Gardi Sugdub, onde o planeta já começou a afundar

Numa ilha do litoral panamenho, 1300 indígenas Guna comprimem-se e aguardam o deslocamento inevitável. Nas próximas décadas, 900 milhões de pessoas podem enfrentar o mesmo destino, se o aquecimento global não for detido

Ilha de Gardi Sugdub / Michael Adams
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Na costa atlântica do Panamá, a ilha de Gardi Sugdub é apenas uma das mais de trezentas que fazem parte da província de Guna Yala, uma região autônoma do Panamá que é lar de mais de 30 mil indígenas da etnia Guna. Cerca de dez anos atrás, parte da sua comunidade, composta por cerca de 1.300 pessoas, começou a se organizar um plano local para escapar daquilo que deverá ser uma constante global: o desaparecimento de ilhas por conta da elevação do nível do mar.

Ainda que o problema da superlotação do local – com mais de mil pessoas ocupando um território correspondente a quatro campos de futebol – tenha sido o fator inicial ao plano, o lento mas contínuo avanço das águas sobre a comunidade, assim como as cada vez mais violentas tempestades tropicais – ambos os casos intensificados por conta das mudanças climáticas – apenas tornou mais evidente que a decisão de deixar para trás os seus lares, era a única coisa que garantiria seus futuros.

O povo Guna habita essas ilhas caribenhas desde meados do século 19, quando eles abandonaram a região em que viviam, próximo da fronteira com a Colômbia, refugiando-se nelas para escapar das restrições impostas pelos colonizadores espanhóis, assim como das doenças causadas pela imensa população de mosquitos naquela parte da selva. De certa maneira, esse isolamento contribuiu para que a cultura e costumes tradicionais dos Guna fossem preservados, ao contrário do que ocorreu com outros povos originários da parte continental do Panamá. Mas numa triste ironia, o deslocamento em massa em nome da sobrevivência agora se repete, e infelizmente, a situação do povo Guna não é único.

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O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), estima que até o final do século, mantidas as condições atuais, o nível dos oceanos pode subir até 1 metro. Pode parecer difícil de conceber, mas isso traria consequências dramáticas para o mundo. Em um comunicado recente, o secretário-geral da ONU António Guterres afirmou que o planeta corre o risco de experimentar um período de “êxodo numa escala bíblica”. Por conta da contínua elevação do nível do mar – que é primeiro uma consequência e, depois, uma das amplificadoras do aquecimento global – cerca de 900 milhões de pessoas estão sob risco de terem que abandonar suas casas, cidades, países.

Ainda que tais palavras soem como um futuro distópico, sua perversidade já é bem presente em muitos locais do planeta, em especial nas chamadas “pequenas ilhas”, um grupo de países que se estende do Pacífico ao Caribe, do sul-asiático à costa africana. Estes são os países mais vulneráveis e os primeiros a sofrerem com as mudanças climáticas – as quais, numa adição de ironia sádica, eles quase nada têm de responsabilidade em suas causas, quando comparados às potências do Ocidente e os gigantes industriais asiáticos, como China e Índia.

Eles estão na linha de frente do perigo real imediato do aquecimento global e sua terrível consequência de elevação do nível dos mares – não só pela probabilidade de que eles submergirão, mas também pelas constantes enchentes, a contaminação dos reservatórios de água doce pela água salgada, a inundação de plantações, a erosão da costa, a salinização do solo e a diminuição da área habitável das ilhas.

A aparente inevitabilidade de que os habitantes de tais países sejam os primeiros dos previstos 900 milhões que terão que encontrar outro lugar para viver, os colocaria num grupo comumente chamado de “refugiados climáticos” – o qual, seria de se imaginar, que mesmo tendo perdido seus lares por uma situação a qual eles não são responsáveis, eles encontrariam abrigo e estariam protegidas sob as leis internacionais. Infelizmente, isso não é verdade, pois essa terminologia sequer existe no ordenamento jurídico internacional.

Em termos gerais, uma pessoa refugiada é alguém que atravessou uma fronteira internacional por conta de um temor “bem estabelecido de ser perseguida por sua raça, religião, nacionalidade, participar de um grupo social específico ou por opiniões políticas”. É isso que se diz a Convenção do Status de Refugiados, de 1951. Ao longo dos anos, a definição de “refugiado” se estendeu para pessoas fugindo de “eventos que perturbam seriamente a ordem pública”. (a última possui quase 40 anos, sendo a Declaração de Cartagena). Mas nenhuma delas avançou ao ponto de contemplar as mudanças climáticas. Tanto que o próprio Conselho dos Direitos Humanos da ONU solicita que se utilize o termo “pessoas desabrigadas no contexto de desastre e mudança climática”. A razão para tal é porque, em tese, os efeitos da mudança climática criam um deslocamento interno no país antes que ele force as pessoas a atravessarem fronteiras.

Ainda que a terminologia se encaixe na semântica correta, o jogo de palavras parece privar as populações afetadas não só da urgência de suas necessidades, mas também as deixam num limbo jurídico, mantendo-as num estado de vulnerabilidade e incerteza sobre o seu futuro e o de suas famílias.

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A respeito da fragilidade que tais populações vivem, vale tomar a situação do povo Guna na ilha de Gardi Sugdub como exemplo. Um recente relatório publicado pela Human Rights Watch expõe como a própria população vem se organizando há mais de dez anos para sua relocação à parte continental do Panamá – e tido como uma espécie de caso de estudo para lidar com a situação – eles ainda não foram capazes de se mudar. Após diversas mudanças na data para a relocação, e a promessa do presidente Laurentino Cortizo de que ela se concretizaria no dia 25 de setembro de 2023, o Ministério da Habitação a adiou novamente para fevereiro de 2024. “A nova data é a última de uma série de promessas não cumpridas, que incluem a hospital parcialmente construído, e agora abandonado, e um progresso lento na construção de uma escola. As autoridades não ofereceu uma explicação completa sobre esses atrasos aos membros da comunidade, que exigiram maior transparência nos prazos e alterações orçamentárias, deixando-os temerosos que o novo prazo não será cumprido”, lê-se no relatório.

Ao mesmo tempo, outras 38 comunidades no Panamá requisitaram planos semelhantes por conta da combinação de superlotação e o aumento do nível do mar. Se o futuro para elas parece incerto mesmo dentro de seus países, o que será daquelas cujas fronteiras internacionais poderão ser o único destino aos quais recorrer?

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