Internet: a privacidade não basta

Pressionados pelo público, gigantes como Google, Apple e Facebook começam a recuar da vigilância individual. É pouco: eles já têm outros meios de controle. Luta pelo futuro da rede precisa inspirar-se na Wikipedia e dar um passo adiante

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O encontro é uma iniciativa do NIC.br e CGI.br e conta com apoio da FECAP.
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Por Evgeny Morozov, no The Guardian | Tradução: Simone Paz

Para os ativistas que defendem a privacidade, 2021 traz, na aparência, uma grande vitória após a outra. Primeiro lugar, a Alphabet, empresa que controla o Google, anunciou em março que iria parar de rastrear usuários individuais quando eles se deslocam de um site a outro. Esta decisão faz parte da ampla campanha da Alphabet para acabar gradualmente com o uso de cookies de terceiros — uma tecnologia antiga, porém controversa, cada vez mais culpada pela cultura permissiva de compartilhamento de dados hoje em vigor.

Em vez de rastrear usuários individuais por meio de cookies, a Alphabet planeja usar a aprendizagem de máquina para agrupar usuários em grupos formados a partir de semelhanças comportamentais. Os anúncios serão direcionados a esses grupos, não a indivíduos. A Alphabet ainda precisará de alguns dados para colocar cada usuário no grupo certo, mas os anunciantes não precisarão mais invadir o navegador do usuário.

E vem aí o segundo capítulo desse amplo reposicionamento do setor. No início do mês, a Apple apresentou uma importante atualização em seu sistema operacional, que agiliza a forma como os desenvolvedores de aplicativos externos, como o Facebook, rastreiam os usuários da Apple. Agora, esses usuários devem concordar explicitamente em ter seus dados coletados. Embora o Facebook se opusesse à mudança no início, passou a moderar sua visão, prometendo até desenvolver tecnologias de publicidade para “aumentar a privacidade”, com menor dependência dos dados sobre os usuários.

Ainda assim, me pergunto se essas vitórias tão surpreendentes para o movimento pela privacidade não se tornarão pírricas no fim das contas — pelo menos do ponto de vista de uma agenda democrática mais ampla. Em vez de enfrentar o grande poder político da indústria de tecnologia, os mais sinceros críticos da tecnologia têm tradicionalmente se concentrado em responsabilizar a indústria tecnológica por inúmeras violações das leis de privacidade e de proteção de dados existentes.

Essa estratégia presumia que tais transgressões legais continuassem para sempre. Agora que a Alphabet — e em breve, talvez, o Facebook — apressam-se para aprimorar a aprendizagem de máquina e, assim, criar anúncios personalizados que também preservem a privacidade, começamos a nos perguntar se ter colocado tantos ovos na cesta de privacidade foi uma escolha sábia. Aterrorizados pela onipresença e eternidade do “capitalismo de vigilância”, será que facilitamos demais as coisas para as empresas de tecnologia, a ponto de não atendermos às nossas próprias expectativas? E será que perdemos uma década de ativismo, que deveria ter sido focada no desenvolvimento narrativas sobre por que nos opomos ao oligopólio dos gigantes tecnológicos?

É provável que algo semelhante aconteça em outros territórios marcados por pânico moral diante das tecnologias digitais. O setor de tecnologia responderá ao crescente incômodo do público em relação às “fake news” e ao vício em redes sociais, dobrando aquilo que eu chamo de “solucionismo”, As plataformas digitais introduzirão novas tecnologias para oferecer a seus usuários uma experiência sob medida, segura e completamente controlável.

A Apple, como de costume, lidera nesse aspecto, oferecendo aos usuários uma série de notícias e ferramentas selecionadas para medir sua produtividade e bem-estar digital. Em fevereiro, o Facebook também lançou um experimento — por enquanto, apenas no Reino Unido — onde anexa, a postagens sobre mudanças climáticas, um banner que direciona as pessoas ao portal da empresa dedicado ao clima. Pode ser que até mesmo o desafio das fake news se torne mais fácil de lidar do que supúnhamos.

O recente, e provavelmente bem-intencionado, movimento pela “tecnologia humana” está prestes a sucumbir a outra vitória de Pirro. Os gigantes da tecnologia certamente encontrarão uma maneira de ser ao mesmo tempo “humanos” e altamente lucrativos. Ironicamente, quanto mais o oligopólio de tecnologia é pintado como anti-privacidade ou anti-humano, mais legitimidade pública ele pode ganhar só por mostrar sua capacidade de cumprir determinados valores que são caros a seus críticos.

Isso sugere que precisamos de uma crítica diferente e muito mais profunda ao oligopólio de tecnologia. Existem caminhos para desvelar o peso que sua lógica solucionista impõe à sociedade? Sim. Penso que buscamos críticas potentes a este setor nos lugares errados. Presumimos que vigilância e as fake news são o que os economistas chamam de “externalidades” — subprodutos de práticas empresariais que, de outra forma, seriam úteis, progressivas e inovadoras.

Mas essa suposição é válida? É hora de observarmos com mais atenção o setor de tecnologia para a inovação e nos perguntarmos quem tem permissão para inovar — e em que condições — no sistema atual. Apesar de toda a “destruição criativa” que seus líderes nos prometem, a Big Tech oferece um prato muito insosso, que tem sempre o mesmo conjunto de ingredientes: usuários, plataformas, anunciantes e desenvolvedores de aplicativos.

A imaginação institucional da indústria de tecnologia não admite que outros atores possam desempenhar um papel na definição dos usos socialmente benéficos das infraestruturas digitais. Tirando o caso da Wikipedia — que surgiu três anos antes do Facebook — não há equivalentes digitais para as instituições diversas e altamente inovadoras que existem para atender às necessidades de comunicação e educação da humanidade: a biblioteca, o museu e os correios.

Quem sabe que outros tipos de instituições seriam possíveis no ambiente digital de hoje? Em vez de ir atrás disso, os legisladores entregaram esse processo inteiro ao setor de tecnologia. Em vez de construir infraestruturas que possam facilitar essa experimentação em larga escala, eles se contentam com as infraestruturas existentes que são operadas (frequentemente como serviços pagos) pelas gigantes de tecnologia.

Naturalmente, os principais agentes do setor querem garantir que qualquer nova instituição digital nasça como uma startup ou, pelo menos, como um aplicativo — para ser inserida e monetizada por meio de suas plataformas e sistemas operacionais. Como resultado, o meio digital de hoje não é tão pró-inovação quanto parece: ele abomina ativamente instituições e associações que não obedeçam às regras de seus principais intermediários. Ele se destaca na criação de aplicativos engenhosos para museus e bibliotecas, mas é péssimo em descobrir qual seria o equivalente digital real do museu ou da biblioteca.

Pelo que sabemos, isto poderia ser, por definição, a startup — a resposta institucional padrão que o solucionismo produz para cada problema. Mas por que aprisionar toda ideia boa e nova na camisa de força de uma startup? Na maioria dos casos, essa camisa de força impõe seus próprios imperativos: os usuários precisam ser monetizados; os dados precisam ser coletados; as assinaturas precisam ser vendidas. Por que nos limitarmos a esses poucos caminhos?

Queremos algo genuinamente novo: uma instituição que saiba quais partes das leis e regulamentos deixar em suspenso — o que a biblioteca faz com a lei de propriedade intelectual, por exemplo — a fim de aproveitar totalmente o potencial inerente às tecnologias digitais em nome do Comum.

Esse respeito recente dos gigantes da tecnologia pela privacidade não deve nos enganar. Afinal, é o seu controle monopolístico sobre nossa imaginação — tornando-nos incapazes de ver a tecnologia não como mera ciência aplicada, mas como uma potente instituição política para transformar outras instituições — que constitui o maior problema para a democracia. E é apenas recuperando essa imaginação — e não nos valendo de uma overdose de solucionismo agradável — que poderemos aspirar a controlar os gigantes.

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