IA: a urgência das Infraestruturas Públicas Digitais

Brasil não avançará numa tecnologia crucial sem dispor de centros de processamento, programas básicos compartilháveis e políticas públicas específicas. Estatais e BRICS podem colaborar – mas é preciso decidir e agir rápido

Pégaso, da Petrobrás, é o supercomputador mais potente da América Latina e pode inspirar a transformação de infraestrutura tecnológica em políticas públicas (imagem: divulgação/Petrobras)
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Título original:
Capacidade computacional e infraestrutura pública digital no alvo: a bola da IA está rolando

Podemos estar vivendo a década da soberania digital, mas agora a agenda política global ganhou novos recortes e a atenção está centrada no desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA). Como uma faca de dois gumes, precisamos defender que soberania também nesta área seja sustentável e tenha no centro dois elementos: a capacidade computacional nacional e as emergentes infraestruturas digitais públicas (IDP).

Em 7 de março, o presidente Lula se reuniu com o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e ressaltou a importância de uma IA soberana, mas que também deve ser sustentável. Informou que defenderia uma proposta brasileira no encontro da Assembleia Geral da ONU, que acontecerá alguns dias antes da Cúpula do Futuro. Precisamos de um olhar abrangente, empatia e coragem se quisermos encarar o desafio que nos foi proposto.

Para além de algoritmos, dados e regulações, é importante tratar do desenvolvimento de IA levando em conta a infraestrutura que, por definição, tem relação com o aspecto tangível, mas também engloba dimensões relacionadas a software e protocolos.

Como indicado pelo grupo de especialistas da OCDE que debruçou sobre o tema, a capacidade computacional de IA diz respeito a recursos tecnológicos, tanto em termos de hardware quanto de software, empregados para garantir um suporte otimizado a tarefas e programas específicos de inteligência artificial. Isto é, a IA também são softwares, mas não só. Assim como a Internet não é só o protocolo IP, ou as redes sociais, mas também os cabos submarinos e satélites. Adotar uma abordagem infraestrutural para IA é fundamental para assegurar sustentabilidade sem cair no greenwashing.

Ainda no que tange às infraestruturas, é importante destacar uma pauta que ganhou centralidade no G20 em 2023, dado o esforço diplomático Indiano: as infraestruturas públicas digitais (IPD). Assim como as rodovias, sistemas de tratamento de esgoto e pontes no mundo offline, as IDP são elementos fundamentais para uma vida plena na era digital.

É preciso considerar tanto a ideia de IDP para IA e IA para IPD. No primeiro caso, temos de pensar no desenvolvimento e disponibilização de módulos básicos, compartilháveis e interoperáveis de IA. Um exemplo é a Arquitetura de Proteção e Empoderamento de Dados para Treinamento (DEPA for Training), na Índia. O objetivo é apoiar a formação de modelos de IA de acordo com os princípios de IA responsável, tendo como um de seus pilares o uso de contratos digitais para partilha de conjuntos de dados. A União Europeia também tem uma abordagem semelhante de DPI para IA, especialmente no ambiente científico. Um exemplo é o projeto de nuvens abertas para o ambiente de pesquisa (Open Clouds for Research Environment, OCRE). Já os Emirados Árabes Unidos, novo membro dos BRICS+, estão financiando o desenvolvimento de um modelo de IA generativa baseada em código aberto, o Falcon. Contudo, aqui no Brasil parece que – equivocadamente – falar em modelos estatais é um crime ou um testemunho de isolamento.

No âmbito do G20, o consenso de infraestruturas digitais públicas se deu em torno de identidades digitais, métodos de pagamento e plataformas de compartilhamento de dados. Pensando em AI para IDP é importante mapear como a inteligência artificial está sendo ou pode ser utilizada para facilitar a autenticação digital com a devida proteção de dados pessoais, bem como rastrear fraudes financeiras ou otimizar análises de elegibilidade em programas de proteção social no âmbito do Cadastro Único, por exemplo.

Após o legado indiano no G20, a presidência do Brasil pode ser marcada por uma proposta e esforço diplomático em torno de uma governança global da Inteligência Artificial. Lembrando que a próxima presidência do grupo será a da África do Sul e os diálogos entre os três países estão sendo retomados. Estando em consonância, tais abordagens podem se consolidar como a ponte entre o G7 e os BRICS, sendo o motor de eventual re-globalização.

A capacidade computacional diz respeito à oferta de datacenters com componentes de processamento de alto desempenho. A Petrobrás tem um papel central e estratégico. Pouco se comenta, mas a empresa tem vários supercomputadores, incluindo o Pégaso, que se situa há anos entre as cinquenta máquinas mais potentes do mundo. Mas fora isso, a Petrobrás também financia outras supermáquinas, como a expansão do Santos Dumont, gerido pelo Laboratório Nacional de Computação Científica.

Essa capacidade de processamento e desenvolvimento não pode ser sobreposta pelo retrocesso na agenda ambiental no país e no mundo. Pelo contrário. Não basta liderar uma IA soberana, o Brasil tem que liderar uma IA sustentável, tendo a agenda ambiental no centro, e a oportunidade de debatê-la na conferência do clima em Belém em 2024

Para isso é preciso um esforço de integração e cooperação enorme, mas factível. Começa pela integração e coordenação das diversas estratégias que são chaves para a IA. Para mencionar algumas, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital deve ser resgatada, considerando o esforço interministerial e a necessidade de aprimorar as competências de servidores públicos e a participação de organizações não-estatais. Além, claro, da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA) que, felizmente, o Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil decidiu reformular, sinalizando ter percebido a falta de visão, de objetivos e, em última análise, de visão da estratégia adotada em 2021.

O problema elementar está na incapacidade de compra imediata ou fabricação de semicondutores. A fila hoje para adquirir prolonga-se por meses ou anos e, mesmo não suprindo a demanda no curto prazo, a retomada do Programa de Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (PADIS), bem como a reativação da Ceitec, única estatal fabricante de semicondutores da América Latina devem ser reconhecidas como fundamentais por quem defende o desenvolvimento da IA no país. Além disso, é importante mencionar a recém lançada Nova Indústria Brasil, com seu pilar de transformação digital e que pode ter as compras governamentais de sistemas de IA sustentáveis no centro. Mais uma vez, o foco agora deve se dar em integrar tais iniciativas.

Outros fundos e instituições também têm tido um importante papel na promoção do Sistema Nacional de Processamento de Alto Desempenho, o SINAPAD, como a Finep e a FAPESP e esforços para a criação de um fundo soberano unificado para a inteligência artificial podem ser mobilizados. Inclusive, o SINAPAD está com chamadas abertas para propostas no âmbito da pesquisa e desenvolvimento e deveria integrar a política de IA soberana.

Além dos supercomputadores, existe também uma oferta tímida, mas razoável de datacenters privados e públicos em território brasileiro, como apontado pelo levantamento da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Devemos viabilizar o desenvolvimento internamente, bem como atrair novos, combinando o uso de empresas, universidades e iniciativas comunitárias. De todo modo, é chave promover infraestruturas federadas como no caso da People+ai, desenvolvido pela fundação Indiana EkStep, e promover IDP para capacidade computacional aberta. A fundação pretende construir uma rede interoperável de datacenters, alinhada à proposta do governo da Índia em construir 25000 clusters de GPU (unidades de processamento gráfico) para apoiar startups de IA.

O consumo de energia elétrica para processamento e água para resfriamento é gigantesco, como evidenciado no caso dos datacenters da Microsoft e da OpenAI, do ChatGPT. Pouco se comenta, inclusive, que os 10 bilhões investidos pela gigante de tecnologia na OpenAI estão sendo pagos em unidades de processamento. Sim, para que empresas como ela funcionem, precisam “alugar” a capacidade de armazenamento e processamento de dados das gigantescas estruturas de nuvem, mercado altamente concentrado. Imagine uma empresa ou cooperativa brasileira…

Um grande incentivo e diferencial do Brasil é a sua vasta fonte de energias renováveis. A baixa emissão de gases efeito-estufa poderia atrair muitas empresas nacionais e internacionais de datacenters para alcançar as metas de emissão. O desafio é aqui não virar uma lavanderia de pegadas de carbono.

Que fique claro, competir com os EUA hoje em dia é uma ilusão, sabendo que os monopólios de chips para IA ou de computação em nuvem são quase integralmente de empresas de lá. Trata-se de reconhecer que vivemos num mundo em constante mudança e que precisamos ter a autonomia de escolher um futuro não-hegemônico. Aí entra, mais uma vez, o papel do Brasil nos novos contornos da política internacional.

Ao fim das contas, estamos falando de viabilizar o desenvolvimento da IA orientado aos problemas concretos do Brasil, que beba, também, da sabedoria popular, da ciência cidadã e das cosmotécnicas que caracterizam a identidade brasileira. Uma IA soberana do Brasil para o mundo é uma que seja facilitadora da paz, da autodeterminação dos povos, da promoção das igualdades digitais, da proteção dos direitos humanos e do meio-ambiente.

Não podemos perder a oportunidade de mostrar ao mundo e a nós, brasileiros e brasileiras, que a síndrome de vira-lata é coisa do passado. Precisamos demonstrar que somos capazes de desenvolver inteligências artificiais promovendo a justiça ambiental, mapeando e mitigando o impacto socioambiental das tecnologias e infraestruturas digitais.

É hora de colocar o pé no chão e a bola no meio do campo. Jogadores e jogadoras de times opostos devem jogar em conjunto para criar uma política nacional de Inteligência Artificial soberana e sustentável. Vamos de Ariano Suassuna e acreditar num realismo esperançoso.

Temos pouco tempo e o técnico já deu a letra.

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