E se a doméstica desafiar a Casa Grande?

No filme Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, trabalho e afeto, mas sob a sagrada norma das elites: “cada um no seu lugar”. Até que uma jovem rebelde recusa-se a ser descartável e ousa contestar o patronato. Parece familiar?

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MAIS
O texto abaixo é parte do livro Direito e Cinema Brasileiro – 51 ensaios jurídicos sobre o cinema brasileiro, organizado por Ezilda Melo, lançado no dia 28/05.

Logo nas primeiras cenas, a diretora brasileira Anna Muylaert revela o significado do título do filme: Que Horas Ela Volta?[1] São três planos que demoram uns minutos, intercalados com os créditos do filme, que concentram todos os elementos a partir dos quais foi confeccionado o roteiro. O primeiro plano define o cenário: uma bela piscina cercada de um grande jardim com uma vegetação exuberante, típica do clima tropical, que representa simbolicamente o lar da classe média mais favorecida paulistana. O segundo apresenta alguns dos protagonistas: um menino de 8/9 anos de sunga e boia brinca alegremente com uma adulta, vestida de uma farda branca própria das empregadas domésticas. O terceiro desvela a trama do filme brasileiro que saiu em cartaz em 2015: o que adivinhamos ser a babá, de costa, fala amorosamente no telefone com aparentemente uma outra criança que se recusa a pegar o aparelho; a pergunta do menino curioso que parou de brincar para ouvir a conversa, permite descobrir que o interlocutor na linha é a filha da babá, que mora “looooonge” dela. A cena encerra com um abraço carinhoso e cúmplice entre duas pessoas obviamente carentes: uma mãe saudosa e talvez culpada, e um menino inseguro que não sabe a que horas volta sua própria mãe. Descobrimos depois que a filha da “secretária” (eufemismo adotado de maneira generalizada, desde alguns anos atrás, para atenuar o aspecto serviçal da profissão), que ficou no interior e confiada aos cuidados de outra pessoa, formulava a mesma pergunta na sua infância. São duas crianças que esperam suas respectivas mães que, em contexto diferente, são ausentes por motivos profissionais.

Não é à toa que os distribuidores franceses (Une seconde mère) e britânicos (The Second Mother) preferiram ao título original desta comédia-dramática um que focou o papel, considerado exótico e passadista no “velho mundo” atual, da “babá”, apelido carinhoso da empregada doméstica que cuida da casa e da prole dos patrões que a consideram “como se fosse da família”. Prática corriqueira ainda no início do século XXI, resquício da escravatura da época da Casa-Grande e da Senzala, o estrangeiro [2] pode achar esquisito ver famílias passeando, no restaurante, na praia ou no shopping, durante e no final da semana, com uma mulher, em geral negra ou morena, que carrega o nenê no colo, lhe dá comida ou o leva para brincar, enquanto os pais conversam, tomam um chope com os amigos. Pode estranhar também ver que essa pessoa subalterna – que poderia ser confundida com Françoise, inspirada pela própria doméstica de Marcel Proust, uma das personagens principais de Em busca do Tempo Perdido, obra que relata a sociedade aristocrática francesa do século XIX – é a primeira que acorda na casa para preparar o café da manhã e a última que dorme, porque espera o jantar terminar para tirar a mesa e deixar a cozinha impecável para o dia seguinte. As falhas do Estado, a falta de creches e de lares de idosos, o ritmo escolar de meio turno, o êxodo rural, o congestionamento de transporte… tornaram e ainda tornam corriqueira a prática do recurso aos serviços das empregadas na grande e pequena burguesia. Anna Muylaert, em uma entrevista no jornal cinéfilo francês Télérama, relatou lembranças da sua juventude: quem a acordava, dava-lhe as refeições e os banhos era sua governanta, nunca sua mãe biológica, tanto que esta situação criava confusão na sua cabeça de criança, quando, por exemplo, a professora da escola pedia-lhe para desenhar sua família. Resumo: “No Brasil, é chique ser mãe, mas não é chique fazer o trabalho de uma mãe” [3].

Os psicólogos e psicanalistas podem nutrir-se deste filme para refletir sobre o papel da mãe [4] e, em particular, a questão paradoxal da mãe ausente e das relações de substituição subsequentes (o cartaz do filme mostra Val radiante abraçando ou acariciando o rosto feliz do adolescente Fabinho). A diretora aborda também uma questão psicológica universal, que perpassa as classes sociais: as relações complexas entre as gerações, pois tanto Jessica, a filha de Val, quanto Fabinho têm relações conflituosas com suas mães. O filme pode também ser objeto de análises sociológicas e demográficas [5]. No entanto, neste livro, consagrado ao Cinema Brasileiro e Direito, enfocamos os aspectos jurídicos abordados pelo filme. São inúmeros, pois trata, além das relações familiares, das questões trabalhistas e, de modo geral, dos direitos fundamentais consagrados pela Carta Magna de 1988 .

O tema de direito do trabalho trazido pelo filme é o da situação da empregada doméstica, em particular das complexas relações entre uma pessoa que está sob o jugo de empregadores e aqueles a quem serve: trabalha dia e noite, nem sempre goza de finais de semana, dorme no local do trabalho, às vezes no quarto da criança ou em uma sala onde cabem apenas uma cama simples e um armário minúsculo, como no filme. Conhece os segredos da família por compartilhar todos os seus momentos da vida, até da intimidade, confessável ou não, de todos os seus membros. Essa relação trabalhista está diretamente atrelada à história do Brasil, em particular à questão da escravidão e da exploração socioeconômica ligada à desigualdade social característica do país [6].

A condição da empregada derrota o mito alimentado por Stefan Zweig e Gilberto Freyre de uma sociedade mestiça onde o racismo seria menos virulento que em qualquer outro lugar do mundo. Como Guy Ryder, Diretor-Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), diz, hoje, o Brasil é ainda o país onde se encontra o maior contingente de trabalhadores domésticos, pessoas que mais sofrem com as condições precárias e salários baixos [7]. Esta situação contraria, pelo menos no Brasil, outra tese defendida, em 1973, pelo sociólogo norte-americano de origem alemã Lewis Coser, sobre a obsolescência do “occupational role” [8].

Val, interpretada pela exuberante e genial atriz Regina Casé, é nordestina, totalmente devotada aos patrões e em particular ao filho deles, Fabinho (excelente Michel Joelsas), que ela criou. Dotada de um temperamento explosivo, porém temperado por um absoluto servilismo e conformismo, ela respira a alegria de viver e transborda de amor, em particular para esta criança com a qual compartilha grande cumplicidade. Sua vida pessoal se limita a deitar alguns minutos no chão, no topo da casa onde fica o varal, para aproveitar o sol, e sair uma vez por semana para tomar um chope e ouvir música com uma amiga, em um bar de rua. No meio do filme, descobrimos que ela não via a filha há 12 anos, pois morava em outro Estado. A câmera de Anna Muylaert projeta o olhar desta protagonista principal ao longo do longa-metragem. Filma quase todas as cenas sob o prisma da Val: a maioria das intrigas da família lhe são reveladas, ouvindo diálogos atrás da porta da cozinha, onde ela reina e de onde espia tudo. Muitos planos ocorrem nos corredores ou na área de serviço. As poucas imagens dos cômodos da mansão aparecem quando Val acorda o amo para lhe servir o almoço ou são gravadas do ponto de vista da personagem invisível da empregada que circula entre os convidados para oferecer bebidas e petiscos.

Esse mundo desigual e arcaico, todavia imutável e inquestionável para Val, sofre transtornos com a chegada surpresa da Jéssica, sua filha que ela não criou, que decidiu se preparar para o vestibular do concorrido curso de arquitetura de umas das faculdades federais públicas mais renomadas. A atriz Camila Márdila, muito bem dirigida por Anna Muylaert, desempenha perfeitamente o papel de uma jovem, curiosa e rebelde, que não aceita viver no mesmo jugo mental e social da sua mãe e, tal o jovem visitante-intruso no filme clássico de Pier Pasolini, Teorema (1968), vai desorganizar a família que a hospeda. Várias cenas filmadas com humor e sutileza demonstram como a menina prodígio [9] desestabiliza tanto a família burguesa quanto a própria mãe, ao romper a “harmonia” do lar: ao descobrir que ela vai ter que dividir o quarto exíguo e sufocante de Val, ela sugere com muita naturalidade, entendida como uma arrogância insuportável pela dona da opulenta casa e com uma estranheza sedutora para o dono, ocupar o quarto espaçoso de hóspedes, que se encontrava vazio; quando ela ousa chamar a patroa (Karine Teles, perfeita neste papel) pelo prenome, “Bárbara”, ou senta na sua mesa para almoçar; ou quando consome o sorvete importado do Fabinho, muito mais saboroso que o comum destinado aos empregados, crime de lesa-majestade para Val e Bárbara. Finalmente, a exasperação da personagem que representa a classe mais abastada do país está no auge quando, ainda sob a decepção pelos péssimos resultados no vestibular do seu único filho, sabe pela Val que a “insolente intrusa” foi classificada na primeira fase do concurso. A Bárbara, ressentida, compensará o fracasso acadêmico de Fabinho por estudos no exterior, na Austrália.

Anna Muylaert, como roteirista experimentada e reconhecida [10], escreveu um diálogo que resume perfeitamente o choque de geração que foi acentuado com as novas políticas de inclusão e de luta contra o racismo e a discriminação iniciadas depois do advento da Constituição Federal de 1988. Abismada pelo comportamento arrojado da sua filha que “não tem noção de nada”, Val resolve lhe ensinar as regras básicas de decoro que são perpetuadas há séculos: “quando eles (os patrões) oferecem é por educação, não por dar”; “se eles te convidam a tomar banho, responda que você não tem biquíni”. E quando Jéssica contesta essas regras e pergunta de onde elas surgiram, Val responde com ênfase: “a pessoa sabe nascendo o que pode e não pode”. Os juristas poderiam equipará-las ao Jus naturale, em direito interno, ou ao Jus cogens, em direito internacional, em outras palavras, às normas que ninguém sabe de onde vêm – de deus, da natureza, da razão? –, mas das quais nenhuma derrogação é permitida. Jéssica, com seu sotaque nordestino que provocou o riso dos patrões e do filho no primeiro encontro, com seu jeito subversivo, vai seriamente perturbar a ordem estabelecida no microcosmo desta família com sua empregada.

A piscina desempenha também um papel crucial para descrever as relações patrão/empregado doméstico; é, sem dúvida, um dos protagonistas importantes do filme. Emblema da riqueza, ela é o local onde cenas essenciais ocorrem. O filme começa na beira dela para situar a estória, como relatamos na introdução, onde a babá constrangida explica ao menino que a convida a pular na água que ela não pode o acompanhar nos seus jogos aquáticos. O menosprezo de classe da patroa se manifesta quando descobre que a filha da empregada se atreveu a mergulhar na piscina, a convite do seu próprio filho e do amigo dele, encantados pela beleza da menina. Numa cena de uma extrema violência simbólica, a dona da casa chama o piscineiro para trocar toda a água ainda cristalina e dar um tratamento de choque afim de higienizá-la, por ter supostamente visto um rato ali dentro. Enfim, a emancipação de Val se materializa pela violação da norma sagrada “cada um no seu lugar”, ao tomar banho de pé nesta piscina com a qual conviveu anos e anos sem nunca ter ousado cair dentro.

Em uma entrevista a uma mídia francesa, Anna Muylaert revelou que ela demorou para escrever o script. Inicialmente Jéssica aspirava a se tornar cabeleireira, – única oportunidade profissional que a prole de uma empregada doméstica sem educação podia alcançar ainda no início dos anos 2000 –, pretexto para fazer um curso de estética e se mudar para São Paulo onde sua mãe, Val, estava radicada. Quando retomou o projeto inicial, no meio dos anos 2010, a diretora atualizou o roteiro, tomando em consideração a nova realidade social, as novas estatísticas que resultavam das novas políticas adotadas a partir de 2004 para melhorar a educação universitária. Várias medidas abriram as portas à parcela da população brasileira, a maior, que até então não podia sonhar em fazer cursos de graduação. Os obstáculos que a classe menos favorecida enfrentava era competir com jovens da burguesia que frequentavam as melhores escolas e colégios particulares da cidade, com professores-estrelas, com o material didático mais avançado e em melhores condições, que se beneficiavam de cursinhos ou aulas extraescolares inabordáveis para filhos de pais que malmente ganhavam um famígero salário mínimo. Ao contrário, os jovens carentes, na maioria do tempo, necessitavam labutar muito cedo, geralmente com trabalhos informais, para ajudar os pais. Enfim, vale ressaltar a impossibilidade de arcar com as próprias despesas de vestibular, pois na época, cada faculdade aplicava sua própria prova; ora, para tentar várias provas, precisava pagar as viagens e a hospedagem nas capitais estaduais onde estão sediadas as faculdades… E se, por milagre, o aluno dedicado e particularmente inteligente conseguia ingressar na faculdade, não tinha como se sustentar, mesmo trabalhando, pois geralmente os horários nas faculdades federais estavam incompatíveis com um trabalho com horários fixos. De maneira paradoxal e ao contrário do que existe nos países anglo-saxões, como os Estados Unidos ou o Reino Unido por exemplo, as instituições públicas constituíam, pois hoje a realidade mudou como veremos a seguir, o feudo exclusivo dos mais favorecidos e as particulares, o das classes mais modestas.

As normas que foram implantadas para melhorar o acesso às universidades foram inúmeras e podemos classificá-las em duas categorias: as macroeconômicas gerais que oferecem o contexto favorável para estudar e as específicas. As primeiras medidas macroeconômicas da Nova República são as que estabilizaram a economia do país[11]. As primeiras políticas de controle da inflação foram iniciadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que assumiu a presidência de 1995 até 2002 e consolidadas pelos governos de Luiz Inácio de Lula da Silva (PT), de 2003 até 2010 e de Dilma Rousseff (PT) de 2011 até 1016. Já o salário mínimo sofreu um salto em 15 anos (passou de R$151,00 em 2000 a R$ 788,00 reais em 2015, ano da estreia do filme Que horas ela volta?). Uma vez o quadro econômico do país estabilizado, foram realizados investimentos nos meios de produção e adotadas, em particular a partir de 2003, medidas para lutar contra a miséria e aumentar o poder aquisitivo como os programas Fome Zero, Bolsa Família ou Minha casa, Minha Vida. Todos foram elogiados no patamar internacional e inspiraram até programas internacionais [12].

Em um contexto econômico internacional e nacional favorável e graças a uma visão voluntarista de mudar a sociedade [13], os governos, a partir dos anos 2000, revolucionaram o mundo acadêmico, com uma série de programas específicos ligados à educação. Como a obra ficcional em análise trata do ingresso de Jéssica no curso de graduação, trataremos somente das medidas federais facilitando o acesso às universidades ao público menos favorecido. Diz o artigo 201 da Constituição cidadã de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O artigo seguinte reza que um dos princípios do ensino é a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, como “a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”. Enfim, o artigo 108 lembra que o dever do Estado com a educação é assegurar “o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística”.

Inúmeros programas concretizaram essas normas constitucionais programáticas. Assim, sem pretensão de exaustividade, podemos citar várias iniciativas das administrações dos presidentes FHC, mas sobretudo Lula e Dilma que propiciaram saltos quantitativa e qualitativamente na educação[14]. A criação de 18 universidades federais públicas, entre 2004 e 2015, visaram expandir e descentralizar a oferta de vagas de estudantes por meio de Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) estimulou também a implantação de escolas técnicas gratuitas e de qualidade; milhões de matrículas foram efetuadas. Os governos estimularam também a criação de faculdades e centros universitários particulares para acrescentar a oferta em todo o território. Mais de um milhão de alunos tiveram acesso a bolsas integrais e parciais de estudos do Programa Universidade para Todos (Prouni). O governo Lula ampliou consideravelmente o programa de financiamento dos estudos (FIES), criado durante o governo do antecessor em 1999, sucessor do Crédito Educativo, implantado pelo regime militar em 1976. Segundo o MEC, quase a totalidade dos novos alunos, esses últimos anos, se matricularam em universidade por meio do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), que democratizou o antigo sistema dos vestibulares. Podemos acrescentar, para completar o quadro, a existência de uma fiscalização em nível nacional que avalia o rendimento dos concluintes dos cursos de graduação, em relação aos conteúdos programáticos, habilidades e competências adquiridas em sua formação: o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) examina os cursos de graduação e as Instituições de Educação Superior de todo o Brasil. Sem dúvida, o sistema não está ileso de críticas e pode ser aperfeiçoado, porém ninguém pode negar os esforços que visam recuperar séculos de desleixo da educação da classe social indigente. Enfim, outra política ambiciosa para efetivar o direito constitucional da igualdade foi a instauração de cotas raciais e sociais para garantir o acesso de todos às universidades. Essa política de cotas começou em 1968, com a Lei do Boi e foi generalizada nos últimos anos do mandato presidencial do Presidente Cardoso. Ao longo do mandato do presidente Lula, o PT deu continuidade e amplitude a essa política afirmativa, tentativa infelizmente frustrada pelas administrações dos governos Temer e Bolsonaro. A decisão da presidente Dilma, concretizada na lei do 7 setembro 2013, de destinar 75% dos recursos do pré-sal para a educação (investimento na valorização dos professores da rede pública, na sua capacitação profissional e nas condições de trabalho), inspirou-se no modelo norueguês do Fundo para as gerações futuras criado com os lucros do petróleo[15]. Hoje, tanto uma análise empírica quanto as estatísticas comprovam que esses programas surtiram efeito pois o acesso ao ensino superior se tornou realidade para milhões de brasileiros [16]. Finalmente, à luz da nova configuração universitária pátria, Anna Muylaert, ao alterar seu roteiro inicial, não hesitou em substituir o curso de estética e cabeleireira, inicialmente escolhido pela Jéssica, por um dos cursos, o de arquitetura, mais concorridos, em uma das faculdades mais prestigiosas, a Universidade de São Paulo (USP), estadual e pública.

Enfim, o filme retrata uma situação que também conheceu mutações que mudaram o contexto de trabalho no Brasil. Existe, segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT [17], em torno de sete milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no Brasil, uma das maiores cifras do mundo. Excluídos do trabalho operário, os escravos libertados em 1888 assumiram os empregos domésticos. Esse lumpenproletariat não entrou no campo de aplicação da CLT, legislação trabalhista que regulou as relações individuais e coletivas do trabalho, sancionada no 1° de maio de 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas. Esperaram os anos 70 e a Constituição Federal de 1988 para beneficiar-se de alguns avanços sociais. Em 2018, o governo Michel Temer, confirmando os compromissos adotados pelos governos anteriores da administração da presidenta Dilma, resolveu finalmente ratificar a Convenção n° 189 sobre o “Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos” que oferece mais segurança a esta categoria. Esse diploma internacional apoia uma série de medidas tomadas para fornecer proteções fundamentais aos trabalhadores domésticos. Foi nesse ano que a chamada PEC das domésticas (Emenda Constitucional n° 72, de 2 de abril de 2013, sobre a Formalização, a Jornada de Trabalho e os Salários das Empregadas Domésticas) [18] foi regulamentada, garantido a esta categoria os mesmos direitos das demais, como jornada de trabalho de oito horas diárias e 44 horas semanais, seguro desemprego, auxílio doença, entre outros. A Lei Complementar n° 150 de 1° de junho de 2015 proibiu o trabalho doméstico para menores de 18 anos e instituiu a jornada de trabalho de no máximo oito horas por dia, o direito a férias remuneradas, a multa por demissão injustificada e o acesso à proteção social, entre outros direitos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, há cada vez menos jovens no emprego doméstico: em 1995, 51,5% das mulheres com até 29 anos buscavam trabalhos nesta área; em 2015, esta proporção era de 16%, uma queda de 35,5 pontos porcentuais. Trata-se de toda uma geração, encarnada por Jéssica no filme, que ganhou mais oportunidades com a universalização do ensino básico nos anos 90 e com a recente expansão e democratização do ensino superior. A isso se soma anos de esforço de seus próprios pais que se conscientizaram da necessidade de que seus filhos estudassem e seguissem por caminhos diferentes. No entanto, cerca de 75% dos trabalhadores domésticos ainda não entraram na formalidade. Da mesma forma, a crise econômica atual, o desemprego e as novas políticas trabalhistas dos governos Temer e Bolsonaro podem alterar consideravelmente o ritmo de valorização do trabalho doméstico. Mas, com certeza, será cada dia mais difícil encontrar pessoas como Val dispostas a sacrificar sua vida, sua família e aceitar alienar suas liberdades. Vivenciaram a experiência da democracia e a redução da desigualdade e, queremos esperar, serão mais aptas a resistir às pressões de uma parte da população, retrógrada, fanática e saudosa dos tempos sombrios do país.

Em conclusão, o filme Que Hora Ela Volta? é uma verdadeira obra cinematográfica que consegue divertir – rimos muito – e retratar as últimas transformações da luta das classes, para usar uma terminologia marxista, que ocorreram nessas últimas décadas no Brasil e, em particular, as conquistas das escravas dos tempos modernos, as empregadas domésticas. Vale lembrar que este filme entusiasmou críticos e públicos do planeta. O longa-metragem brasileiro estreou pela primeira vez no Sundance Film Festival, nos Estados Unidos, onde Regina Casé e Camila Márdila dividiram o Prêmio World Cinema Dramatic Especial Jury por suas atuações como protagonistas no filme. Na seção Panorama do 65th Berlin International Film Festival, ganhou o prêmio de melhor audiência. Em junho de 2015, Anna Muylaert venceu o prêmio de melhor direção no Valletta Film Festival, na ilha de Malta, entre outros 27 prêmios e indicações internacionais[19]. Antes de sair em cartaz no Brasil, o longa já tinha sido visto por quase meio milhão de pessoas na Europa. Somente na França, em apenas quatro semanas de exibição o filme superou a marca de 150 mil ingressos vendidos. Na Itália alcançou a 8ª posição do ranking dos filmes mais vistos. Nos Estados Unidos teve uma bilheteria considerada satisfatória para uma produção estrangeira. O filme ganhou críticas ditirâmbicas no mundo afora. No Brasil, foi indicado pelo Ministério da Cultura para representar o país na disputa pelo Oscar do melhor filme estrangeiro da edição de 2016 e levou mais de 450.000 espectadores[20]. Apesar deste sucesso merecido, o entusiasmo não foi tão óbvio na pátria de origem da diretora. Provocou até críticas violentas e chocantes. A cineasta sofreu ataques sexistas de dois colegas homens pernambucanos, Cláudio Assis e Lírio Ferreira, em Recife, no dia 19 de setembro de 2015[21]. A escritora e jornalista Léa Maria A. Reis conta que algumas mulheres, das zonas nobres das grandes cidades, no meio da exibição do filme, se levantaram, revoltadas, para sair do cinema [22]. Será que o filme incomoda ainda uma parcela da classe média saudosa que espelha neste retrato fino, intransigente e sem concessão da sociedade brasileira, as relações ambíguas com suas empregadas? Será que uma parte dos patrões e da classe média percebe a melhora de vida e a mobilidade social das classes subalternas como ameaça a seus privilégios, como uma traição? [23]

De qualquer modo, este filme [24] contribui de maneira inteligente a explorar e a compreender as grandes mutações inéditas da sociedade brasileira contemporânea e questiona os estereótipos seculares veiculados desde o início da sua história [25]. Ilustra também, de maneira pertinente, o movimento de concretização dos direitos fundamentais, em particular o direito à educação e o princípio de igualdade, e a universalização dos direitos trabalhistas em um país emergente (“emergido”? [26]) que marcaram as duas décadas antecedendo a distribuição do filme ‘Que horas ela volta?’. Boa sessão de cinema!


1 – QUE HORAS ela volta? Direção de Anna Muylaert. Rio de Janeiro: África Filmes e Globo Filmes, 2015 (114 min.).

2 – Para um olhar estrangeiro, ler VIDAL, Dominique. Les bonnes à Rio. Emploi domestique et société démocratique au Brésil. Lille: Septentrion, 2007.

3 – STRAUSS, Frédéric. Anna Muylaert: “Au Brésil, c’est chic d’être mère, mais ce n’est pas chic de faire le travail d’une mère ». Télérama, Paris, 24 jun. 2015. Disponível em: <https://www.telerama.fr/cinema/anna-muylaert-au-bresil-c-est-chic-

d-etre-mere-mais-ce-n-est-pas-chic-de-faire-le-travail-d-une-mere,128502.php>. Acesso em: 10 mai. 2019.

4 – O papel do pai é quase inexistente neste filme: o genitor de Fabinho, rentista ocioso e artista falho em depressão, não consegue existir face a uma esposa egocêntrica, superficial e autoritária. Da mesma forma, são poucas as alusões aos pais de Jéssica ou do seu nenê.

5 – ALMEIDA P. A. de et alii. Uma análise demográfica do filme Que horas ela volta? Disponível em: <http://www.abep.org.br/xxencontro/files/_paper/384-530.pdf>. Acesso em: 10 mai. 2019.

6 – Só podemos convidar a ler ou reler os clássicos da literatura brasileira, como FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala, publicado em 1933 ou HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, publicado em 1936.

7 – Citado por BETIM, Felipe. No país com mais empregadas domésticas, a vida de 7 milhões de mulheres é uma luta. El país, Madri, 14 fev. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/09/politica/1518183910_858999.html>. Acesso em: 11 mai. 2019.

8 – COSER, Lewis A. Servants: The Obsolescence of an Occupation Role. Social Forces, Oxford, v. 52, issue 1, set. 1973, p. 31.

9 – Acabamos de descobrir que a forma feminina do adjetivo “prodígio” não existe.

10 – Entre outras referências, citamos o filme coescrito com A. Muylaert: O ANO em que meus pais saíram de férias. Direção de Cao Hamburger, Rio de Janeiro: Lereby Produções, 2006 (104 min.).

11 – Citaremos somente as políticas federais por motivo de espaço limitado do artigo, mas não queremos desvalorizar as que foram implantadas no nível estadual.

12 – Entre outros: a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), dia 16 de outubro de 2006, no Dia Mundial da Alimentação, lançou o Programa América Latina e Caribe sem Fome 2025 que foi inspirado, segundo o representante da organização internacional no Brasil, José Tubino, no programa brasileiro Fome Zero. SILVA, J. G. da; GROSSI, M. E. Del; FRANÇA, C. G. de Fome Zero. A experiência brasileira (org.). Brasília: MDA, 2010. Disponível em: <http://www.fao.org/3/a-i3023o.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2019. Para a ONU, o “Programa Bolsa Família é exemplo de erradicação de pobreza”. 07 dez. 2011. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/programa-bolsa-familia-e-exemplo-de-erradicacao-de-pobreza-afirma-relatorio-da-onu/>. Acesso em: 11 mai. 2019. Ler também o discurso do Secretário Geral da ONU, Ban Ki Moon, de 2013, que convida os países africanos a se inspirarem neste Programa: disponível em: <https://www.un.org/en/events/southcooperationday/2013/sgmessage.shtml>. Acesso em: 11 mai. 2019. Vale ressaltar que este programa atrela os benefícios à frequência dos filhos à escola. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no seu relatório de 2015, apontou crescimento de 10,5% do IDH brasileiro entre 2000 e 2014 (o índice saiu de 0,653 para 0,755.) Além disso, de 2006 a 2014, a pobreza multidimensional, quer dizer sem acesso a itens básicos de assistência social, caiu de 4% para 2,9%). O Banco Mundial, além da ONU, chegou a recomendar que o governo ampliasse o orçamento previsto para conter o aumento do número de “novos pobres”. <http://blogs.worldbank.org/voices/fr/la-mont-e-en-puissance-des-programmes-de-protection-sociale-en-afrique>. Acesso em: 11 mai. 2019.

13 – Vale lembrar que outros países, nas mesmas condições econômicas internacionais, não conseguiram implantar medidas de inclusão eficientes, como as brasileiras. Basta citar a Índia que conheceu o desenvolvimento econômico excepcional no mesmo período, mas sem diminuir a miséria e a desigualdade social. Ler a obra do prêmio Nobel indiano, economista e filósofo que inventou o IDH, Amartya Sen.

14 – Todas as informações e estatísticas se encontram nos sites do MEC (https://www.mec.gov.br) e do IBGE (https://www.ibge.gov.br).

15 – Ver discurso da presidenta referindo-se ao artigo 250 da CF/88. COSTA, Fabiano; PASSARINHO, Nathalia. Câmara destina 75% dos royalties para educação e 25% para saúde. G1, 26 jun. 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/camara-destina-75-dos-royalties-para-educacao-e-25-para-saude.html>. Acesso em: 10 abr. 2019.

16 – Segundo a pesquisa ANDIFES de 2018, 70,2% dos estudantes das universidades federais possuem renda familiar por capita abaixo de um salário mínimo e meio; quase 50% dos estudantes se autodeclaram pretos e pardos; 52% são mulheres, 60% vêm de escolas públicas, 35% trabalham, 53% utilizam transporte coletivo para frequentar as aulas. V Pesquisa do Perfil do Socioeconômico e Cultural dos estudantes de Graduação das Universidades Federais. Disponível em: <http://www.andifes.org.br/pesquisa-perfil-socioeconomico-dos-estudantes-das-universidades-federais/>. Acesso em: 11 mai. 2019.

17 – Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_616754/lang–pt/index.htm>. Acesso em: 11 mai. 2019.

18 – O presidente atual, Jair Bolsonaro, se vangloria de ter sido o “único dos 513 deputados que votou contra a PEC das domésticas”. Reclamou que a filha dele era doravante obrigada a contratar uma segunda pessoa para cuidar do seu neto. Disponível em: <https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/posts/bolsonaro-foi-o-único-dos-513-deputados-que-votou-contra-a-pec-das-domésticas-fo/248803511935309/>. Acesso em: 10 mai. 2019.

19 – Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Que_Horas_Ela_Volta%3F>. Acesso em: 11 mai. 2019.

20 – Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-231230/bilheterias/>. Acesso em: 10 mai. 2019.

21 – “Que horas ela volta?”: Cláudio Assis polemiza sobre filme de Regina Casé. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2015/09/que-horas-ela-volta-claudio-assis-polemiza-sobre-filme-de-regina-case.html>. Acesso em: 10 mai. 2019.

22 – REIS, Léa Maria A. Que horas ela volta?: com medo de Jéssica. Carta Maior, 25 set. 2015. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cinema/Que-horas-ela-volta-Com-medo-de-Jessica/59/34591>. Acesso em: 10 mai. 2019.

23 – BALTHAZAR, P. A. A. Que horas ela volta? Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, jul. 2016. Disponível em: https://diplomatique.org.br/que-horas-ela-volta/. Acesso em: 10 mai. 2019.

24 – A exemplo do filme americano-mexicano ROMA. Direção de Alfonso Cuarón, 2018 (135 min.), vencedor do Leão de Ouro na Venezia e do Oscar do melhor diretor, que analisa também a dialética empregada doméstica/patrões, no México dos anos 70. Esta obra, todavia, não critica de maneira tão contundente essa relação como no filme em análise. Outros filmes latino-americanos abordaram essas relações complexas entre o patrão e o empregado doméstico fiel: por exemplo, o filme mexicano PARQUE vía. Direção de Enrique Rivero, 2009 (86 min.) ou o chileno LA NANA. Direção de Sebastián Silva, 2009 (95 min.). No Brasil, podemos citar a sátira CASA grande. Direção de Felipe Barbosa, 2015 (115 min.). Este tema interessa também o continente asiático: podemos citar o clássico filme sul-coreano HANYO (a serva). Direção de Ki-Young Kim, 1960 (110 min.) e a recente obra cinematográfica da mesma nacionalidade que acabou de ganhar a Palme d’or no festival de Cannes, em 2019: PARASITE. Direção de Bong Joon-Ho, 2019 (132 min.). No palco de Cannes, o ganhador do prestigioso prêmio homenageou o cineasta francês, Claude Chabrol, diretor do filme que explora as relações mortíferas entre uma empregada doméstica analfabeta e seus patrões: LA CÉRÉMONIE. 1995 (111 min.), inspirado em parte pela peça de teatro de Jean Genêt, AS CRIADAS (1975).

25 – BANCO MUNDIAL. Em meio à estagnação econômica, Brasil enfrenta o desafio de continuar combatendo a pobreza. 20 abr. 2015. Disponível em: <http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2015/04/20/brazil-low-economic-growth-versus-poverty-reduction>. Acesso em: 10 mai. 2019.

26 – THERY, Hervé. Le Brésil, pays émergé. Paris: A. Colin, 2014.

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Um comentario para "E se a doméstica desafiar a Casa Grande?"

  1. josé mário ferraz disse:

    Não é a vida que imita a arte. Ao contrário, a arte imita a vida. Ai está a arte na qual despontam Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger como símbolos máximos da besta-fera que ainda mora em cada ser humano e que os faz comportar do mesmo modo como se comportam as feras de do mundo selvagem; aí estão O Senhor dos Céus, Pablo Escobar, A Rainha do Tráfico e outros filmes sobre corrupção política mostrando a participação das “autoridades” no mundo da criminalidade e a impotência das autoridades sem aspas ante o poder das autoridades com aspas. O filme Que Horas Ela Volta é mais uma demonstração da necessidade de justiça social. Entretanto, sobejamente demonstrada esta realidade, cabe engendrar a superação, papel que se espera seja desempenhado pela juventude, quando ela deixar de não passar de um amontado de babacas futucadores de telefone e frequentadores de igrejas axé e futebola.

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