População e Território: Brasil precisa adentrar a Era Digital

Presidente do IBGE aponta: é hora de modernizar estratégias de governança no país. Modelo fragmentado da Era Industrial já não dá conta dos atuais desafios. O caminho: políticas públicas baseadas em dados integrados e IA para antecipar desafios e otimizar recursos

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
.

O Brasil encontra-se desafiado à remodelar o seu padrão de governança da população e território herdado da Era Industrial. Há mais de três décadas, a sociedade urbana e industrial projetada pela Revolução de 1930 tem sido solapada, substituída pela emergência de uma sociedade de serviços cada vez mais hiperconectada.

Em plena transição para a Era Digital, o novo projeto do IBGE em conjunto com o Serpro busca reorganizar e usar inteligentemente a governança estatística e geocientífica no estabelecimento de uma inédita arquitetura pública que supere a fragmentação e descentralização das bases oficiais de dados. Em pareceria embrionária com oito ministérios, o Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (SINGED) toma forma com a integração científica das múltiplas fontes de informações, cuja interoperabilidade permite retratar de forma mais precisa a realidade brasileira e oferecer novos subsídios para a implantação das políticas públicas preditivas1.

Em síntese, as políticas públicas preditivas constituem inovadoras estratégias de governança da população e território mais eficazes e sustentáveis a médio e longo prazo, pois partem da análise da integração de múltiplas fontes de dados, cujo o uso da inteligência artificial e do georreferenciamento possibilitam antecipar desafios e otimizar a melhor alocação dos recursos nas diversas áreas de intervenção estatal como a educação, segurança, saúde, transporte, meio ambiente, entre outras. 

As informações oficiais estão dispersas e fracionadas nos mais distintos ministérios que seguem organizados segundo a lógica da Era Industrial, ou seja, o Estado dominado por “caixinhas” das políticas públicas setorializadas. A repartição da ação pública em partes, distantes de sua possível ação totalizadora, persegue a lógica concorrencial entre os diferentes ministérios em torno da disputa setorial por uma maior fatia orçamentária.

Assim, a população e o seu território terminam sendo tratados segundo a força parcial e momentânea da dinâmica da correlação política, própria da produção de diagnósticos setoriais assentados em bases de dados específicas e desintegradas do conjunto. Além de impor custos elevados no processamento e gestão das diferentes múltiplas fontes de informações, acontece, muitas vezes, o avanço quase isolado de determinadas ações em detrimento das demais.

O resultado produzido se torna limitado se comparado à análise integrada e de uso da inteligência artificial e georreferenciamento em políticas públicas preditivas. Essa seria a diferença entre um Estado da Era Industrial que atua sob a realidade observada no presente do passado das informações e pesquisas convencionais disponíveis e um Estado da Era Digital que antecipa a sua ação mediante a reconfiguração do padrão de governança preditiva da população e território.

O curso dessa iniciativa incita a todas as gerações de brasileiros em torno do fortalecimento do planejamento nacional em novas bases, capaz de permitir a diminuição das incertezas e a antecipação de riscos, o que possibilita a maior previsibilidade demográfica e territorial no interior da emergência da sociedade de serviços e hiperconectada. Sem o melhor planejamento do presente do futuro, o que se segue põe em marcha o destino, conforme parece apontar a experiência do passado das políticas públicas reparatórias e reagentes à realidade do presente do passado.

A Geração de 1870 e o nascimento das políticas públicas reparatórias no Brasil

A Geração de brasileiros de 1870 marcou um ponto de inflexão no pensamento político, social e intelectual brasileiro, pois foi influenciada pelo positivismo, liberalismo e os ideais de progresso oriundos da Europa do século XIX. Mesmo que inseridos no contexto imperial e do primitivismo do agrarismo, personagens de destaque como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio e outros questionaram as estruturas sociais vigentes, especialmente a escravidão e a exclusão racial e social dela decorrente.

Para tanto, ousaram formular os fundamentos éticos, jurídicos e filosóficos pelos quais as políticas públicas reparatórias — tal como entendidas hoje – começaram a ser delineadas. Diante do silêncio elitista do Estado monárquico da época, o ideário da justiça social e da reparação histórica ganhou dimensão e reconhecimento, ainda que não tenha se traduzido imediatamente em políticas públicas concretamente implementadas naquele período histórico.

Com isso, a transição da escravidão para a liberdade foi conduzida sem qualquer tipo de reforma agrária, política de inclusão ou estrutura de apoio aos libertos. Ao contrário da perspectiva da Geração de 1870 que propunha medidas de modernização administrativa e educacional de inclusão dos ex-escravos, porém abafadas pela elite conservadora e racialmente excludente2.

A Geração de 1930 e as políticas públicas com base na realidade observada cientificamente

Diferentemente da Geração de 1870 abalizada pela crítica à inércia do Estado monáquico-escravista, a Geração de 1930 formulou e contribuiu na implementação de políticas públicas por meio da construção do Estado moderno no Brasil. Também comprometida com a onda do Modernismo, a Geração de 1930 expressou uma profunda reflexão sobre a realidade brasileira da época, com inegável foco nas questões sociais, regionais e existenciais.

Composta por um conjunto de intelectuais, políticos e cientistas sociais que, influenciados por eventos como a Revolução de 1930 e a crise do modelo oligárquico da Primeira República, passaram a defender a necessidade de um Estado mais ativo e comprometido com o enfrentamento das brutais desigualdades do capitalismo. Para tanto, a articulação do pensamento teórico com a intervenção prática, por meio de políticas públicas inovadoras baseadas na realidade social observada, tiveram lugar de referência em Oliveira Vianna, Anísio Teixeira, Mário Teixeira de Freitas, entre outros.

A partir de diagnósticos empíricos sobre a sociedade brasileira — como o atraso educacional, o subdesenvolvimento econômico e a desigualdade regional — emergiram as políticas públicas setoriais, sistemáticas e voltadas à modernização do país. Para tanto, a implementação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), ambos do ano de 1938 enquanto produto do Estado Novo (1937-1945), permitiu tanto oferecer informações sobre a realidade observada por meio de pesquisas e censos demográficos e econômicos como reorganizar a administração pública federal no combate à ineficiência do funcionalismo público com políticas públicas setorializadas3.


Notas:

1. RAHMAN, O. The Future of National Statistics Offices: A Call Action. Unece: Modernstats, 2025; FUERTH, L. Foresight and Anticipatory Governance. Foresight, v. 10, n. 1, p. 17–25, 2009; AREWITZ, D. ; PIELKE JR, R. Prediction in science and policy. Technology in Society, v. 21, n. 2, p. 121-133, 1999; HOSSIN, M. et al. O. Big Data-Driven Public Policy Decisions: Transformation Toward Smart Governance. Sage Open, v. 13, n. 4, 2023; ARGUELLES TOACHE, E. Ventajas y desventajas del uso de la Inteligencia Artificial en el ciclo de las políticas públicas: análisis de casos internacionales. Acta Universitaria, v. 33, 2023; POCHMANN, M. O próximo Brasil. São Paulo: Ideias & Letras, 2025.

2. CARVALHO, J. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987; OLIVEIRA, L. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: Editora da UnB, 2003; NABUCO, J. O abolicionismo. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2000; HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979; BENTO, M. Pacto narcísico da branquitude no Brasil. São Paulo: Caleidoscópio, 2002; MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 2.a ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

3. HOLANDA, S. Raízes do Brasil. 26a . ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995; FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. 48.a ed. São Paulo: Global, 2006; VIANNA, F. Populações meridionais do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1949; PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000; FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001; DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2007.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *