O colonialismo tecnológico visto por Álvaro Vieira Pinto

Filósofo brasileiro debruçou-se sobre cibernética e teoria da informação, vendo-as como essenciais para mitigar os dramas da periferia do capitalismo — e planejar uma reinvenção do Brasil. Sua radicalidade permanece atual

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Intelectual de formação múltipla, professor universitário, médico, músico, matemático, tradutor e filósofo, Álvaro Vieira Pinto ou AVP, como seu amigo Vinícios de Moraes costumava chamá-lo, pensou a tecnologia a partir da ideia de amanualidade. Para o filósofo brasileiro, autor das mais de mil páginas de O conceito de tecnologia, todo fazer social está, desde os tempos mais ancestrais, radicalmente relacionado às atividades de transformação da natureza realizadas por nós, humanos. Pensemos em tudo aquilo que fomos e ainda somos capazes de fazer com as nossas mãos, estas que são as primeiras ferramentas civilizacionais de que se tem notícia. Nossa primeira calculadora!

Neste sentido, arriscaria dizer que a simples oposição entre natureza e cultura não tem lugar na obra de AVP. Assim como não há lugar hoje para ela nas ciências da vida cujas descobertas mais recentes mostram como a cultura é parte da natureza e vice versa. Algo já apontado por Marx, de certa maneira, na célebre passagem de O Capital em que ele compara o trabalho da aranha ao do tecelão e o trabalho da abelha ao do arquiteto para, em seguida, distingui-los. Ao discutir a diferença entre trabalho não-humano e trabalho humano, Marx reconhece a superioridade da teia e da colmeia produzidas pelo instinto, mas observa a especificidade do trabalho humano contido no tecido de nossas roupas e na arquitetura de nossos edifícios. A capacidade de projetar, ou seja, de pensar antecipadamente sobre o que iremos fazer está relacionada à nossa natureza, a natureza humana. E é esta relação que nos leva a “abandonar”, nas palavras de João Quartim de Moraes, uma visão metafísica da origem do trabalho humano já que passamos a “ver como ele se produziu na pré-história da humanidade, na animalidade”.

De acordo com Marcos Cezar de Freitas é a matriz hegeliana, interpretada à luz de Sartre, Marx e da crítica que faz do elogio à rusticidade em Heidegger, que permite à AVP definir a tecnologia como memória social de um fazer novo acumulativo, isto é, do trabalho mediado pela tecnologia. Seguir desenterrando dos escombros do esquecimento o “padroeiro” isebiano do nacional-desenvolvimentismo, refratário, segundo Paulo Arantes, à filosofia francesa ultramarina e departamental da USP, é algo urgente. Sobretudo, em um país que, mais do que nunca, carece de projeto.

Como chama a atenção Marcos Dantas, as considerações de AVP sobre o problema da tecnologia foram elaboradas no quadro de um esforço teórico cujo principal objetivo era oferecer uma revisão crítica da primeira cibernética a partir da periferia do capitalismo. Neste sentido, percebemos que, para AVP, falar do Brasil sempre foi dialogar com o mundo. Afinal, é a partir da perspectiva de quem se coloca a pensar para e na periferia que sua filosofia do nacional pôde estabelecer um diálogo em que a nação é o tempo, ou, o próprio devir como sugere Norma Cortês.

Nas palavras da historiadora, em Consciência e Realidade Nacional, outra importante obra de AVP, “a nação não tem existência substantiva, mas é aquilo que os [humanos]i realizam historicamente. Seus predicados não foram, estão ou serão definidos de forma imutável”. Isto porque as grandes questões nacionais orientavam o desejo de (re)agir sobre a realidade do atraso, da dependência. Lembremos que para a incrível geração de AVP, “o mais importante”, insistia Darcy Ribeiro, era “inventar o Brasil que queremos”.

Mas se esta perspectiva periférica compreende também, como adverte Bento Prado Jr., uma espécie de “metafísica” do nacional que “reduz a política à técnica do desenvolvimento”,ii explicitando assim suas graves limitações enquanto crítica radical do capitalismo, devemos descartá-la por completo? Certamente não… Ainda mais se reconhecermos que tal perspectiva nos livra, em certa medida, da importação resignada das tecnologias projetadas no centro.

Embora o pensamento nacional-desenvolvimentista, formulado no extinto Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), jamais tenha sido revolucionário ao pé da letra, isto é, anticapitalista, para dar nome aos bois, ele foi ao menos capaz de expor as contradições de um sistema global de acumulação logrado apenas por algumas nações – as nações mais ricas do globo.

Como provou a experiência dramática do golpe político civil-militar em 1968, quando a periferia ousou reivindicar tornar-se tão capitalista quanto o centro, passando por aqui o mesmo rolo compressor entrópico do desenvolvimento, ela desafiou a lei da competição global, acirrando os ânimos bélicos dos Estados nacionais em um cenário onde, de acordo com José Luís Fiori, a riqueza das nações descrita por Adam Smith é e deve seguir sendo distribuída de modo desigual.

Ao mobilizar conceitos como colonialismo e imperialismo, ambos herdeiros de um leninismo ainda mal visto na academia, mas sem os quais seria impossível entender a história do século XX e do começo do XXI, a obra de AVP continua tão atual quanto é atual a luta por nossa soberania científica e tecnológica, sem perder de vista as lutas que ainda precisamos seguir travando contra as mais diferentes formas de opressão local e global.

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i Preferi substituir a palavra “homem”, do original, por humanos.

ii Ver O problema da Filosofia no Brasil. In: Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise. São Paulo: Max Limonad, 1985.

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