Um mergulho em Xavante

“Visitei uma aldeia. Quando ouço que índio é indolente, isso me toca de forma profunda. Indolentes somos nós, os Warazu, que temos no mínimo, um líder preso, e sequer paramos uma rodovia”

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Por Cristhiane Bonasorte

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Cristiane Bonasorte participa ro programa Outros Quinhentos, que garante a sustentação autônoma de Outras Palavras. Sorteada, ela ganhou viagem à aldeia xavante Etenhiritipá, a partir de parceria com a Ambiental Turismo. Aqui, relata sua viagem

Sou assinante do Outras Palavras há mais de um ano e vira e mexe participo de sorteios de livros e cursos. E foi assim, com certa displicência, que me deparei com mais um sorteio: uma viagem a uma aldeia Xavante. Cliquei e prossegui. Afinal, só havia tido o desejo de visitar uma aldeia ao ver o Filme Xingu, dirigido por Cao Hamburger. Ao receber a mensagem do jornalista André Takahashi dizendo que havia sido sorteada para visitar a Eterinhitipá, no norte do Mato Grosso, me surpreendi. Entre sentimentos de felicidade e certo receio, naquele dia, pesquisei para descobrir onde iria me meter. Visitar uma aldeia Xavante, tomar banho de rio, dormir em rede, viajar até o coração do Brasil! Que experiência seria aquela? Enfim, após ver a seriedade do projeto, aceitei. Mas a cada amigo para quem eu relatava a viagem que faria ouvia: ou “que máximo”, ou “mas o que você vai fazer lá, mesmo”? Entre sorrisos amarelos ou certa cara de espanto, eles verbalizavam o que eu mesma vinha pensando desde minha decisão. A dúvida era tanta, que optei a não mais falar sobre a visita. Eu havia me convencido, mas não conseguia, ainda, contar a mais ninguém.

De SP à Aldeia

Encontro com alguns dos membros do grupo para o embarque, às 21:00, na rodoviária de Goiânia rumo a Canarana. Percorrer os mais de 700 quilômetros por estradas, muitas vezes, pouco macias não foi tão árduo quanto imaginava. O ônibus de linha era confortável e o cansaço da viagem de SP a Goiânia garantiram o sono. Há algumas paradas em postos não tão bons, mas já havíamos garantido uns lanchinhos para a viagem no shopping anexo à rodoviária de Goiânia.

Chegada cerca de 10 da manhã em Canarana. A cidade com pouco mais de vinte anos é planejada. Ao pararmos num posto ao lado da rodoviária para o último café expresso dos próximos cinco dias, vemos um trator sendo ali lavado. Imagem inusitada que me lembra o fato de estarmos no meio de uma cidade fruto do agronegócio. Os guias Israel e Tadeu nos aguardavam na rodoviária. Seguindo suas orientações, saio em busca de dinheiro trocado: na aldeia, somente com as notas miúdas conseguiríamos comprar artesanatos. Enquanto as rodoviárias iluminadas e novas, pelas quais havíamos passado e as ruas largas e organizadas de Canarana podem representar um indício da vitalidade financeira do agronegócio, vou em busca de dinheiro trocado para me adequar à realidade financeira da aldeia

Eterinhitipá

Almoçamos em Canarana e temos um tempinho para comprarmos o que pode vir a nos faltar nos cinco dias que passaremos com quase nenhum contato com dinheiro, caixas eletrônicos, supermercados e afins: uma incursão a um mundo que se mostrará surpreendentemente civilizado se inicia.

Ali, sentada no banco do ônibus escolar que percorre os cerca de 100 kms que faltam até a aldeia, vejo que Sávio – professor universitário, que havia saído de Crato, no Ceará – também anota compulsivamente as falas do guia Tadeu sobre os Xavantes. Já no fim da viagem, Sávio me confessa que, ainda no Ceará, não havia dormido nas noites que antecederam a viagem. E nem eu! O que nos aguardaria? O guia Tadeu desfaz pouco a pouco nossos romantismos e fantasias em relação aos que deixam de ser para mim índios, para se tornarem os Xavantes. Conta-nos que os recursos financeiros angariados com nossa visita serão usados para o conserto de um veículo que ainda está na oficina à espera do pagamento. Quando dependem de transporte alheio, os Xavantes são explorados e chegam a pagar 800,00 pelo frete. Entretanto, a ida à cidade é essencial para a compra de alguns alimentos, como arroz, que passou a fazer parte de dieta Xavante ainda na década de 40, quando o plantio foi incentivado pelo governo Vargas, como parte do projeto Marcha para o Oeste. Necessário era pacificá-los, visto que representavam uma ameaça à colonização da região. Embora tenham plantado por pouco tempo, o arroz ainda continuou sendo doado pelo governo até os anos 60, tempo suficiente para que tubérculos e raízes cedessem lugar a esse cereal na alimentação Xavante.

O guia Tadeu nos conta, ainda, que nos idos dos anos 90, em sua primeira estada numa aldeia Xavante, período de seis meses em que registrou imagens dos rituais a convite daqueles índios, noite após noite, depois de ter capturado suas próprias imagens, ele assistia aos vídeos que haviam sido filmados pelos Salesianos. Nessas filmagens, feitas por um cineasta desta congregação católica que trabalhou na “pacificação” dos índios, Tadeu relata o quanto é perceptível o declínio da condição física do povo Xavante, atribuída por ele, entre outras razões, à mudança dos hábitos alimentares.

As roupas também são compradas na cidade; há inclusive uma loja de Canarana especializada em índios. Sim, nada de índios nus. Estão vestidos, e as mulheres com saias longas. Esta foi outra influência dos Salesianos. Conforme o ex-cacique Paulo nos disse: ”Por que uso roupa? Oras, vocês brancos ofereceram”.

A chegada: entrada no espaço e tempo do ritual

Quando descermos do ônibus, adolescentes com um retângulo vermelho pintado ao longo do abdômen correm descalços. Em duplas ou pequenos grupos percorrem os cerca de 300 metros sob sol quente objetivando um dos dois longos troncos fincados paralelamente à terra. Vence o mais rápido. Atrás dos troncos ficam os homens da aldeia, sentados em cadeiras, de cócoras, torcendo com palavras e gritos da língua xavante. Os risos e gargalhadas cortam o ar seco, o calor é intenso. A corrida faz parte do ritual Noni, e atrai o olhar também das mulheres, que entre seus afazeres nas casas e com as crianças, espiam o que lá acontece. Ali, os rituais não são para turista ver, eles são parte do dia-a-dia da aldeia. Nossa chegada, aparentemente, em nada afeta a rotina dos Xavantes.

Esses tiros diários de corrida culminam em uma ainda maior de 12 kms que acontecerá no inicio de agosto. O esforço físico para a prova é enorme. Com o sol quente do inverno do cerrado – em julho os termômetros chegam a registrar 40 graus – o wara ,chão quase laranja de terra batida, na área central da aldeia, ferve. As pedras machucam os pés dos meninos xavantes: eles tropeçam, quase caem e continuam a correr, mesmo que mancando. A força física e a resistência são essências. Suportar a dor e ter resistência a ela e ao esforço físico é importante para que se tornem adultos. Como disse o cacique Jurandir, numa das muitas conversas acolhedoras que teve com o grupo: “eles crescem criando músculo”. Quando somos convidados a participar do Noni, após alguns dias de aldeia, o resultado foi, para alguns, catastrófico: bolhas, pés estourados e sola do pé queimado. Eu, confesso que nem tentei.

Por volta dos oito ou nove anos de idade, os meninos passam a viver conjuntamente na Casa do Ho – a casa dos solteiros. Ali, aprendem a ser adultos. Sob a tutela de homens Xavantes, aprendem a caçar, a pescar e a roçar. É comum ver as mães atravessando o Wara para levar comida para seus filhos. Longos laços de amizade se iniciam neste espaço. Afinal, têm de deixar suas casas, com cerca de vinte pessoas, local onde vivem tios, tias e avós, e passam a viver com outros garotos. E tudo isso ainda muito pequenos. Chego a pensar, que judiação!. Mas este sentimento não existe em Eterinhitipá. Ele não existe para os Xavantes.

A aptidão de cada um dos meninos é observada enquanto estão na casa, uns se destacam para serem professores, outros têm o dom da oratória. Fato é, que ao sair da Casa dos Solteiros, eles têm objetivos claros. Se os objetivos são diferentes, ao fim desses cinco anos, todos estão preparados para assumir uma família. Dentre todas as aptidões, há uma com certa relevância para os Xavantes: os meninos com capacidade de interpretar seus sonhos, os sonhadores de bons sonhos. Isso porque do sonho vem o poder, o conhecimento, os cantos e os caminhos que a aldeia deve seguir.

O guia Israel nos contou que certa vez fora convidado a ir a uma caçada noturna. No meio da noite, preparou-se e esperou e esperou. Só ao amanhecer lhe falaram que a caçada havia sido cancelada, devido à interpretação de um sonho. Os sonhos, para eles, são sinais do que está por vir, guiando, assim, suas escolhas e decisões.

Houve, ainda, o episódio em que os Xavantes indagaram sobre um dos visitantes de nosso grupo acerca de seu corpo coberto por tatuagens. Ao explicar as figuras celtas desenhadas em seus braços, os índios perguntaram: “Como você aprendeu tudo isso? Foi em sonhos?”

As mulheres da aldeia

As noivas também têm um dia de corrida no ritual Noni. No passado, elas e outras meninas passaram a disputar a prova quando os homens saiam para caçar. Como os homens chegavam a ficar 20 dias fora, ao correr, elas mantinham uma aparente rotina, o que espantaria possíveis invasores durante a ausência dos caçadores. Se hoje os homens veem as mulheres correndo – e eram muitos os espectadores, na única manhã em que a corrida das meninas se deu – no passado, eles não as observavam na prova. Hoje, como caçam com menor frequência, se ausentam menos.

Durante nossa estada, o contato com as mulheres é menor. São mais retraídas e não falam o português. Segundo o cacique Jurandir, as mulheres estão mais resistentes às visitas. Quando fomos nos preparar para o Noni, atravessamos o Wara, onde há sempre várias crianças brincando. Ao nos aproximarmos das casas, pudemos ver as mulheres: sentadas à sombra, ao lado das casas faziam colares de semente furadas uma a uma. Cada acessório chega a levar uma semana para ser confeccionado. Outras faziam as cestas de buriti.

Frente a nossos comentários sobre a pouca presença das mulheres, nos foi oferecida uma das conversas mais ternas e interessantes da visita. Sob um pé de pequi, fizemos uma grande roda, sete visitantes mulheres , e cerca de 15 meninas entre 12 e 15 anos. Entre risos e olhares cabisbaixos, hesitavam muito em responder às nossas perguntas, traduzidas pelo professor Eurico. Apesar de toda a timidez, não titubearam em perguntar por que usávamos brincos, óculos escuros, calças compridas e tênis. Vale lembrar que são os homem Xavantes que usam brincos. Aliás, um dos rituais é o da furação de orelhas, em que lhe são colocados brincos de ossos. Meus óculos escuros e os de Marianne foram passando de mão em mão, de rosto em rosto. As meninas riam muito ao prová-los e ao vê-los nos rostos das companheiras. Contaram ainda que o dia começa às quatro da manhã, com um banho de rio, após arrumar a casa, saem para colher lenha e frutos. Chegam a andar cinco kms para colher os frutos.

A Luta

Mas se a beleza, força e dificuldade exigidas no Noni já me surpreenderam, imagino o efeito dessa sequência de provas ao longo de cinco anos até que alcancem o ritual de passagem. Como não associar esta sequência de esforços enfrentadas pelos meninos com o povo lutador e aguerrido que são. Um dos pontos altos de nossa estada eram as conversas com os índios que falam o português. O ex-cacique Paulo, um dos Xavantes com o dom da palavra, nos relata que há alguns anos, três jovens xavantes resolveram aceitar o recorrente convite de um fazendeiro para que caçassem em suas terras. Após terem caçado, e enquanto comiam, ali mesmo, o fígado do animal, eles foram surpreendidos pelos seguranças da fazenda, que sem saber que os índios eram convidados do patrão, os levaram para a delegacia de Canarana. O delegado, novo na área, meio desavisado e ainda não conhecedor da tradição Xavante, os prendeu – e num presídio de segurança máxima da região. Os Xavantes, em horas, pararam a rodovia que escoa toda a produção do agronegócio. O fluxo da rodovia ficou interrompido por dois dias! E não houve uma só nota na imprensa acerca desta barragem. Nenhuma!

E se não há nada na imprensa local sobre este episódio, o que dizer da ausência de informações a respeito da luta que travam atualmente contra a Ferrovia Transoceânica? Na aldeia, eles a chamam de ferrovia dos chineses, uma vez que é um empreendimento feito pelos chineses para escoar a soja do centro oeste do Brasil para a Ásia. Com a nova Ferrovia, a soja será transportada via Mato Grosso para o litoral peruano e dali já será embarcada para o China, evitando, assim, a travessia pelo Canal do Panamá para o Pacífico. Além disso, os Xavantes se preocupam com as largas extensões de terras agrícolas da região compradas pelas empresas chinesas.

Outra luta é contra o projeto da rodovia BR080, que hoje inquieta não só os Xavantes, mas também os povos do Xingu. Isso porque a estrada atravessará parte de um território tradicional por eles reivindicado, situado ao norte das Terras Indígenas Pimentel Barbosa, área em que a aldeia Eterenhitipá está situada. Num dos passeios que fizemos pelo cerrado, do topo de um morro, pudemos avistar essas terras que um dia já foi dos Xavantes.

Os riscos que a rodovia e a ferrovia trazem a Pìmentel Barbosa são expressos pelo cacique como temor de se tornarem um “Rio Mississipi”, referindo-se aos povos indígenas dizimados no século XIX nos Estados Unidos.

A Estratégia Xavante

Os Xavantes são estrategistas. Nossa visita é resultado desse pensamento: se não mais podiam ser nômades e continuar entrando pelas terras do Brasil em direção à Amazônia, habitat inóspito para eles, decidiram parar e esperar pelos brancos nos vastos campos do cerrado. Afinal, ali aprenderam a viver com seus ancestrais. Como nos disse o xavante Walmir: “consumindo a carne do cerrado a gente se fortalece. Toda a ligação com o cerrado é muito forte”. Assim, ao invés de sair de seu habitat, eles optaram por “pacificar os warazu”(brancos).

Se hoje os lideres da aldeia sabem o português e conhecem nossa cultura foi por terem sido enviados à Ribeirão Preto para estudar ainda crianças. Lá, passaram anos morando com famílias e retornaram. Tanto a estada quanto o retorno não foram nada fáceis. Conforme nos conta Paulo, um dos meninos enviados para conhecer o mundo dos brancos, que após dois anos morando com uma das famílias que o acolheu, optou pela sua independência e foi viver no Educandário de Ribeirão – um abrigo que acolhia as crianças de baixa renda. Lá, havia grande área verde e ele pôde finalmente ter uma profissão. Conta, com certo pesar, ter enfrentado o preconceito. Se a experiência de Paulo não foi tão positiva, Jurandir têm relatos de uma boa integração com os Warazu. Hoje, esses oito meninos que deixaram o cerrado nos idos dos anos 70 são os líderes da aldeia e continuam a estratégia arquitetada pelo cacique Apoena, um visionário ao planejar a aproximação com os brancos, o que viria a permitir a preservação de seu povo, sua cultura e de suas terras. Ali, não só os rituais resistem embricados à vida da aldeia, mas também a língua xavante. Ela está viva e é a língua por eles falada. O português é aprendido nas escolas, mas como segunda língua, somente falam com fluência os que estudaram fora. Embora alguns Xavantes tenham demonstrado certa curiosidade sobre nossa civilização, com relatos encantados de visitas a SP, fato é que os meninos que saem para concluir os estudos, retornam. Assim, mantém os ensinamentos de seus ancestrais, enquanto se abrem estrategicamente para o outro, nós, os Warazu.

A dança

Durante a visita, dormirmos em redes ou barracas armadas na escola da aldeia. Ali nos distribuímos em três grandes salas de aula, entre desenhos e cartazes com palavras em xavante penduradas em barbantes que atravessavam o ambiente. Acomodamos nossas malas sobre as carteiras, cada um de nós ocupando um canto naquela construção em madeira e palha de buriti. Deitado na rede pode-se avistar o Wara pelo vão das palhas. Durante a noite, o frio é intenso na construção sem portas, mas os cobertores térmicos oferecidos pela agência nos aquecem. O que pode parecer muito pouco confortável torna-se, rapidamente, cotidiano e absolutamente sem importância frente à tranquilidade e encantamento que nos vai tomando. Numa rotina mansa, mas muito intensa, vamos, pouco a pouco, sendo surpreendidos por uma simplicidade e repetição que nos absorve.

Na primeira noite, por volta das 4 da manhã, acordo com um assobio que se assemelha a um canto do pássaro sucedido por gritos ou palavras em xavante. Há certa movimentação. Saio de minha rede e atravesso a abertura que separa o interior do exterior da sala de aula/aposento – as construções não têm portas. Ali, avisto uma enorme fogueira cercada por xavantes que dançam de mãos dadas. O fogo ilumina os homens e mulheres que se intercalam e entoam uns de seus cantos marcados por sons graves. Mesmo com o frio intenso, vestem somente shorts e camisetas, muitos homens estão com o peito nu. Os padrinhos dos noivos formam, assim, uma grande ciranda. E, levemente arqueados, se movimentam com pequenos pulos laterais. Esta é uma das cenas mais belas e intensas que já presenciei. Sob um céu estreladíssimo a dança se repete madrugada após madrugada. E volta a acontecer todas as tardes. Somente numa das tardes ela demorou a começar. Era dia de jogo. Os Xavantes se reuniriam numa das duas casas com TV para assistir à semifinal da copa.

Tradição e modernidade

Há TV em duas casas e algumas têm freezer para guardar a caça. A ideia de um índio romantizada é desconstruída a todo o momento. Numa das conversas que tenho com Jurandir, ele diz: “não precisa ser conservador. Se mexer não é mais índio? Sabe por que não precisa ser convervador?” E responde apontando para o laptop à sua frente: “Isso não é fabricação nossa.”

E estão em constante busca daquilo que nossa sociedade pode lhes oferecer, sem que com isso percam sua identidade e tradição. Nossa visita é a primeira com integrantes adultos. Há quatro anos, grupos de alunos adolescentes do Colégio Santa Cruz, de São Paulo, visita a aldeia. Para chegar a este modelo de visitação, foi desenvolvido um projeto com a Faculdade de Turismo e Hotelaria do Senac. Doze agências de turismo foram visitadas para que se escolhesse uma que melhor se adequasse às necessidades da aldeia. Quando indaguei sobre sua visão acerca das criticas que o turismo à aldeia vêm recebendo, o cacique é enfático ao responder. Diz que a intenção é oferecer para as novas gerações o bioma e a realidade da aldeia de uma forma que nem as escolas e nem as mídias mostram. Acrescenta, ainda, que “o Brasil desconhece o seu outro. A intenção da visitação é ter uma troca de mímica, de olhares, de passar tempo”. Ele diz que o Senac fez um bom estudo e relatório e é nele que estão embasados. Querem “apostar em outra forma de encontro entre as sociedades. Dar oportunidade, para quem mora no Brasil, de vir aqui e perceber que estamos abertos. A politica de defesa territorial e a política de meio ambiente não têm essa diretriz”. O objetivo é, também, que em futuras visitas os recursos naturais sejam ainda mais explorados: “temos rios, praias, montanhas e o cerrado. Vários meios de encontro com o nosso povo”.

Desafios

Se o turismo é um dos desafios do cacique Jurandir, há ainda outros: a educação das crianças, a construção da escola e o saneamento.  Em 2018 termina um ciclo de 5 anos de preparação dos meninos para a vida adulta. Educar “a nova safra para que aprendam o básico” é uma das necessidades, hoje as crianças só têm o ciclo fundamental, a ideia é que o próximo grupo tenha acesso ao ensino médio.

Esse desejo do cacique Jurandir em educar o povo está também no orgulho com que Walmir, professor responsável pelo primeiro ano escolar, me mostra sua sala de aula. Eu e Walmir percorremos os papéis na sala enquanto meu colega de viagem, Humberto, deitado em sua rede, acompanhava nossa conversa. Com certa dificuldade em falar português, conta que o ensino da matemática é uma das questões por eles enfrentadas. Para os Xavantes, só há os números um, dois e três. A partir daí, as quantidades são nomeadas como “alguns”. Como ensinar um conceito que não existe na realidade do Xavante? O ensino do português é, também, outra barreira para que busquem uma educação avançada fora da aldeia. Ao ir para a escola na cidade, muitos esbarram nos limites impostos pela segunda língua.

Jurandir relata que se até 1988 a Funai era a porta voz dos Xavantes, hoje eles têm autonomia. “Autonomia e autodeterminação”. Por isso, “o povo indígena tem que ser bem informado e consultado. Esse é o desafio: para ler e entender tem que estudar”. Além de ser essencial para o entendimento e negociação, o estudo vem ainda como forma de transmitir sua cultura e conhecimento. Paulo diz que os Xavantes têm muito conhecimento sobre o cerrado e suas plantas, porém, eles são segredos de seu povo. Ele afirma: “não revelamos nossos segredos, vocês não são pesquisadores? Descubram sozinhos”. Sim, o desejo é que as futuras gerações possam, elas mesmas, estudar sobre o conhecimento que já têm. Transformar os pequenos xavantes em futuros pesquisadores.

Para tanto, há duas grandes estratégias em curso. O professor Eurico está à frente das negociações com a Secretaria Estadual da Educação para o discussão do PPP (plano pedagógico). Além da inclusão do ensino médio, anseiam para ter o currículo adaptado para os índios. Afinal, como não incluir cultura e historia dos Xavantes na educação? Os livros usados pelas crianças estavam empilhados na escola: são os mesmos que nossas crianças usam. Seria este o melhor caminho para a educação dos pequenos Xavantes?

Além da discussão acerca do currículo, há ainda o planejamento da construção de uma nova escola. Hoje a escola é rústica e provisória. Se o cacique enfrenta a pressão de sua comunidade para que o novo prédio logo seja erguido, há uma negociação com a Secretaria da Educação em curso para que ali seja construído um colégio que se adeque à arquitetura Xavante. Jurandir diz que “na questão indígena existe o respeito pela diferença. Não queremos uma escola como na missão salesiana. Queremos uma estrutura arejada, com espaço. Estamos procurando alternativas.” E tal alternativa conta com uma parceria da FAU, que está atualmente fazendo um estudo com os professores e a comunidade da aldeia Etenhiritipa para identificar o que querem como escola. Beth, estudante de mestrado de arquitetura da FAU, era uma das integrantes de nosso grupo. Enquanto fazíamos passeios pelo cerrado, Beth se reunia com os professores para levantar seus anseios para uma nova escola.

O terceiro desafio para em Etenhiritipa é o saneamento. Há algumas torneiras atrás das casas abastecidas por um poço. Essa água é para beber e cozinhar. Já o rio é para se banharem e para lavarem as roupas. Eu imaginava que o rio seria largo e profundo, mas durante a viagem nos banhamos no mesmo local em que as índias se banham. Um rio estreito que, nesta época do ano, era baixo e com algumas pedras usadas para lavar a roupa. Se eu havia temido o banho na aldeia, ele acaba sendo ,apesar de muito gelado, uma delicia. Embora as índias se banhem pela manhã, acabávamos nos encontrando com algumas que lavavam roupas ou que davam banhos em seus filhos no fim da tarde. Os homens iam para a altura do rio designada para os índios.

Mas voltando ao saneamento, o cacique conta que pretendem instalar piscinões e caixas dágua. Apesar de essas adaptações serem necessárias, seria uma grande mudança para os Xavantes, isso porque mesmo com água mais disponível, o costume da lavagem das roupas e do banho deve ser preservado, tanto pela tradição quanto pela preocupação com o meio ambiente. Para tanto, necessário será educar os xavantes para essa mudança.

Indaga, ainda, sobre a qualidade do solo, uma vez que o banheiro é no mato. Se antes eram nômades, hoje há necessidade de se pensar em soluções que melhorem as condições de saneamento e saúde da população. Ah, durante nossas visitas, temos um banheiro químico.

A ideia de Jurandir é que a escola seja um polo em que essas questões sejam discutidas. Isso porque, hoje, estão em busca de soluções que melhorem não só a vida da Eterinhitipá, mas que essas ideias, uma vez pensadas e implantadas, possam, também, servir de modelo para outras aldeias.

Se ao receber o convite houve dúvida se deveria ou não fazer esta viagem, é com prazer renovado que afirmo que esta foi uma das experiências mais significativas que já vivi. Fui, adorei e conto a todos: visitei uma aldeia xavante. E hoje, quando ouço que índio é indolente ou qualquer preconceito que se assemelhe, isso me toca de forma profunda. Afinal, indolentes somos nós, os Warazu, que temos, no mínimo, um líder preso, e sequer paramos uma rodovia.

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