] “não tenho filho, não tenho marido, sou sozinho e não consigo fazer as coisas, imagina quem tem tudo isso e casa para cuidar?”
3 Pesquisa do Projeto Brief, em parceria com a plataforma Swayable (N= 3.122), mostra que o fim da escala 6×1 é apoiado por 70% da população e tem adesão tanto entre quem se diz de esquerda (81,3%) quanto entre quem se define como de direita (59,4%). Cf. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/12/fim-da-escala-6×1-tem-apoio-de-70-da-populacao-e-agrada-a-esquerda-e-a-direita-segundo-pesquisa.shtml
4 Enquanto 4 Day Week Global é uma plataforma que oferece suporte a empresas, organizações e governos interessados na implementação de uma semana de 4 dias de trabalho e na melhoria da produtividade, a insatisfação com as relações e condições de trabalho é expressa pelas iniciativas: “Antitrampo” – um fórum do Reddit, criado em 2021, que se coloca como “um espaço seguro para reclamar do patrão”; atualmente conta com 125 mil membros e apoia o fim da jornada 6×1; “Quiet Quitting” – movimento que rejeita o estilo de vida “viver para o trabalho” e busca estabelecer limites entre trabalho e vida pessoal; “Great Resignation” – refere-se à onda de demissões surgida em 2021, nos Estados Unidos, quando trabalhadores deixaram os seus empregos devido ao excesso de pressão, falta de reconhecimento profissional, ambiente tóxico, etc. Já o movimento “Joy of Logging Off” (J.O.L.O) propõe uma nova relação com as telas e o cuidado da saúde mental a partir do “prazer de se desconectar”.
5 A PEC foi apoiada por 231 deputados, de diferentes partidos políticos. Cf. https://www.brasildefato.com.br/2024/11/18/proposta-contra-jornada-6×1-buscara-mais-assinaturas-antes-de-ser-protocolada-ate-o-momento-sao-231
6 Nos Estados Unidos, a luta pela jornada de oito horas se iniciou em 1886, tendo sido conquistada em 1938 (Fair Labor Standards Act); no Reino Unido, a campanha da jornada de oito horas começou em 1874, alcançando a vitória legislativa em 1919.
7 A ponto de Rick, um de seus fundadores, ter sido eleito o vereador mais votado do PSOL do Rio de Janeiro nas eleições de 2024.