Esperança como ação: caminhos ao pós-pandemia

A “nova” crise é fundada num problema antigo: as desigualdades brutais. O fatalismo não nos salvará. Saídas podem estar na inteligência coletiva – os “paraquedas coloridos” de Ailton Krenak — e na agroecologia. O futuro será comunitário

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Por Isabela Kojin Peres, Luã Trento e Bruno Fernandes | Ilustração: Benedetto Cristofani

A humanidade vem contando para si mesma uma mentira há muitos séculos: de que toda crise é nova, e que, independente do problema, a tecnologia nos ajudará a superá-la. Existe razão na afirmativa de que, toda mentira pode conter um fundo de verdade. Sim, toda crise traz em si novas situações a serem superadas, mas, mais do que isso, as crises são parte de um movimento histórico.

A pandemia em um mundo globalizado escancara um desafio novo de um problema antigo: o modelo de sociedade. Exemplos de paralelo ao passado não faltam, como a destruição de povos indígenas e comunidades tradicionais e as novas formas de colonização; a retirada de direitos trabalhistas; os governos totalitaristas (hoje associados ao liberalismo e ao neoextrativismo, realizando a necropolítica); o patriarcado e as diversas formas de violência; o acúmulo de riquezas; o apartheid social e racial, entre outros exemplos.

Uma dimensão, relativamente nova, porém intensa e complexa da modernidade é a crise ambiental, afetando todo o planeta e colocando a existência da humanidade em um novo patamar de risco, com a mudança do clima. Para ilustrar o tamanho do impacto alguns cientistas declararam que vivemos em uma nova era geológica, o Antropoceno (uma era geológica moldada pelo ser humano), também chamada de Capitaloceno.

É sempre importante ressaltar a convergência entre elas, porque dizem respeito a um mesmo projeto, que demonstra toda sua perversidade no Governo Bolsonaro.

A Narrativa Única

Ailton Krenak diz no livro “Ideias para adiar o fim do mundo” que estamos caindo. De fato, o mundo que conhecemos e suas falsas fantasias parecem desmoronar, trazendo sentimentos como medo, angústia, paralisia e também raiva, revolta e indignação, especialmente diante do cenário político. Essa sensação de “fim de mundo” e de “morte das utopias e dos futuros possíveis” é ironicamente reforçada por uma visão de que não há nada além e fora do capitalismo:

As coisas sempre foram assim!” “É impossível de mudar!” ou ainda “Tudo só tende a piorar!”.

É a desesperança, em forma de fatalismo.

Trata-se da perigosa “narrativa única” que, por ser absolutista e totalizante, reforça a lógica hegemônica que utilizou dessa estratégia para dominar e oprimir juntamente com uma ardilosa capacidade de se adaptar, apropriando e distorcendo tudo que a questiona e que, inclusive, pode ajudar a superá-la, tal como o ambientalismo e o marketing verde (greenwashing).

Enquanto o poderio hegemônico age para continuar aumentando seus lucros, o que podemos fazer nesse cenário, em que as notícias ruins parecem não ter fim? Se nos encontramos isolados e sobrecarregados, com o emocional abalado, e, tantas vezes, distantes uns dos outros?

É tempo de Esperançar

É preciso esperançar não é como uma espera, de “que tudo melhore ou se resolva”, mas onde a história é oportunidade e não determinismo. Onde a esperança aparece no verbo. Assim como nos ensina Paulo Freire, que esse esperançar se faz na reação, na resiliência, e no fazer, mesmo quando tudo não parece ter saída.

E exemplos nunca irão faltar, porque não importa quando e onde, sempre houve e haverá resistência. Ao longo da história muitas pessoas, grupos e movimentos lutaram por democracia, justiça, equidade, paz e meio ambiente. Atualmente, inúmeros outros, que antes não estavam envolvidos nessas causas, estão atuando no contexto da pandemia, em ações de solidariedadeque demonstram criatividade e inteligência coletiva, bem como capacidade de auto-organização e inovação, tecendo e fortalecendo as verdadeiras redes sociais. São como “paraquedas coloridos” que Ailton Krenak cita em sua obra.

Devemos aprender com o que foi e com o que está sendo realizado e pensar em estratégias que permitam ainda mais organicidade e articulação entre esses atores e os setores progressistas da sociedade, estruturando outro projeto de sociedade. É preciso “contar estórias” para adiar o fim do mundo, alimentando outras narrativas.

Cabe então perguntar: Qual estória estamos contando?

Aonde essa história nos leva?

Precisamos pensar para onde queremos ir, pois além dos enfrentamentos relativos à pandemia, temos a necessidade de avançar na superação do capitalismo. O mundo pós-pandemia poderá ser ainda mais caótico e degradante se não conseguirmos aproveitar a chance de acirrar a disputa pela construção da realidade.

A base fundamental de ação estratégia deve ser a força da coletividade (e da unidade), numa perspectiva da valorização da vida de todas os seres humanos e não humanos, que tem direito de viver com dignidade e qualidade na Terra.

Um passo essencial desse processo é a esfera individual, se identificando como ser que pertence ao mundo e que pertencendo, o transforma. Sendo parte do mundo a transformar, também precisamos exercer o olhar para si, na busca de uma saúde mental, emocional, física e relacional. Precisamos aceitar e lidar com as dores internas, com o luto — pelas pessoas e por tudo que se foi –– sem abandonar o senso de urgência que o momento atual pede.

Esse cuidado e esse porvir, precisam estar presentes nas estruturas e sistemas públicos e privados de todos os setores, incluindo os pontos de ônibus, os transportes públicos, os empregos e demais formas de trabalho, nas prisões, agricultura e alimentação, nas escolas e Universidades, buscando o bem comum, para essas pessoas-natureza, não para o sistema.

Essas pessoas-natureza, parte da compreensão de que somos parte indissociável da natureza — afinal, somos apenas uma das bilhões espécies que compartilham o planeta conosco — e de que estamos todos interligados. Nesta perspectiva, buscamos a construção de novas realidades, pautados em valores que potencializam nossa ação como pessoa e enquanto coletivo.

Identidade, Comunidade, Diálogo, Felicidade e Potência de Ação

Como podemos criar sinergia entre tantas pessoas que almejam novos caminhos? Quais valores serão necessários nesse porvir?

Segundo o sociólogo Ferdinand Tönnies a sociedade moderna ocidental, hoje global e hegemônica, criou as relações formais e burocráticas, recheada com os valores do individualismo e da competição, numa representação, como traz Sá, do ser humano como algo mecânico, desenraizado e desligado de seu contexto, história e identidade, que ignora tudo que não esteja vinculado ao seu interesse próprio. Como existir como “nós” e não somente enquanto “eu”?

Nesse contraponto temos as Comunidades, não apenas enquanto localidades geográficas, mas como meio organizador de relações que, a partir da convivência e do encontro, emergeo sentimento de pertencimento e de Identidade comum e, com isso, o compartilhamento, a troca e o cuidado mútuo. É o que fazem muitos povos indígenas e as comunidades tradicionais.

Nesse mesmo sentido temos ato de “contar estórias”, que remete à sabedoria ancestral dos povos originários sobre o mundo, a natureza e nós, seres humanos, nos lembrando a pluralidade da humanidade. Remete também ao encontro que é sempre “irreversível” em sua potência de transformação, à escuta atenta e ao Diálogo, que nos torna capazes de afetar uns aos outros. Um processo de desvendar-se e desvelar o Outro, num eterno entrelaçar de significados que nos possibilitam compreender nossa real identidade – inclusive planetária. Como bem mencionou o filósofo Martin Buber, toda relação necessita ser mediada pelo Eu-tu e não pelo Eu-isso.

Em tempos em que a diversidade identitária é colocada como atraso ao desenvolvimento capitalista, é papel da educação prezar por estes valores e práticas. Ser contracultura em tempos de extrema-direita e fundamentalismos, é propiciar a partir de processos educadores, a diversidade e o diálogo entre os diferentes, romper os muros que segregam socialmente e racialmente os mesmos habitantes de um território, e potencializar os vulneráveis e oprimidos na luta política por tempos melhores e sociedades mais justas.

Trata-se de gerar Potência de Ação, capaz de propiciar um real sentido de autonomia, ligado principalmente a valores como a solidariedade e a democracia, que por sua vez devem fazer emergir uma real participação popular que construa processos de autorreflexão e autogestão no fazer coletivo.

Isto são, de fato, caminhos para a transformação social e a felicidade, que é composta por três componentes essenciais o prazer (ou emoções positivas), o engajamento e o significado (SELIGMAN et al, 2005). Bertrand Russell, um filósofo ateu, diz em sua obra que a conquista desta felicidade só viria a partir da participação na sociedade, que é uma necessidade eminentemente humana.

Ora, se conhecemos o caminho a partir dos valores enunciados, como podemos materializar estas utopias? Quais caminhos concretos observamos atualmente e visualizamos possíveis para os tão diversos territórios e comunidades em todo o planeta?

Agroecologia: Pontes para a transição

Acreditamos que o primeiro passo é não se utilizar das mesmas estratégias colonizadoras e entender a diversidade como qualidade que promove resiliência. Isto quer dizer que optamos por uma narrativa que tem, dentro dela, diversos olhares, vozes e estórias, de estórias contadas pelo seu próprio povo.

A diversidade aqui não exclui a unidade, uma unidade ligada por valores e princípios, que estão no caminho de uma transição global.

Temos trabalhado com a ideia de Agroecologizar territórios, isto é, trazer a Agroecologia como princípio e meio dessa transição nas diferentes localidades e comunidades, porque ela é capaz de abranger questões de ordem prática e material como: a produção de alimentos saudáveis, geração de trabalho e renda e a promoção de relações ecológicas sustentáveis. De ordem social e relacional: o fazer coletivo, questão de gênero, equidade, participação, e na autonomia das pessoas e comunidades. Assim como também, de ordem simbólica e existencial, no sentido de relação com a natureza, do resgate da ancestralidade e no fortalecimento da identidade e cultura local.

Trabalhar com Agroecologia é buscar construir pontes, inclusive entre campo, cidade e floresta. Quanto mais pontes, mais caminhos teremos. Mas, quais caminhos iremos construir primeiro? Aqueles com quais o contexto seja mais propício, ou seja, com aquelas pautas mais concretas no território em que atuamos e vivemos.

Uma das pautas mais presentes na Agroecologia é a do acesso à uma alimentação saudável. Inclusive, a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA)1, com mais de 870 movimentos, redes e organizações apresentaram ao Governo Federal em abril, uma proposta de continuidade e fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), em que, só em 2012, 185 mil famílias agricultoras forneceram 297 mil toneladas de alimentos, com 380 itens diferentes, tendo a participação de mais de 24 mil organizações socioassistenciais que atuam no atendimento às famílias em situação de vulnerabilidade social.

O que o PAA tem haver com essas pontes, que falamos? Bem, ele trabalha diretamente o fortalecimento de uma economia local, priorizando agricultores familiares, assentamentos, povos indígenas e comunidades tradicionais. Assim como, produtos orgânicos, menos processados, produzidos localmente que são destinados à famílias de vulnerabilidade social. É uma disputa para alocar recursos públicos no fortalecimento local, com atores sociais que constroem outra relação com a terra e a Terra. É um exemplo de que é possível fazer na prática.

Construir pontes é construir Redes. Redes que constroem dinâmicas locais próprias mas que se fortalecem mutuamente. É tentar se espelhar na própria dinâmica da natureza, que se sustenta em Rede e onde tudo está conectado e se retroalimenta.

Neste caso, é pautar políticas públicas ao mesmo tempo em que se busca fortalecer iniciativas, para que elas tenham maior diversidade possível de sustentação e não dependam de apenas um caminho, como programas governamentais, que podem oscilar de eleição em eleição. São políticas públicas estruturantes que, construídas não apenas para, mas com a comunidade. São articuladas com outras ações e políticas já em andamento e buscam a continuidade dos processos de modo que sejam duradouros e justos.

A agroecologia, portanto, é um caminho, pautado na práxis e na democratização, que representa o esperançar de Freire de maneira bastante conectada com os pilares de comunidade, identidade, diálogo, potência de ação e felicidade, os quais nos ajudam a compor a estória que queremos contar e viver.

O caminho se faz ao caminhar

As reflexões aqui postas buscam dar elementos que possam ressoar nas experiências e trilhas que os/as leitores/as fazem. Com isso, deixamos algumas questões que tentamos continuamente refletir:

  • Quais estórias estamos contando? Quem são os/as protagonistas dessas estórias?
  • O quanto eu me enxergo como parte da Natureza? O quanto eu respeito e estou conectada/o aos ciclos (biológicos e naturais)?
  • O quanto sou responsável pelas questões que aparecem cotidianamente?
  • Qual meu sonho/utopia de sociedade? Como eu construo esse sonho/utopia cotidianamente? O quanto minha utopia está colocada de forma coletiva?
  • O quanto o Diálogo, o senso de Comunidade, a Identidade, a Potência de Ação e a Felicidade estão presentes no meu dia-a-dia?

*Enquanto escrevemos esse texto dois Joãos, dois jovens negros da periferia, foram assassinados pelo próprio Estado, um dentro de casa e outro indo comprar uma pipa. E em 24 horas foram mais de mil pessoas mortas pelo Covid-19 apenas no Brasil. Pessoas, tratadas como números pelo governo, menosprezando não apenas suas mortes, mas suas vidas. Manifestamos nossa solidariedade às famílias e amigos e nossa indignação contra o genocídio da população negra.


Referências:

ALVES, D. M. G. ANDRADE, D. F.; BARBOSA, C. R.; BIASOLI, S. A.; BIDINOTO, V. M.; BRIANEZI, T.; CARRARA, M.; COATI, A. P.; COSTA-PINTO, A. B.; FERREIRA, L. E. C.; LUCA, A. Q.; MACHADO, J. T.; NAVARRO, S. M.; PORTUGAL, S.; RAIMO, A. A.; SACCONI, L. V.; SIM, E. F. C.; SORRENTINO, M. Laboratório de Educação e Política Ambiental (Oca)-Universidade de São Paulo (Brasil). Em busca da sustentabilidade educadora ambientalista. ambientalMENTEsustentable xaneiro-decembro 2010, ano V, vol. I, núm. 9-10, páxinas 7-35

BARCELOS, E. A. da S. 2019. ANTROPOCENO OU CAPITALOCENO: Da simples disputa semântica à interpretação histórica da crise ecológica global. Revista Iberoamericana de Economía Ecológica Vol. 31, No. 1: 1-17.

BUBER, M. (1974): Eu e Tu. São Paulo: Cortez & Moraes.

FREIRE. P. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Notas: Ana Maria Araújo Freire. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1992.

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo.

MORIMOTO, I. A. Direito e educação ambiental: estimulo à participação crítica e à efetiva aplicação de normas voltadas à proteção ambiental no Brasil.Tese (Doutorado em Ciências Ambientais)). Universidade de São Paulo. São Paulo. 2014. 501 p.

RUSSEL, B. A conquista da felicidade. Tradução de Luiz Guerra Rio de Janeiro, 2004;

SÁ, L.M. (2005): “Pertencimento” em FERRARO JÚNIOR, L.A. (Org.). Encontros e caminhos: formação de educadoras (es) ambientais e coletivos educadores. Brasília: MMA, Diretoria de Educação Ambiental.

SELIGMAN, M. E.P.; S., Tracy A.; PARK, N. and PETERSON, C. (2005): “Positive psychology progress. Empirical validation of interventions” em American Psychologist Volume 60.

TONNIES, F. Comunidade e sociedade. Buenos Aires: Editora Losada, 1947.

1 A ANA é uma articulação reconhecida nacionalmente, que desenvolve ações no Brasil envolvendo milhares de agricultores/as e profissionais da área. Sugestão de acesso: https://agroecologia.org.br/

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Um comentario para "Esperança como ação: caminhos ao pós-pandemia"

  1. josé mário ferraz disse:

    Os seres humanos são enganados como criancinhas desde que o mundo é mundo, sendo a crença em seres divinos o maior de todos os ludíbrios. Imaturos, em lugar de pensamentos próprios de adultos, têm seu comportamento determinado pelas maldades engendradas nos laboratórios de manipular comportamentos a gosto dos Reis Midas de mundo. Daí os foguetórios, o axé, as igrejas e o futebola merecendo importância maior do que saúde, educação e segurança. Daí a apologia à prostituição por órgãos de imprensa, que deixou de ser contravenção penal para ser motivo de fama e celebridade. Daí a apologia à agiotagem dos parasitas do sistema financeiro que sugam o produto resultante do trabalho de quem trabalha. Daí aceitar-se com a indiferença com que se aceita a realidade de ser a saúde deste injusto sistema econômico mais importante do que nossa saúde. Apenas raros gatos pingados sabem que a humanidade pode viver uma vida infinitamente melhor do que vive. Como mudança social exige uniformidade de pensamento da coletividade, a luta desses gatos pingados deve ser a favor do amadurecimento da humanidade cujo comportamento é semelhante ao de escoteiros e que foi assim definida por um pensador: “Um bando de crianças vestidas de idiota lideradas por um idiota vestido de criança.

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