O Antropoceno e a longa batalha pelo amanhã
Morreu há um mês Paul Crutzen, teórico que enxergou o início, há 200 anos, de era perigosa, em que a humanidade torna-se força geológica. Leia o breve texto em que ele faz esta proposição e propõe articulação mundial pela sustentabilidade
Publicado 26/02/2021 às 11:06 - Atualizado 26/02/2021 às 12:26
Por Paul J. Crutzen e Eugene F. Stoermer, traduzido por Piseagrama, publicado originalmente IGBP (Programa Internacional da Geosfera – Biosfera)
O nome Holoceno (O Todo Recente) para designar a época pós-glacial dos últimos dez a doze mil anos parece ter sido proposto pela primeira vez por Sir Charles Lyell em 1833 e adotado pelo Congresso Internacional Geológico em Bolonha em 1885. Durante o Holoceno, as atividades humanas gradualmente se tornaram uma força geológica e morfológica significativa, o que foi rapidamente reconhecido por vários cientistas. Assim, ainda em 1864, G.P. Marsh publicou um livro intitulado Man and Nature (que corresponderia, em português, a O Homem e a Natureza), recentemente reeditado como The Earth as Modified by Human Action (que corresponderia a A Terra Modificada pela Ação Humana). Em 1873, Stoppani avaliou as atividades da humanidade como “uma nova força telúrica cujo poder e universalidade podem ser comparados às maiores forças da terra”. Stoppani já falava de uma era antropozoica. Hoje a humanidade já habitou ou visitou quase todos os lugares do planeta; ela já pisou até na lua.
Em 1926, o grande geólogo russo V. I. Vernadsky reconheceu o crescente poder da humanidade como parte da biosfera no excerto em que fala da “… direção na qual os processos de evolução devem seguir, a saber, rumo a uma consciência e a um pensamento expandidos, as formas tendo cada vez mais influência no seu entorno”. Vernadsky, juntamente com o jesuíta francês P. Teilhard de Chardin e E. Le Roy, em 1924, cunhou o termo “noosfera” – o mundo do pensamento – para marcar o papel crescente desempenhado pela habilidade mental e pelos talentos tecnológicos do homem na formação de seu próprio futuro e ambiente.
A expansão da humanidade, tanto em números quanto em exploração per capita dos recursos da Terra, tem sido impressionante. Alguns exemplos: durante os últimos três séculos, a população humana cresceu dez vezes, para 6 bilhões de pessoas, acompanhada por um aumento da população de gado para 1,4 bilhão (o que significa uma vaca por família de tamanho médio). A urbanização também cresceu dez vezes no último século. Em poucas gerações, a humanidade está exaurindo os combustíveis fósseis que foram gerados ao longo de centenas de milhões de anos. A liberação de SO2 na atmosfera devido à queima de carvão e petróleo – cerca de 160 Tg/ano globalmente – é ao menos duas vezes maior do que a soma de todas as emissões naturais, que ocorrem principalmente como dimetilsulfureto marinho dos oceanos. Segundo Vitousek e colaboradores, 30% a 50% da superfície terrestre já foi transformada pela ação humana; mais nitrogênio é fixado sinteticamente e aplicado como fertilizantes na agricultura do que fixado naturalmente em todos os ecossistemas terrestres; o escape de NO originado de combustíveis fósseis e da combustão de biomassa até a atmosfera também é maior do que a emissão natural, causando a formação do ozônio fotoquímico (“smog”) em extensas regiões do mundo; mais do que a metade da água potável acessível é usada pela humanidade; a atividade humana aumentou a taxa de extinção de espécies entre mil e dez mil vezes nas florestas tropicais, e vários gases estufa importantes em termos climáticos aumentaram substancialmente na atmosfera: o CO2 aumentou mais que 30% e o CH4 mais de 100%. Além disso, a humanidade libera várias substâncias tóxicas no ambiente, além dos gases de clorofluorcarbono, que não são tóxicos, mas que geraram o buraco na camada de ozônio na Antártida e que teriam destruído grande parte da camada se não tívessemos criado medidas regulatórias internacionais para acabar com a sua produção. Áreas úmidas costeiras também são afetadas pelos humanos, o que já resultou na perda de 50% dos mangues do mundo. Finalmente, a predação humana mecanizada (a indústria da pesca) remove mais de 25% da produção primária dos oceanos nas regiões de afloramento e 35% das regiões temperadas de plataformas continentais. Efeitos antropogênicos também são bem ilustrados pela história das comunidades bióticas que deixam restos em sedimentos de lagos. Os efeitos documentados incluem modificação do ciclo geoquímico em grandes sistemas de água potável e ocorrem em sistemas distantes de fontes primárias.
Considerando esses e vários outros crescentes impactos das atividades humanas na terra e na atmosfera, que acontecem em todas as escalas possíveis – inclusive global –, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central da humanidade na geologia e na ecologia propondo o uso do termo Antropoceno para a época geológica atual. Os impactos das atividades humanas vão continuar por longos períodos. Segundo um estudo de Berger e Loutre, devido às emissões de CO2 antropogênicas, o clima pode se afastar significativamente de seu comportamento natural ao longo dos próximos 50 000 anos.
Para designar uma data mais específica para o início do Antropoceno, embora pareça um pouco arbitrário, propomos a parte final do século XVIII, apesar de alertarmos que sugestões alternativas podem ser feitas (algumas pessoas podem até querer incluir todo o Holoceno). No entanto, escolhemos essa data porque, durante os dois últimos séculos, os efeitos globais das atividades humanas se tornaram claramente notáveis. Esse é o período em que, segundo dados acessados a partir de amostras de gelo glacial, iniciou-se o crescimento, na atmosfera, de concentrações de vários gases estufa, em particular CO2 e CH4. Essa data também coincide com a invenção, em 1784, por parte de James Watt, do motor a vapor. Por volta daquela época, meios bióticos na maioria dos lagos começaram a mostrar grandes mudanças.
A não ser que ocorram grandes catástrofes como uma enorme erupção vulcânica, uma epidemia inesperada, uma guerra nuclear em larga escala, um impacto de asteroide, uma nova idade do gelo ou o contínuo saqueamento dos recursos da Terra por tecnologias ainda primitivas (os últimos quatro perigos podem, no entanto, ser prevenidos em uma noosfera em funcionamento), a humanidade vai continuar sendo uma importante força geológica por muitos milênios, talvez por milhões de anos. Uma das principais tarefas futuras dos homens será desenvolver uma estratégia mundialmente aceita que leve à sustentabilidade de ecossistemas contra estresses induzidos por humanos, e isso vai requerer pesquisa intensiva e aplicação inteligente do conhecimento até aqui adquirido na noosfera, mais conhecida como sociedade do conhecimento ou da informação. Uma tarefa empolgante, mas também difícil e assustadora, se coloca para a comunidade mundial de pesquisa e engenharia, para que lidere a humanidade em direção a um gerenciamento ambiental que seja global e sustentável.
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