Soberania digital: A aposta nas universidades

Contribuições para o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Estrutura de Estado conectada e recursos naturais dão vantagem ao Brasil. Porém, faltam cientistas, investimentos públicos e cooperação internacional. Quatro ações são essenciais para superar estes entraves

Imagem: flutie8211/Pixabay
  1. Desnaturalizar a maquinaria digital para construir tecnologia soberana
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A funcionalidade por meio de operações matemáticas responsivas, a partir de data centers, abastecidos por milhões de dados, é metaforicamente denominada de ‘inteligência artificial’. Essa figura de linguagem opera a simulação da inteligência, da emoção e da ação humanas. Parte expressiva de cientistas e técnicos, envolvidos com a produção e difusão desses artefatos, tem o grave desvio ideológico de desvalorizar a capacidade humana em benefício da maquinaria. Esse é um dos maiores problemas que temos na contemporaneidade, pois orienta e formata o tipo de tecnociência a partir da qual operam grandes empresas monopolistas, centros universitários, fundos financeiros e investidores em detrimento da maioria da humanidade.

Para ter alguma possibilidade de desenvolver tecnologia soberana, a primeira ação relevante do corpo científico e educacional brasileiro diz respeito a desnaturalizar o discurso fabricado de metáforas mistificadoras e obscurantistas, cujo objetivo é levar a população e, sobretudo, a juventude a um pensamento mágico e subordinado. As escolas públicas têm sido vítimas deste discurso, nas quais certos gestores implementam propostas comerciais de IA em detrimento de projetos pedagógicos consequentes.

É necessário esclarecer que a cadeia produtiva da denominada IA é formada por recursos naturais: minérios (ouro, cassiterita, lítio, cobalto, tântalo, tungstênio entre outros), por muita água e energia. Para subsidiar esse argumento, o professor Martin Tironi e Garreton (2024) afirmam: “A tecnologia dos data centers requer eletricidade contínua e sistemas de resfriamento para manter sua temperatura. Em 2021, os data centers representaram aproximadamente 1% do consumo global de eletricidade (Agência Internacional de Energia, 2022). Espera-se que esse número aumente 50% até 2030. A água é fundamental para o funcionamento dos data centers, tanto para a geração de eletricidade na rede energética quanto para os equipamentos de refrigeração. Por exemplo, nos Estados Unidos, a indústria de data centers é uma das dez indústrias que mais consomem água (OCDE, 2022)”. Para exemplificar o montante de água utilizado na geração de IA, Tironi fez um experimento científico-artístico exposto em Museu no Chile, no qual a interação do visitante para produzir uma única imagem a partir da IA gera o uso 32ml de água.

Como demonstrado, são necessários recursos naturais para se construir infraestrutura nessa cadeia produtiva. E é urgente que se encontre soluções para um desenvolvimento sustentável. Essa pode ser uma vantagem comparativa para o Brasil, desde que não nos conformemos em apenas fornecer nossos recursos sem contrapartida de transferência tecnológica sustentável.

Outro elemento da maquinaria digital, diz respeito aos dados dos seres humanos. Eles são inesgotáveis, porque produzidos pelas relações sociais. Dados são o insumo que faz toda essa cadeia se mover. Os dados fazem operar os algoritmos, dão dinâmica própria às reconfigurações das máquinas. Sem os dados, o modelo de negócios que orienta esta cadeia produtiva não existiria. Daí todo clamor por conexão, interação, permanência nas redes sociais. Os data centers são como minas de dados a serem tratados, organizados com finalidades específicas para todo tipo de negócio. (Figaro, 2024)

A Lei Geral de Proteção de Dados pessoais não suporta o nível descomunal de invasão da privacidade, ocasionada por artefatos que estão em nossas vidas. Dos smarts TVs, celulares, computadores à internet das coisas e as redes digitais, ou seja, tudo que está conectado à internet captura dados. No entanto, há descuido no tratamento dos dados com viéses que redundam em estereótipos e preconceitos de todo tipo. O pesquisador Tarcísio Silva (2020) denomina-os de ‘algoritmos racistas’.

Além disso, é preciso lembrar que os dados têm valor e podem, a depender de como são capturados na cadeia de produção, gerar mais valor. Exemplo são os trabalhadores por aplicativos, os trabalhadores em marcação de dados para IA, os empacotadores dos armazéns da Amazon, entre muitos outros, que trabalham conectados a dispositivos digitais. Países como o Brasil precisam urgentemente regular o trabalho nas empresas de plataformas digitais. Essa seria uma fonte de valor importante para o país, bem como garantia de condições de trabalho mais descentes para a população.

A cadeia produtiva de funcionalidades a partir de dados também carece, no Brasil, de uma força de trabalho especializada. Um corpo técnico e de cientistas amparados por infraestrutura de pesquisa robusta e, sobretudo, formados para pesquisar a partir de valores soberanos. Nossos cientistas não terão aqui o ambiente de recursos e infraestrutura que dispõem os centros hegemônicos. Os cientistas brasileiros precisam trabalhar a partir de outros parâmetros ideológicos. Imbuídos de um saber orientado para o desenvolvimento nacional, mesmo cientes das dificuldades desafiadoras. Mas, não estamos começando do zero. Temos recursos científicos, temos um acúmulo de resultados relevantes que precisam ser protegidos e incentivados. Também aqui os poderes da República podem atuar de forma a elevar e potencializar o parque científico já existente. As Universidades brasileiras são um patrimônio inestimável, construído com o esforço de muitas gerações e com potencialidade inesgotável se orientadas por diretrizes e recursos para objetivar um plano nacional de desenvolvimento tecnológico sustentável na cadeia que envolve as técnicas digitais.

  1. Diagnosticar potencialidades e debilidades para construir uma política científica com vistas à soberania Informacional e ao desenvolvimento para a maioria da população

O Brasil tem vantagens comparativas nesse mercado, porque dispõe de recursos naturais; insumos de dados: população numericamente expressiva e conectada; estrutura de estado conectada, como por exemplo a base de saúde (SUS) e da educação, políticas públicas com cadastro dos mais carentes; cobertura nacional de telecomunicações, bancos nacionais com ampla experiência tecnológica; empresas importantes como a Petrobrás e a Embrapa, cujos centros de pesquisa prestam serviços inestimáveis ao país. Temos cientistas com formação na área, experientes e atuantes. Um parque científico com rede de Universidades que cobre o território nacional.

As nossas desvantagens, no entanto, não são poucas. Existe carência de cientistas e técnicos na área em número e formação suficientes. Descompasso entre nossa experiência e os centros de excelência. Falta de investimentos e recursos capazes de propiciar uma infraestrutura adequada ao trabalho científico. Há concorrência desleal e política de patentes prejudicial ao país. Há falta de parceiros para uma política de transferência tecnológica. Sobretudo, nos falta força política e econômica para implementar programas regulatórios que protejam o país e a população de negócios predatórios, principalmente, na área da educação e da saúde.

Há ainda um cenário de ameaças aos interesses nacionais devido à forte concorrência entre os países e entre os blocos geopolíticos nas disputas por recursos: energia, minérios, água e dados dos consumidores e trabalhadores. Há agentes internos parceiros dos conglomerados internacionais pouco sensíveis à questão da soberania do nosso país. Atuam em lobbies no governo, no congresso, no poder judiciário e, sobretudo, na mídia. Também nos prejudica a dispersão de recursos, a concepção econômica centrada nos interesses financeiros de poucos agentes que se impõem aos interesses produtivos; e a resistência à produção científica orientada por políticas de desenvolvimento nacional.

No entanto, em termos das oportunidades para o desenvolvimento nacional, há um parque universitário tecno-científico público com extensão nacional, recursos naturais, população conectada, articulação geopolítica com os Brics, perspectiva de aplicações de IA com compromisso ético, cidadão e sustentável.

Desse modo, mesmo com poucos recursos, há ações imediatas que podem ser levadas adiante, por exemplo:

Mapear cientistas e técnicos que atuam na área, constituir uma rede nacional coordenada por um centro nacional de pesquisa em IA, com o objetivo de trocar experiência, sinergia entre pesquisadores e potencializar resultados, voltados para áreas de interesse nacional, sobretudo, na educação, na saúde e na área de energia.

Potencializar recursos para infraestrutura de centros de pesquisa já existentes. Esses centros de pesquisa conectariam escolas e faculdades técnicas, potencializando e atualizando a formação de novos recursos humanos; os professores dessas instituições seriam imediatamente os primeiros a serem atualizados pelos centros de pesquisa.

Constituir um corpo de diplomacia para formular políticas e ações de proteção soberana de países do Cone Sul, e potencializar essa ação via Brics. Essa diplomacia se ocuparia da formulação de políticas de transferência tecnológica.

Agir no enfrentamento diplomático das ideias de agentes internos (políticos, mídia, empresas, cientistas etc.) que atuam em benefício próprio e reforçam interesses da concorrência e dos monopólios estrangeiros em detrimento dos interesses da melhoria de vida e trabalho da população brasileira.

Essas são sugestões singelas, mas podem potencializar os passos seguintes à medida que elas preparam as instituições para uma ação conjunta em proveito do país. Essas sugestões estão na contramão da concorrência que se instalou no campo tecno científico. Concorrência que fragiliza países como o Brasil.


Referências:

Figaro, R. (2024) Impactos da inteligência artificial no mundo do trabalho. G20Brasil 2024. Disponível em: <https://www.g20.org/pt-br/noticias/impactos-da-inteligencia-artificial-no-mundo-do-trabalho>

International Energy Agency. (2022). Data Centres and Data Transmission Networks. <https://www.iea.org/reports/data-centres-and-data-transmission-networks>

OECD. (2022). Measuring the environmental impacts of artificial intelligence compute and applications.

Silva, T. da. (2020) Visão computacional e racismo algorítmico: branquitude e opacidade no aprendizado de máquina. Revista Da Associação Brasileira De Pesquisadores/as Negros/As (ABPN), 12(31). Disponível em: <https://abpnrevista.org.br/site/article/view/744>

Tironi, M., and Garretón, M. (2024) Hybrid Ecologies of artificial intelligence: prototyping terrestrial practices through a design installation, in Gray, C., Ciliotta Chehade, E., Hekkert, P., Forlano, L., Ciuccarelli, P., Lloyd, P. (eds.), DRS2024: Boston, 23–28 June, Boston, USA. <https://doi.org/10.21606/drs.2024.1104>. OECD. (2022). Measuring the environmental impacts of artificial intelligence compute and applications.

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