Sob ataque, a Embrapa precisa renascer

Demissões em massa, corte de verbas, desarticulação das pesquisas. Maior centro de tecnologia agrícola para os trópicos do mundo está em desmonte. Pode reviver, com novo sentido: impulsionar agricultura camponesa e transição agroecológica

Embora tenha apioado a “Revolução Verde”, que marcou a hegemonia do agronegócio, a Embrapa reuniu pesquisadores críticos. Eles ajudaram a desenvolver bancos de sementes crioulas, Pesquisas da empresa podem ser essenciais para transição a um novo modelo agrícola. Por isso, tenta-se asfixiá-la
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Título Original: A Embrapa e o desmonte da pesquisa agropecuária*

Breve histórico e informações gerais sobre a Embrapa

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é uma empresa pública, criada em 1973 e vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), cujo capital pertence integralmente à União. Ao longo de seus 49 anos, vem colaborando decisivamente para que a pesquisa agropecuária brasileira seja referência na produção de soluções tecnológicas para o mundo tropical. Tal atuação foi potencializada com os investimentos destinados à formação e especialização de profissionais e equipes de trabalho, no país e no exterior, e na criação, estruturação e horizontalização de Centros de Pesquisa em todas as regiões do país.

Idealizada durante o regime militar, como parte do plano de modernização da agricultura brasileira e em alinhamento aos princípios da “revolução verde”, a Embrapa rapidamente organizou e desenvolveu tecnologias e soluções que foram entregues, principalmente, para alavancar a “agricultura industrial” brasileira, resultando na ascensão do conceito de agronegócio. Entretanto, em meio à atuação decisiva para o sucesso da agricultura mercantil, formaram-se equipes e projetos fortemente voltados à inclusão social e produtiva, com temáticas voltadas à soberania alimentar, ao meio ambiente, à valorização dos recursos e cultura locais, entre outras, e com recorte metodológico diferenciado, ao priorizar as parcerias, o planejamento e a execução com a sociedade civil. Pesquisas que ganharam ainda mais força e reconhecimento no período de 2003 a 2015.

Hoje a Embrapa possui sete Unidades Centrais, que funcionam em sua sede, em Brasília, e 43 Unidades Descentralizadas, localizadas em quase todo o território nacional, com Centros de Pesquisa temáticos, de produtos e ecorregionais, formando uma rede multidiversa e abrangente. A equipe de trabalho é constituída por 8.043 profissionais na ativa – sendo 2.225 (28%) pesquisadores, 2.313 (29%) analistas, 1.324 (16%) técnicos e 2.181 (27%) assistentes. Do total de empregados, 32% são do sexo feminino e apenas 34% dos cargos de gestão estão ocupados por mulheres.

No final de 2021, a Embrapa possuía 1.121 projetos de pesquisa em execução e, no ano de 2020, o lucro social da Empresa foi de R$ 61,85 bilhões, demonstrando que o retorno anual superou em 17 vezes o valor investido na Embrapa, conforme seu último Balanço Social.

Desmantelamento da pesquisa agropecuária a partir de 2016

Em meio ao recrudescimento da agenda neoliberal no país, a Embrapa passa por uma crise sem precedentes em sua trajetória. Se até meados de 2016, a empresa teve atuação importante junto a órgãos e instituições do governo federal, estadual e municipal, formulando, apoiando e implementando políticas públicas, programas e planos de governo, bem como participando de consultas públicas, grupos de trabalho, comitês e conselhos, exercendo assim seu papel de empresa pública comprometida com o desenvolvimento e a soberania nacional, esse protagonismo e foco de atuação sofreram forte revés.

Embora tenha sido “excluída” da lista recentemente divulgada das empresas privatizáveis, a Embrapa sofreu uma mudança brusca na sua linha de atuação, adequando-se para atender demandas e desejos de determinados setores e grupos privados. Sob comando do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), várias mudanças vêm acontecendo na Embrapa. O processo seletivo para a presidência da empresa foi descontinuado e metade da diretoria é formada por membros externos ao quadro de pessoal, fato inédito na história da Embrapa. O Conselho de Administração (Consad) passou a ser composto majoritariamente por membros indicados pelo Mapa, excluindo-se a participação do representante do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e inserindo-se agora a representação do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI).

Adequando-se a essa nova orientação, em 2018 foi iniciado um processo de “reengenharia” institucional, desmantelando-se assim estruturas organizacionais e infraestrutura já estabelecida para transferência de tecnologia, capacitação de agricultores, comunicação para o desenvolvimento e intercâmbio de conhecimentos, as quais foram abruptamente substituídas por instâncias administrativas e gestores cujas palavras de ordem passaram a ser “negócio”, “ativos” e “lucro”.

Nesse contexto, é importante destacar o acirramento das relações da Embrapa com as demais instituições que compõem o Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA), constituído também pelas Organizações Estaduais de Pesquisa Agropecuária (Oepas), por universidades e institutos de pesquisa de âmbito federal ou estadual, bem como por outras organizações públicas e privadas, direta ou indiretamente vinculadas à atividade de pesquisa agropecuária. Também o relacionamento com a extensão rural pública (Ater) e com as organizações voltadas à educação do campo sofreu os impactos dessa guinada institucional. Por fim, projetos e ações em curso com ONGs e com movimentos sociais que trabalham com as agriculturas familiares/campesinos/povos e comunidades tradicionais estão sendo drasticamente reduzidos ou encerrados.

Em meio à grave crise orçamentária, ocorreu uma mudança substancial na estrutura e programação de pesquisa, priorizando-se o desenho e execução de projetos financiados pelo capital privado. Diante do recuo do aporte financeiro estatal, a solução encontrada foi captar recursos e priorizar pesquisas com resultados para grupos e demandas específicas, dificultando assim a execução das agendas voltadas às demandas das agriculturas familiares/campesinas/povos e comunidades tradicionais, segmentos esses cada vez mais relegados a políticas públicas sociais compensatórias.

A redução no orçamento anual da Embrapa é outro efeito claro do desmonte que tem sido imposto à pesquisa agropecuária nacional. Enquanto tivemos sucessivos incrementos em custeio para a pesquisa e em investimentos, no período de 2008 a 2016 (acima de R$ 500 milhões anuais, incluindo um PAC Embrapa), a partir de 2017, a prática de cortes orçamentários e contingenciamentos passou a ser praxe, comprometendo diretamente a manutenção de rebanhos, campos experimentais, laboratórios e a execução da pesquisa. Para 2022, a Empresa teve seu orçamento discricionário aprovado em R$ 242.878.320 milhões, que é 24% inferior ao necessário para seu custeio geral (em torno de R$ 320 milhões). Essa situação exige a recomposição urgente dos valores orçamentários aprovados para a Embrapa, de forma a serem consonantes com as necessidades da empresa e que garantam o desenvolvimento e a execução da pesquisa agropecuária pública e de qualidade.

Em 2019 a Embrapa promoveu um Plano de Demissão Incentivada (PDI), que resultou no desligamento de 1.191 empregados em diversas áreas e, em 2021, a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (SEST) fixou o limite para o quadro de pessoal da Empresa em 8.934 vagas. Considerando as lacunas geradas pelo PDI e a complexidade exigida para a pesquisa agropecuária frente às mudanças climáticas, à urgência da segurança alimentar da população, e de uma agricultura de baixo impacto sobre o meio ambiente, faz-se urgente que a empresa promova a abertura de concursos públicos e que esses sejam descentralizados, a fim de privilegiar a contratação de profissionais que tenham vínculo com a realidade rural na qual irão trabalhar.

Aprofundando ainda mais o processo, e sob a justificativa da necessidade de redução dos custos operacionais e até mesmo seu quadro de pessoal, a empresa contratou a Falconi Consultoria S/A, para realizar uma segunda onda da chamada reengenharia institucional, explicitando como objetivo “revisar e modernizar o modelo de organização e gestão da Embrapa”. Com apoio do Mapa, iniciou em 2020 uma intrincada operação para obter recursos

financeiros, cerca de R$ 2 milhões para pagar a referida consultoria. Lançou então, por intermédio da Fundação de Apoio Arthur Bernardes (Funarbe), um edital para captação desses valores, sendo a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) e o Sebrae, as entidades que se apresentaram como “financiadores voluntários” para essa “desinteressada empreitada”. A falta de transparência que envolve toda essa engenharia para a contratação da consultoria e, principalmente, os reais interesses, possíveis interferências dos financiadores no estudo entregue e a ser executado e os conflitos de interesse envolvidos são pontos-chave para se exigir dos órgãos fiscalizadores que o processo seja suspenso.

Por fim, e não menos importante, é necessário ressaltar que desde 2018, no que diz respeito à governança e relação com os trabalhadores, a empresa mergulhou em um processo autocrático, onde críticas e até mesmo o apontamento de sugestões que não se alinhem ao pensamento de sua direção costumam ser punidas com sanções e até demissão por justa causa. Somam-se ainda as denúncias crescentes de assédio moral no ambiente de trabalho, o aumento das dívidas trabalhistas e a escolha da arena jurídica para dirimir conflitos dão a dimensão da falta de diálogo, da deterioração das relações de trabalho e da degradação do clima organizacional.

A importância na retomada do desenvolvimento do país

A população brasileira mais que dobrou durante o período de vida da Embrapa (1973 até hoje), a população rural diminuiu (de 44% para 20%) e o número de jovens no campo é cada vez menor, enquanto o número de propriedades rurais aumentou e a produção agrícola cresceu ainda mais. A demanda por alimentos seguros, saudáveis e sustentáveis é crescente, demandas que requerem protagonismo e respostas adequadas da pesquisa agropecuária pública.

Para além da reorganização da pesquisa agropecuária pública, o cenário acima precisa ser equacionado sob a ótica das políticas públicas de forma a valorizar as agriculturas familiares e a população rural, realizar a necessária reforma agrária no país, promover a sustentabilidade de tais agriculturas, garantir a soberania alimentar dos brasileiros, entre outras diretrizes.

Nesse contexto, a agricultura precisa ser considerada, na formulação e execução de políticas públicas, como um vetor de desenvolvimento territorial em bases sustentáveis para garantir inclusão social, produtiva, cultural e acesso à terra aos agricultores. Para a retomada do desenvolvimento econômico, social, ambiental e cultural no Brasil, a missão da Embrapa precisa ser consonante com um país mais justo e igualitário, algo como “ Viabilizar soluções sustentáveis para o desenvolvimento da agricultura com base territorial para a maioria dos

agricultores familiares e povos tradicionais e em benefício da sociedade brasileira”, redirecionando assim a missão atual, qual seja, a de “viabilizar soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira”, que, na tentativa de ser supostamente neutra em seu enunciado, termina por beneficiar os grupos do agronegócio com maior poder de pressão e barganha sobre o estado brasileiro.

Portanto, é imprescindível que a pesquisa da Embrapa se volte prioritariamente para o desenvolvimento e suporte à agricultura familiar, inclusive porque ela contribui com mais de 70% dos alimentos produzidos, vendidos, comprados e consumidos no Brasil. Essa postura exige profundas mudanças na estrutura institucional, hoje hierárquica, autoritária, centralizadora e excludente, tornando-a participativa, democrática, descentralizada, inclusiva e baseada na atuação colaborativa.

Neste sentido, a Embrapa deve reestruturar a forma como se articula com a sociedade para definir prioridades de pesquisa em base territorial, incorporando em sua institucionalidade representantes de movimentos sociais e povos tradicionais, e constituindo redes colaborativas, a fim de fortalecer as agendas social e ambiental. Deve também valorizar a participação de seu corpo técnico em coletivos que representem espaços de co-construção de estratégias e de políticas públicas aderentes às realidades locais e regionais. Ainda, precisa atuar de forma associada com os sistemas de cooperativas agrícolas, as secretarias municipais de Agricultura, os órgãos de assistência técnica e extensão rural (Ater/Ates), as redes sociotécnicas, as escolas técnicas, Oepas, institutos e universidades federais e órgãos que agreguem profissionais das ciências agrárias (Crea, associações, sindicatos).

As agendas de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) da Empresa e os mecanismos de construção da inovação social com base na bioeconomia deverão respeitar o protagonismo das comunidades tradicionais, o saber local, bem como a participação efetiva com controle social e empoderamento das comunidades, em total integração com os processos de capacitação continuada, comunicação, intercâmbio e construção coletiva de conhecimentos com as comunidades, em detrimento da apropriação da biodiversidade pelo capital para fins lucrativos. E a política de recursos genéticos da empresa deve ser revista, a fim de socializar o acesso, principalmente, de sementes para populações indígenas e tradicionais.

No âmbito interno, é preciso destacar a urgência na recomposição do quadro de pessoal da empresa e fortalecer os escritórios de representação e cooperação internacional, os denominados Labex, inclusive tornando transparente o processo de seleção de seus representantes. Também na esfera internacional, a Embrapa precisa retomar as iniciativas bem sucedidas no âmbito da cooperação Sul-Sul – com ênfase em intercâmbio de experiências, conhecimentos e tecnologias sociais com países e com as Redes já consolidadas de agricultura familiar (Reaf, Procisur, etc.) e com os organismos internacionais de cooperação para o desenvolvimento, como a FAO, bem como fortalecer a cooperação científica internacional com laboratórios e instituições de referência no exterior, de forma alinhada às prioridades definidas em sua nova agenda.

Desafios do meu papel de conselheira e como aprimorar essa representação

Como representante eleita pelos trabalhadores para o Conselho de Administração da Embrapa, meu papel tem sido o de defender, intransigentemente, o caráter público da empresa e a aplicação da pesquisa agropecuária para toda a sociedade brasileira, especificamente para os segmentos que de fato precisam dela – as agriculturas familiares/campesinos/povos e comunidades tradicionais.

Do mesmo modo, tenho trabalhado no sentido de apontar para os demais membros do Conselho potenciais riscos para a sustentabilidade da Embrapa, a exemplo dos sucessivos cortes e contingenciamentos orçamentários, e até os riscos para a segurança nacional, no caso de uma privatização da empresa, e eventual entrega ao setor privado/multinacionais do patrimônio genético brasileiro que está sob guarda e estudos da empresa.

Os principais desafios que se apresentam para a minha atuação estão vinculados a aspectos de caráter legal, administrativo e cultural e que podem ser aprimorados por meio da atuação do Congresso Nacional, dos órgãos de controle da governança das Empresas Públicas e Estatais e das próprias instituições, quais sejam:

1 – Limites impostos pela Lei 12.513/2010, que impede a participação dos conselheiros eleitos na discussões e deliberações sobre assuntos que envolvam relações sindicais, remuneração, benefícios e vantagens, inclusive matérias de previdência complementar e assistenciais, por configurar como “conflito de interesse”. Esse aspecto precisa ser revisto, uma vez que em algumas empresas, o conselheiro é impedido até mesmo de expressar sua opinião sobre o tema para “não influenciar” os demais membros do conselho. Já existe projeto de lei em tramitação no Congresso para aprimorar a participação dos conselheiros. Faz-se urgente que a proposta seja “desengavetada”;

2 – Do mesmo modo que se faz urgente a revisão da Lei 12.513/2010, de forma que seja permitida a eleição por meio de chapa, com titular e suplente, com possibilidade de participação do suplente quando das ausências do titular, pois representa uma excelente oportunidade de formação e aprendizado para as eleições futuras;

3 – O reduzido número de mulheres nos conselhos de administração é um aspecto cultural que exige análise e proposição de melhorias de forma urgente. A diversidade de gênero é fundamental nos conselhos, a fim de atender aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), ao Pacto Global da ONU e para que a empresas públicas e estatais possam obter melhor resultado nos índices anuais que avaliam o desempenho de governança das empresas

estatais federais, a exemplo do IG-SEST. Nesse sentido, tenho defendido a implementação de metas específicas na Embrapa para incentivar o acesso feminino a cargos de liderança – incluindo o Conselho de Administração, a Diretoria e a outras posições estratégicas;

4 – A interação entre o conselheiro eleito e os trabalhadores da empresa é fundamental para uma boa prestação de contas. No entanto, o uso dos canais institucionais (e-mail corporativo, redes sociais corporativas etc.) com esse objetivo ainda é um aspecto delicado na maioria das instituições, as quais dificultam ou limitam significativamente tal acesso ao representante, mesmo sabendo que é direito e dever do mesmo prestar contas de sua atuação para aqueles que o elegeram. Nesse sentido, os conselheiros eleitos buscam por conta própria fazer esse trabalho, com uso de suas redes sociais e plataformas de mensagens. Há, no entanto, a necessidade de se prever, legalmente ou nos instrumentos de avaliação do desempenho de governança das empresas estatais federais, a formalização do direito de acesso a esses canais;

5 – A interação com as representações dos empregados (sindicato, associações, representantes nos planos de saúde e previdência complementar) é outra ação necessária que venho fazendo, mas que exige maior periodicidade e planejamento;

6 – A participação em fóruns de discussão com outros conselheiros eleitos é uma ação fundamental para o melhor aprendizado como conselheira, para o estabelecimento de pautas e encaminhamentos conjuntos que possam garantir maior força política e apoio junto ao Congresso Nacional e órgãos de fiscalização.


Este artigo foi publicado originalmente na forma de uma Nota Técnica na 21ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). A publicação pode ser acessada aqui.

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3 comentários para "Sob ataque, a Embrapa precisa renascer"

  1. Ricardo Soares Cohen disse:

    Excelente amiga Selma!!!! Conte
    Comigo se precisar de ajuda!!!! Abração

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