Óleo nas praias: a tragédia tem a marca Bolsonaro

Pesquisadora analisa inépcia de governo diante do desastre. Desmantelou Plano Nacional de Contingência; tardou 40 dias em respostas e só fez ações cosméticas. Comunidades costeiras estão desamparadas — e precisam ser indenizadas

Imagem: Bruno Campos/JC Imagem
.

Yara Schaeffer Novelli entrevistada por Alessandra Goes Alves

“Como pesquisadora há mais de 40 anos, devo dizer que a minha sensação é de vazio e de desrespeito”. É assim que a pesquisadora Yara Schaeffer Novelli traduz o vazamento de óleo que varre o litoral brasileiro desde Agosto e gerou uma mancha de 200 quilômetros de extensão, segundo análises da empresa Hex Tecnologias Geoespeciais, que auxiliou a Polícia Federal nas investigações.

Yara foi a perita judicial da primeira ação civil pública movida no Brasil, em 1983, após um rompimento do oleoduto da Petrobras na Baixada Santista, em São Paulo. Em 1988, tornou-se docente do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), desenvolvendo experiência principalmente sobre manguezais e ecologia de ecossistemas costeiros tropicais.

Ela acompanhou a aplicação de políticas públicas importantes nessa área, como a Política Nacional do Meio Ambiente, regulamentada em 1981, e o Plano Nacional de Contingência (PNC), aprovado em 2013. Neste Plano, Yara era membro titular do Comitê Nacional de Zonas Úmidas.

Em décadas de experiência na área, ela afirma nunca ter visto tamanha desarticulação para responder a um incidente com óleo no Brasil. “Foi uma inércia. O Brasil teria qualificação para lidar com o problema. O governo de plantão é que não estava preparado. Há uma diferença. Eles foram despertar mais de 40 dias depois do início do vazamento”, diz a docente.

Ela afirma que algumas medidas tomadas não estão previstas em nenhum protocolo internacional para incidentes com óleo e enfatiza a necessidade de rearticulação do Plano Nacional de Contingência. 

“O decreto aprovado por Jair Bolsonaro extinguiu os comitês que eram as pernas e os braços desse plano. Mas o decreto diz sobre a possibilidade de recriação dos comitês mediante justificativas. Esse vazamento é excepcional. Então, isso ainda pode ser feito.” 

Confira a entrevista na íntegra:

O que esse vazamento apresentou de novo em comparação a outros que a senhora acompanhou?

A longa extensão em linha de costa, o fato desse óleo vir em forma de pulsos na água e o tipo de óleo, que é mais denso e não boia na superfície. 

Essa alta densidade torna barreiras de contenção ineficazes?

Existem vários modelos de barreiras de contenção, uma para cada tipo de velocidade marinha. Após esse último vazamento, presenciei autoridades em audiências públicas dizendo que barreira de contenção não funciona. Ela funciona, nós não podemos é levar a barreira errada. Se você tem só um modelo de barreira e ela não é adequada, então ela não vai funcionar. 

É preciso enfatizar que o óleo não nasceu com essa densidade. Ele apareceu denso perto da costa. Para ficar grosso desse jeito, esse óleo ficou mais de um mês no mar sofrendo intemperismos (transformações químicas) causados pela ação de luz, vento, sol, temperatura, densidade da água, entre outros fatores. À medida que o tempo passa, o óleo vai perdendo os produtos mais voláteis e ficando grosso. Mas ele foi um líquido mais cremoso quando foi liberado.

Foto: Léo Ramos

O que causa essas manchas em forma de pulsos?

Há eventos em que o óleo sai em pulsos, não é um fato novo. Cientistas já falaram que esses pulsos ocorrem quando há fissuras no fundo submarino. Mas a chegada em pulsos junto à costa, da forma como vem ocorrendo… Sem conhecer a origem do óleo, não sabemos se as manchas seriam originadas em pulsos ou se as correntes marinhas é que estão produzindo esse efeito. Sem saber a fonte desse óleo, ficam muitas interrogações.

Quais fatores biológicos e geográficos dificultaram a resposta ao vazamento atual? 

Não me consta fatores biológicos. O governo federal não tomou atitudes. E, quando veio a tomar, se preocupou em acusar pessoas, instituições e comunidades. Ele assumiu uma posição muito clara em dizer que barreira de contenção não funciona, mas as pessoas foram adequando as barreiras de contenção existentes. Com isso, elas conseguiram dificultar alguma entrada desse óleo intemperizado. O governo federal não quis saber o que poderia vir a funcionar e não distribuiu Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Foram alguns Estados e municípios que colocaram tratores nas praias e foram se virando com o que tinham.

O fato de o óleo vir na forma de pulsos, de ele ter sido detectado já na linha de praia e de ter se dispersado por quase 3 mil quilômetros (o que é quase metade do litoral brasileiro) não é culpa do óleo. É falta de providências. O governo começou a sobrevoar a 10 quilômetros da costa para monitorar, quando deveria ter buscado óleo a 200 quilômetros. Foi uma inércia. O Brasil teria qualificação para lidar com o problema. O governo de plantão é que não estava preparado. Há uma diferença. Eles foram despertar mais de 40 dias depois do início do vazamento e o PNC não foi ativado até hoje. 

Como o decreto aprovado em Abril, pelo presidente Jair Bolsonaro, impactou a resposta a esse vazamento?

O Plano Nacional de Contingência (PNC) foi uma lei aprovada em 2013. O decreto aprovado em Abril pelo presidente extinguiu todos os comitês, conselhos e grupos de assessoramento que não tivessem sido criados por lei. E, com isso, tirou as pernas e os braços que permitiam a ativação desse plano. Eu era representante da sociedade civil no Comitê Nacional de Zonas Úmidas, que cuidava dos manguezais, do Pantanal e de toda a várzea dos rios. Em Abril, esse e outros comitês simplesmente acabaram. 

Como esses comitês funcionavam?

Eles faziam a parte administrativa que garantia a aplicação de leis e de grandes acordos internacionais. Os comitês pensavam como essas convenções seriam aplicadas segundo a realidade e as prioridades do país. Eles pensavam quais áreas precisam ser decretadas como importantes nacionalmente, como seria feita a administração desses sítios, como podemos reproduzir experiências positivas entre gestores dessas unidades de conservação.  Eles eram a gestão do país para cumprir uma convenção internacional de que o Brasil é signatário. Indicavam recursos materiais e humanos para responder a emergências como a que temos hoje.

O PNC fala de articulação para casos excepcionais. Essa vazamento é  excepcional, precisa de uma mobilização em nível federal. Mas o governo não assumiu a responsabilidade. O que foi feito até agora foi um arremedo do PNC. Além do atraso para dar respostas, o Ministério do Meio Ambiente passou as suas responsabilidades para a Marinha, que pertence ao Ministério da Defesa. Esse Ministério passou a organizar ações sem a estruturação do PNC. O problema não foi enfrentado com a seriedade que ele merece. Acharam que podiam jogar esse vazamento embaixo do tapete, mas o tapete ficou curto. Foi maior do que eles imaginavam. Isso se transformou em um problema social grande, não só por causa da extensão do vazamento, mas também pelo grupo economicamente sensível que ele atingiu.

Como a senhora avalia a divulgação das informações sobre o vazamento?

O PNC deixa bem claro que toda a imprensa deve ser informada. Não existe isso de decretar sigilo sobre as investigações do vazamento, como foi feito pelo Ministro do Meio Ambiente. Você desinforma e, a partir disso, as pessoas começam a achar culpados: foi a Venezuela, foram as ONGs, foi o navio grego. Antes de indicar culpados pelo vazamento, precisamos de provas. Elas estão sigilosas também? Como não sabemos de onde vem o óleo? Estamos passando um atestado de incompetência. Mas não somos incompetentes. Nós, cientistas, não fomos acionados. Se o PNC tivesse sido acionado desde o começo, teríamos evitado o tamanho do dano. Enquanto uma mancha de óleo está em alto mar, podemos usar métodos, como tensoativos, para reduzir o tamanho dessa mancha e técnicas para evitar que ela chegue à zona costeira. Uma vez que ela chegou a essa zona, existem outros métodos para serem adotados. Mas nada disso foi feito porque não houve ativação de nenhum dos mecanismos de prevenção. 

Que outros métodos poderiam ser utilizados?

Quando há manchas de óleo no mar aberto, você primeiro toma e minimiza o volume de óleo que está sendo empurrada pelos ventos e pelas correntes em direção à costa. Existem as Cartas Sensibilidade Ao Óleo (Cartas SAO) e o Mapeamento Ambiental para Resposta à Emergência do Mar (MAREM). Ambos são mapas do litoral que mostram, para cada trecho do litoral, tudo o que é sensível, tanto biologicamente como nas atividades socioeconômicas. Onde tem mais pescadores, portos, estuários, praias com alta atividade de turismo, desovas de tartarugas, peixes de determinada espécie, aves migratórias, etc. 

Quando há óleo vindo para a costa, usamos esses mapeamentos para proteger as áreas onde esse óleo pode chegar. Esses mapeamentos foram caríssimos, produzidos por consultorias e  muito bem feitos. Temos essas medidas preventivas. O PNC prevê que, percebido o óleo, vemos quem é responsável por aquela área e essa equipe deve se preparar, pensar o que fazer. Existem protocolos de procedimento. 

Uma vez que o óleo chegou no recife de coral ou no manguezal, não dá mais para tirar. Raspar óleo de pedras na praia ou colocar grandes tratores na praia para tirar o óleo da areia não faz parte de protocolo nenhum. Isso não se faz. É limpeza para inglês ver.

O que recomendam os protocolos internacionais?

As recomendações para tirar óleo da superfície da areia são métodos menos invasivos, como usar rastelo (vassoura de folha). Quando colocamos um trator para andar sobre aquela areia, empurramos o óleo mais para baixo. Aí acham que o lugar está limpo porque não dá para ver o óleo. Não está. Não dá para ver porque o produto de dissolução do petróleo já penetrou na coluna d’água. Pode ter água sem mancha de óleo boiando, mas que tenha produto de dissolução do petróleo e esteja contaminada.

Vemos imagens das comunidades costeiras totalmente desamparadas, com pescadores e marisqueiras entrando em águas contaminadas porque eles não tinham instruções de como operar. Eles entraram só de shorts e camiseta, sem equipamentos de proteção, máscaras, botas nem roupas preparadas. É um crime que cenas como essa ocorram, por desespero e por falta de informação. 

Quais são os impactos ecológicos a longo prazo?

No manguezal, não dá para tirar o óleo. Com a porção de cada bosque de mangue impactado pelo óleo, é muito provável que as árvores morram. Aí tem erosão, que é o grande problema. Porque as árvores é que seguram a lama do mangue. Sem as árvores, pode ter erosão e remoção dessa lama que tem vida. Se essa lama sai dali, ela vai assorear os rios e escurecer a areia das praias.

Nós acompanhamos uma área desde um vazamento de óleo que aconteceu em 1983, em Bertioga (litoral de São Paulo). O mangue morreu. Então, depois de alguns anos, veio outra espécie e colonizou esse ambiente. Essa segunda espécie está morrendo agora. Ainda tem óleo dentro de sedimentos nesse manguezal, mais de trinta anos depois do vazamento. Aparentemente, o vazamento atual tem áreas menores de manguezal impactadas. Mas é difícil estimar o volume original desse vazamento porque o óleo coletado até agora é muito intemperizado. O volume ficou reduzido depois de várias transformações químicas. Por isso, é bem difícil estimar com certa precisão o volume. E temos óleo chegando na costa até agora.

Por que é possível retirar óleo de praia, mas não de manguezais?

As praias são muito mais agitadas. As marés sobem e descem, tem a ressaca do mar. O ambiente de praia é mais agitado, tem mais energia do que os manguezais. E os animais e vegetais que colonizam regiões de praia são munidos por material biológico que vem do mar. A ciclagem de material orgânico que chega nas praias é mais ativa. Em menos tempo, é possível ter uma recomposição.

Qual é a importância dos manguezais para outros ecossistemas?

Eles são berçários naturais para peixes e camarões, servem como pouso para aves migratórias na linha de costa e são rota migratória de aves que vem do Hemisfério Norte. Então, esse vazamento não afeta somente o Brasil. Os manguezais também ajudam a fixar os sedimentos que vem pelos rios e impedir que eles cheguem nas linhas de costa. Isso é importante para impedir o assoreamento de rios e manter canais navegáveis. Além de fixar carbono. Sem manguezais, perdemos um importante fixador de carbono. E, mais do que isso: ao perdermos vegetação, liberamos metano para o ambiente [gás que intensifica o aquecimento global].

Quais são os impactos irreversíveis causados pelo vazamento?

Não dá pra saber ainda. O pessoal do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) está monitorando e apontou que já tem corais morrendo. Isso é o que foi apontado de mais imediato.

Na sua avaliação, quais as medidas mais urgentes devem ser adotadas agora?

Hoje, tem pessoas que não tem o que comer porque estão sem pescar há três meses. É preciso pagar uma indenização para grupos sociais que formam uma cadeia produtiva – desde quem pesca até quem vende a empadinha de camarão. Todas essas pessoas foram impactadas. Em áreas como o Recôncavo Baiano, por exemplo, não são todos que tem freezer. Quem tem, está começando a comer o que havia guardado, porque hoje não dá para pescar. É preciso indenizar esses grupos de subsistência. O que essas pessoas pescam (caranguejo, ostra e peixes pequenos) é vendido no mercado informal. A quantidade de peixe varia de um dia para o outro, depende da maré, de chuvas e da ressaca do mar, elas vendem o que pescam no dia. Essa informalidade não garante estabilidade. Mas não é porque essas atividades de subsistência não tem registro formal que elas não existem. Por causa do óleo, as pessoas estão sendo impedidas de fazer o que garante a sua sobrevivência. 

Há três meses, estamos assistindo a chegada dessas manchas no litoral brasileiro e não sabemos por mais quanto tempo elas vão continuar vindo. Estamos na fase crônica desse vazamento, já deveríamos ter feito medidas de monitoramento. É preciso continuar checando em que áreas esse óleo chegou e não chegou. O decreto aprovado em Abril diz sobre a possibilidade de recriação dos comitês mediante justificativas. Esse vazamento é excepcional. Então, já podiam ter recriado os comitês. Isso ainda pode ser feito, até pensando em futuros vazamentos.

Como pesquisadora há mais de 40 anos, devo dizer que a minha sensação é de vazio e de desrespeito. Não se preocuparam em utilizar da experiência de um conjunto de pesquisadores e grupos de pesquisa que fazem ciência boa. Isso tudo foi ignorado. Quantos recursos financeiros foram investidos na pesquisa no Brasil? E, na hora de colher os frutos desses investimentos na ciência brasileira, não foram buscar a nós nem nossos bancos de dados. A sensação é de vazio e desrespeito. 

Leia Também:

3 comentários para "Óleo nas praias: a tragédia tem a marca Bolsonaro"

  1. Gilmar disse:

    Aqui na Bahia é o governo do PT conivente com a desgraça ambiental a ponto de receber propina com o intuito de beneficiar empresas poluentes sobre estuários e praias. Nesses dias estamos enfrentando empresas que chegaram aqui com apoio desse maldito governo e com licença do Inema onde grande extensão de mangue já foi desmatada.

  2. Joma disse:

    Esta tragédia ambiental tem a marca da política e dos políticos brasileiros em geral – inoperância e incapacidade. Tem a falta de coesão federal, estadual e municipal.
    Por haver explorações e transportes de petróleo em todo mundo, existem experimentos já concluídos de biorremediação com produtos destinados a estimular a atividade de degradação do óleo de modo a combater os efeitos colaterais nos ecossistemas. Mas nada foi feito neste Brasil.

  3. LIGIA NUNES COSTA CARRERO disse:

    Parabéns por entrevistarem Yara Schaeffer Novelli, maior referência em manguezais e ambientes marinhos do Brasil. As recomendações dela deveriam ser seguidas a risca embasadas em critérios técnicos e científicos dessa excepcional profissional, reconhecida internacionalmente.
    Ligia Carrero

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *