Ceará: Estado opaco, cidadãos vasculhados

Uma pesquisa que analisou contratos públicos no estado revela: na surdina, governos introduzem reconhecimento facial. “Monitoramento de trânsito” é o mote inicial. O combate à violência, a justificativa. E a compra de tecnologias é feita sem licitação

Imagem: Kaspersky Lab
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Mais de R$ 500 milhões já foram gastos na implementação de uma infraestrutura de vigilância integrada no Ceará. A partir da análise de mais de 100 contratos feitos pelo Governo do Ceará e pela Prefeitura de Fortaleza, vimos que eles tratam sobretudo da aquisição de câmeras para videomonitoramento do trânsito, mas, o que é preocupante, no detalhamento dos textos ou em atas de compras são listadas tecnologias mais intrusivas, inclusive de reconhecimento facial. É o que mostra a pesquisa “Da construção de uma infraestrutura de vigilância à introdução do reconhecimento facial no Ceará”, do projeto Panóptico, projeto do Centro de Estudo de Segurança e Cidadania – CESeC que monitora a adoção de novas tecnologias pelas instituições de segurança pública do Brasil. O estudo será lançado no dia 16 de abril, em Fortaleza, em audiência pública na Assembleia Legislativa do Ceará e, depois, em reunião com representantes da sociedade civil.

A adoção de tecnologias vigilantistas ocorre em um cenário de crescente violência no Ceará, situação que tem sido enfrentada, por diferentes governos, por meio de políticas centradas na repressão. Nesse contexto, tais tecnologias passaram a ser apresentadas como formas de ampliar a inteligência do estado, uma perspectiva solucionista que, na prática, pouco tem alterado a dinâmica das políticas adotadas até aqui, ao passo que acarreta outras questões, como riscos à privacidade e à proteção de dados. Além disso, os usos que têm sido promovidos preocupam porque tecnologias como o reconhecimento racial possuem vieses, como de classe, raça e gênero, que podem reforçar opressões. Importante salientar que o racismo já atravessa a segurança pública, levando a um número maior de assassinatos e prisões de jovens negros e pobres, desigualdade evidente no estado analisado.

Iniciado nos anos 2010, o movimento de implementação e expansão da infraestrutura de vigilância integrada, motivado por eventos internacionais como a Copa do Mundo, ganhou força em 2019 com a Portaria nº 793, que orienta a alocação de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Como resultado, em 2023, segundo dados oficiais, o Governo do Ceará dispunha de 3.624 câmeras distribuídas em 65 Centrais de Videomonitoramento instaladas em Fortaleza e em outras 64 cidades cearenses. Na capital, apenas a Prefeitura de Fortaleza possui mais de 4.500 câmeras. A política estadual também envolve o Big Data da Segurança Pública “Odin” e o seu painel analítico “Cerebrum”, alimentados com dados de mais de cem sistemas dos órgãos de Segurança Pública do Estado e de instituições parceiras. Os dados são estratificados e usados para encontrar padrões que possam levar, segundo as autoridades, a predições de crimes. Uma perspectiva que, no mínimo, merece muita atenção, a fim de que não sejam reproduzidas práticas de estigmatização.

Até o momento, o governo do Ceará admite usar o reconhecimento facial apenas no Portal de Comando Avançado (PCA), aplicativo que permite, entre outras funcionalidades, o reconhecimento facial a partir do celular dos próprios policiais. A prefeitura da capital nega a utilização do reconhecimento facial para fins de segurança pública, embora admita estudar possíveis aplicações. Pavimentando esse caminho, como mostra a pesquisa, iniciativas legislativas têm sido sorrateiramente apresentadas à Assembleia e à Câmara dos Vereadores, em geral sem que sejam acompanhadas por discussões públicas.

Opacidade x transparência

A pesquisa revela uma expressiva opacidade no desenvolvimento dessas políticas, que contrasta com a transparência imposta aos cidadãos. Isto é: enquanto a sociedade passa a ser mais vigiada, ela não tem sequer acesso a informações que permitam que conheça, avalie e decida quais tecnologias precisam ser implementadas e como. Isso foi constatado na própria realização do estudo, para o qual foram apresentados pedidos de informação por meio de portais da transparência, assessorias de imprensa e entrevistas. Como é detalhado no texto, foi recorrente a negação de informações. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS/CE), central no desenvolvimento das políticas de segurança, foi um dos órgãos que se negou a prestar informações sobre o tema.

A implementação levanta questões sobre transparência e ética também em torno da complexa rede de parcerias envolvida. Ela tem se dado a partir de acordos com grupos de universidades locais, como a Universidade Federal do Ceará (UFC), a Universidade de Fortaleza (Unifor) e o Instituto Federal do Ceará (IFCE). Mesmo nesses casos não há transparência sobre o que tem sido desenvolvido, por quê e com quais resultado. Um fechamento que não é condizente com a prática e com a função social, especialmente, de universidades públicas.

O estudo verificou que há uma série de contratações diretas de empresas, feitas por meio de dispensa de licitação, beneficiando grupos como Megatech Controls, IPQ Tecnologia LTDA e Consórcio IPQ SYS. A pesquisa diagnostica falta de transparência também em relação às práticas dessas empresas. Os sites são precários e os números de telefone informados não funcionam. O porte delas por vezes não é compatível com o volume de recursos associados aos contratos, situações que são detalhas na pesquisa. Não obstante, cumpre salientar que, embora isso suscite questionamentos, não foram encontradas irregularidades.

O Ceará na geopolítica tecnológica

A partir de entrevistas, a pesquisa verificou que há, ainda, uma relação pouco clara entre o estado, as empresas brasileiras e a chinesa Dahua Technology. A Dahua é considerada a maior do mundo no fornecimento de produtos e serviços de vigilância por vídeo, atuando em cerca de duzentos países. Em 2019, recebeu em sua sede, na China, o então governador Camilo Santana. A empresa não participa formalmente de nenhum contrato vigente junto aos órgãos públicos do Ceará. A IPQ atuaria como seu braço no estado, favorecendo a aquisições de seus materiais. Além disso, a Dahua participa da elaboração de projeto de vigilância de prédios públicos.

Com pouca transparência e debate público, o projeto de ‘modernizar’ as políticas de segurança, tornando-as mais “high tech”, também inseriu o estado em uma disputa internacional por influência política e por mercado, que ocorre entre as duas maiores potências globais na atualidade: China e Estados Unidos. Nota-se uma influência crescente de empresas chinesas no Ceará, na esteira do que é visto no Nordeste, região que integra o projeto de expansão da ação internacional chinesa, a Belt and Road Initiative (informalmente chamado de Nova Rota da Seda). Por sua vez, o governo norte-americano, que, durantes muitas décadas, exerceu influência política decisiva não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, tem se atentado para a situação. Seu parceiro Israel também comparece nas discussões sobre tecnologia no estado, tendo apresentado portfólios de tecnologia para agentes públicos da área da segurança, em 2019.

A adoção de tecnologias de vigilância como resposta às altas taxas de violência e aos conflitos entre facções destaca a tendência ao solucionismo tecnológico. Esse enfoque simplista para problemas complexos, em um contexto de acentuada violência policial e desigualdades sociais e raciais, tem levado a amplos investimentos públicos, mas os resultados são incertos, como evidencia a permanência do problema da violência no estado. Essa visão precisa ser superada para que a necessidade e possíveis formas de uso transparente, correto e eficaz das tecnologias sejam discutidas e definidas pela sociedade.

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