Humanos & Plantas, uma relação política

Em livro recém-publicado, a cosmovisão dos povos da floresta e experiências agroecológicas convidam a imaginar a vida livre da lógica do agronegócio. Diversidade social e biológica pode ser a chave para ressignificar luta por outra sociedade

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Esta é a apresentação do livro Vozes vegetais – diversidade, resistências e histórias da floresta, organizado por Joana Cabral de Oliveira, Marta Amoroso, Ana Gabriela Morim de Lima, Karen Shiratori, Stelio Marras e Laure Emperaire, e publicado pela Ubu Editora. Você pode comprar o livro aqui. Que colabora com o jornalismo de profundidade de Outras Palavras tem desconto de até 30% . Se você ainda não colabora, conheça o Outros Quinhentos, nosso programa de financiamento coletivo

Por Joana Cabral de Oliveira, Marta Amoroso, Ana Gabriela Morim de Lima, Karen Shiratori, Stelio Marras e Laure Emperaire

O despertar de um interesse renovado pela vida vegetal em diferentes áreas do conhecimento – na política e na filosofia, nas artes e nas ciências – é em grande parte motivado pelo lugar central que as plantas ocupam no debate acerca da crise ambiental, climática e ecológica em curso, com seus desafios para os coletivos a um só tempo humanos e não humanos. Da “cegueira vegetal” à “virada das plantas”, a crítica à desvalorização da vida vegetal, sobretudo no pensamento moderno, desconstrói a visão recorrente que a reduz a meras paisagens objetificadas e associais, seres caracterizados por inércia e apatia, fixidez e imobilidade, ausência de consciência, sentidos e palavras. A concepção das plantas, e mais amplamente da “natureza” como “recurso” a ser explorado ou protegido, está profundamente ligada à catástrofe ecológica promovida pelas atividades humanas baseadas no modo de vida capitalista.

Em contrapartida, os saberes dos povos tradicionais do passado e do presente, assim como dos agricultores familiares e das comunidades locais, contribuem para a promoção da diversidade simultaneamente social e biológica, motivando pensamentos e resistências em resposta aos imprevisíveis “fins de mundos” catapultados pelo generalizado modelo de plantation de (des)fazer o mundo. Uma concepção das plantas, dos animais e de outros não humanos como sujeitos sencientes, incluindo aqueles chamados de abióticos, é também uma característica marcante dos ameríndios e de outros povos tradicionais. Deparamos com uma diversidade de práticas e conhecimentos enraizados nos territórios, inseparáveis de cosmologias e modos de vida, que encarnam e se entrelaçam com histórias e trajetórias de vida particulares. Em circulação ao longo de gerações, tais saberes não são estáticos – estão em constante experimentação, transformação e invenção.

Esse panorama de perguntas e problemas atravessa os artigos aqui reunidos. Vozes vegetais tem suas raízes no seminário organizado em abril de 2019 na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e é um dos frutos do fértil debate que o encontro fez brotar. Com a participação de pesquisadores indígenas e não indígenas de diferentes áreas, ativistas de grupos quilombolas e de assentamentos que se dedicam à agroecologia, e com a contribuição de uma poeta cuja obra dá destaque ao universo vegetal e, aqui, aliada com as plantas, nos convida, ao abrir cada parte do livro, a experimentar suas transformações e afetos, tivemos por objetivo promover uma conversa entre essa pluralidade de perspectivas e de formas de engajamento com as plantas, explorando novas linguagens, metodologias, teorias, práticas, caminhos éticos e mesmo teóricos.

A parte I oferece uma visão panorâmica que mapeia algumas questões gerais do campo filosófico, político e antropológico do debate contemporâneo. A começar pelo lugar da vida vegetal na metafísica e nas práticas científicas ocidentais, em particular, na história natural do século XIX, com os questionamentos acerca da estrutura hierárquica na qual o animal é tomado como modelo do vegetal, e o homem como modelo do animal (capítulo 1). Num salto histórico para o século XXI, somos confrontados com o movimento inverso de perda de confiança nas ciências, promovida pelo reacionarismo modernista que, em sua cegueira e surdez comprometidas com os ideais desenvolvimentistas, relega ou simplesmente nega os riscos socioambientais relacionados ao desmatamento acelerado, ao aquecimento global, à acidificação dos oceanos, à erosão da biodiversidade e dos solos (capítulo 2). Da perspectiva do direito, evidenciam-se as dissonâncias entre o tratamento dado pelo nosso regime jurídico às plantas cultivadas e o modo como populações tradicionais vivem e concebem os vegetais que habitam seus roçados; nossos instrumentos legais e de proteção de direitos estão aquém das filosofias e práticas tradicionais, estas, as principais responsáveis por manter um acervo fitogenético amplo e diverso (capítulo 3). Do ponto de vista das plantas e das paisagens, observa-se o uso indiscriminado de pesticidas, fertilizantes e sementes transgênicas pela agricultura em escala industrial; porém, em contraste com esse modelo hegemônico do monocultivo latifundiário, encontramos numerosas possibilidades de agriculturas e modos de vida contraestatais (capítulo 4). São histórias de ambientes devastados e formas de existência severamente impactadas, mas também de enfrentamento aos projetos de aprisionamento e extinção de modos de vida, de luta pela terra pelos que foram dela alijados – a exemplo do movimento liderado pelas famílias dos assentamentos em Sorocaba, no estado de São Paulo, que se aliam em torno da agroecologia, da biodinâmica, dos orgânicos e de iniciativas voltadas à sustentabilidade (capítulo 5).

A parte II trata da contribuição dos povos do passado e do presente, que habitaram ou habitam a floresta amazônica, para a produção da diversidade de espécies vegetais e paisagens. Embora a bacia amazônica seja conhecida como um importante centro de domesticação de plantas, muitas das espécies utilizadas no presente não são domesticadas, o que sugere que, pelo menos desde o Holoceno Médio, predominam na região sofisticadas estratégias de manejo de sistemas agroflorestais, capazes de produzir uma “hiperdiversidade” de determinadas espécies vegetais. Questionando o falso dilema posto na oposição entre plantas selvagens e domesticadas, a arqueologia demonstra, por meio das relações entre os povos indígenas e as plantas das florestas, uma multiplicidade de práticas de cultivo que não se limitam a uma concepção unívoca de agricultura. As histórias da castanha-do-pará ou castanha-da-amazônia (Bertholletia excelsa), da araucária (Araucaria angustifolia) e do pequi (Caryocar brasiliense) expressam na paisagem os sofisticados conhecimentos e práticas dos povos indígenas (capítulo 6). Diante dos novos dados apresentados pelas pesquisas sobre a ocupação humana na região amazônica, torna-se evidente a importância de revisar as categorias e os conceitos mobilizados para descrever suas populações e paisagens, bem como de buscar novas formas de periodização histórica, menos pautadas em modelos externos e alheios à região. Assim, observa-se durante o Holoceno um incremento expressivo da agrobiodiversidade, incluindo populações de plantas domesticadas ou não, que não pode ser dissociado de igual diversidade sociopolítica (capítulo 7). Já no presente, seguindo a trilha da produção da biodiversidade e de suas práticas associadas, exploram-se a variedade e o refinamento das biotecnologias desenvolvidas para a produção de alimentos, bem como a correlação entre corpos e plantas na Amazônia indígena (capítulo 8). Nesse sentido, dois caminhos de análise abrem indagações a respeito de duas espécies em particular: a análise morfogenética e etnobotânica da cuieira, os frutos das árvores do gênero Crescentia (Bignoniaceae), utilizado de longa data por diferentes povos das Américas (capítulo 9); e o trabalho etnográfico, a par da pesquisa em fontes históricas, sobre a batata manhafã (Casimirella spp.) do povo indígena Mura, que habita as regiões de interflúvio dos rios Madeira e Purus no estado do Amazonas (capítulo 10). Essas plantas se inscrevem em paisagens relacionais marcadas pela ação de humanos e não humanos, notável no cotidiano, conectando diferentes temporalidades e memórias afetivas vinculadas a lugares e a parentelas.

A parte III propõe uma reavaliação do arcabouço conceitual antropológico mobilizado para compreender as relações humanos-plantas, em particular com base em experiências etnográficas recentes com povos indígenas da família Arawá, na região do Médio Purus. Segundo os Banawá, as plantas, notadamente certas árvores, marcam os tempos e suas transformações. Nos caminhos do parentesco, as plantas – timbó (Deguelia sp.), castanheira, flecheira (Gynerium sagittatum) e tabaco (Nicotiana tabacum) – instauram um “princípio de precaução”. A vida aldeã, efeito das transformações relacionais, estreitou o vínculo com as plantas do roçado à revelia das plantas da floresta cuja ação a contradomestica e desestabiliza (capítulo 11). As pupunheiras (Bactris gasipaes) entre os Jarawara, por sua vez, compõem a rede de relações e afetos que garantem a vida póstuma celeste, ressaltando a centralidade de uma estética do cuidar implicada tanto nos trabalhos práticos quanto nas obrigações éticas conduzidas pelas mulheres, que envolvem humanos e não humanos (capítulo 12). A inspiração também provém do feminismo especulativo, buscando outras formas de contar novas histórias e de pensar as relações entre as mulheres Jarawara e suas plantas. Também a literatura é o ponto de partida da reflexão sobre o devir-planta das mulheres jamamadi ao longo do processo de fabricação corporal no ritual pubertário.

Nessa cosmologia do Médio Purus, os desdobramentos prático-conceituais dos processos do desenvolvimento humano oferecem hipóteses para pensar o modelo de vida a partir e com as plantas, levando-nos a refletir sobre “o que há de vegetal nos humanos” (capítulo 13).

A parte IV tematiza o corpus mítico-ritual e os calendários sazonais e agrícolas que expressam conexões multiespecíficas profundas entre os ciclos de vida das pessoas, das plantas, das roças e das florestas. A castanheira, uma das árvores mais emblemáticas da floresta amazônica e historicamente manejada por diversos povos indígenas, quilombolas, seringueiros etc., é foco de dois artigos. O primeiro deles busca aceder à perspectiva da castanheira por meio do pensamento mitopoético do povo indígena Apurinã, habitante do Alto Purus, entre o Acre e o sul do Amazonas (capítulo 14). O segundo ressalta os saberes locais dos quilombolas do Alto Trombetas, em Oriximiná, no Pará, suas concepções acerca da criação e da reprodução das florestas de castanhais, ressaltando as redes de parceria com sujeitos diversos que não se restringem ao protagonismo humano (capítulo 15). Da floresta às roças, as plantas cultivadas se revelam sensíveis aos cantos dos humanos, assim como entoam seus próprios cantos. Ganha destaque o milho (Zea mays), considerando a importância tanto da diversidade de variedades locais, muitas das quais correm o risco de desaparecer das roças, como de suas múltiplas expressões culturais.

Entre os Krahô do Tocantins, as histórias e os cantos do milho ecoam as muitas vozes do Cerrado, que cantam e contam sobre seu jeito de ser e de viver. As narrativas, as performances e os cantos rituais ligados ao ciclo de vida do milho conectam complexas relações entre os vários sujeitos humanos e não humanos, que asseguram a alegria, a fertilidade e a resistência das roças e do Cerrado (capítulo 16). Também os Guarani Kaiowá de Panambizinho, no Mato Grosso do Sul, possuem importantes cuidados e cantos direcionados às plantas das roças, em especial o milho, para que estas amadureçam, promovam colheitas férteis e possam ser consumidas sem riscos à saúde (capítulo 17). Em ambos os casos, trata-se de saberes rituais transmitidos por várias gerações atualmente restritos a poucos especialistas.

Resta reiterar, por fim, que os artigos aqui reunidos formulam, em múltiplas vozes e miradas teóricas, caminhos conceituais conceituais e éticos, formas de engajamento e linguagens a partir das e com as plantas. Eis o suficiente para se afirmar a premência de outras alianças com os diversos seres que conformam o cosmos, sem que o humano reclame qualquer excepcionalidade. De sua parte, a humanidade aí emaranhada já não se pensa à parte das plantas.

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