O São Francisco em mudança de curso
Série de reportagens examina os impactos de uma das obras mais polêmicas do país: a transposição do “Rio da Integração Nacional”
Publicado 26/06/2017 às 17:53
. No primeiro texto, a importância do “Velho Chico” e as duas inaugurações dos novos canais
Por José Eduardo Bernardes*
Os indígenas costumavam chamar o Rio São Francisco de “Opará”, que significa “rio-mar”. Após a chegada dos portugueses ao Brasil, no entanto, ele ganhou o nome do santo italiano. Com o tempo, o curso de água, que é um dos três maiores do país, popularizou-se com a benção de seus ribeirinhos no sertão sob a alcunha de “Velho Chico”. O rio nasce em Minas Gerais, na Serra da Canastra, na cidade de São Roque de Minas. De lá, percorre longo caminho até desembocar na foz do Oceano Atlântico, na divisa entre Alagoas e Sergipe. Em seu curso pelo Nordeste brasileiro, o rio cruza toda a Bahia e o norte de Pernambuco. O caminho de pouco mais de 2.800 quilômetros é margeado por diversas comunidades sertanejas, que há seis anos convivem com uma seca histórica, a maior dos últimos cem anos. Seus diversos afluentes não são tão perenes e sofrem ainda mais com a falta de chuvas.
As secas, que abatiam a região já no século 19 e impediam que os pequenos ribeirões e afluentes do São Francisco fossem perenes, motivaram o governo imperial de Dom Pedro II a pensar na transposição das águas do rio para áreas do sertão nordestino e, inclusive, integrá-las ao Rio Tocantins, que cruza os estados de Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará. Em 1847, Marcos Antônio de Macedo, o intendente da comarca do Crato, no Ceará, elaborou o primeiro projeto para transpor as águas do rio para o castigado sertão cearense. Saindo de Cabrobó, no interior pernambucano, as águas chegariam ao Rio Jaguaribe, já no estado vizinho. A ideia percorreu a história brasileira, estacionando em problemas de infraestrutura e falta de vontade política para uma obra que, desde o princípio, prometia ser grandiosa. Presidentes como Epitácio Pessoa, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso negaram-se a topar o desafio. Foi somente em 2003, na primeira gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que a obra ganhou corpo, sob a tutela do então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. “A ideia da obra [é do tempo do Império] sim e é até uma obviedade, porque você tem, no Nordeste Setentrional, essa grande esquina do Brasil, você tem dois rios perenes, o São Francisco e outro é o Parnaíba – de uma vazão muito medíocre”, explica Ciro Gomes, em entrevista ao Brasil de Fato.
O ex-governador do Ceará (1991-1994) conta que já carregava a ideia da transposição desde o início da sua vida pública. “Eu era deputado estadual, fui prefeito, fui governador, e eu sempre trago essa agenda, meio que como o sentido da minha militância”. O projeto, segundo Ciro Gomes, foi feito em apenas um dia. “A concepção toda veio muito rápido”, conta. “A gente percebeu que não eram necessárias ideias malucas de transpor 300 m³, 500 m³. Nós percebemos que, com sazonalidade e gestão, o máximo de vazão deveria ser de 76 m³ por segundo. Aí o projeto ficou muito viável. Sob o ponto de vista do custo também”. No entanto, foi a obstinação do ex-presidente que tornou o projeto realmente viável, revela Gomes. “Quando o Lula me chamou para ser ministro, eu não estava querendo, ele disse: ‘Olha, eu quero que você venha, porque nós vamos fazer a transposição do São Francisco. Se você topar, eu faço esse projeto agora’”, relembra. Para o povo nordestino, principalmente o sertanejo, Lula é o “pai da obra”. Segundo os moradores, a origem do ex-presidente – natural de Garanhuns, no interior de Pernambuco – foi o estímulo para que ele se empenhasse pessoalmente no projeto da transposição. Anos depois, em março de 2017, Lula foi à cidade de Monteiro, no interior paraibano – destino final dos 270 quilômetros do Eixo Leste do projeto de transposição – acompanhado da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), para a “Inauguração Popular da Transposição do São Francisco”. O evento foi um contraponto à visita do presidente golpista Michel Temer (PMDB), que, nove dias antes, esteve na mesma Monteiro, em função da obra.
No evento popular, Lula lembrou que, sua infância, no sertão de Pernambuco, foi decisiva para que a iniciativa fosse levada a cabo. “Eu não pensei nessa obra porque eu sou letrado. Eu pensei porque, quando eu tinha sete anos de idade, eu já carregava lata de água na cabeça. Eu sei o que o povo sofre sem água”, discursou na ocasião o ex-presidente a 50 mil pessoas, que acompanharam o lançamento na pacata cidade paraibana. Políticos e moradores presentes no grandioso ato decretavam Lula como o idealizador, o “pai” do projeto. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), em entrevista ao Brasil de Fato, apontou que “Lula levou muita água na cabeça, sabe o que é a seca. O povo sabe que foi Lula quem colocou essa obra no papel. Chega a ser ridícula essa posição do Temer”.
O cearense Junior Coutinho, 43 anos, que trabalha em uma ONG no estado vizinho, veio até a Paraíba só para acompanhar o evento com Dilma e Lula. “A transposição das águas do Velho Chico traz esperança e alento para todos nós, nordestinos. Se Deus quiser, cada vez mais, o Brasil vai reconhecer o trabalho desse grande nordestino [Lula] para o Nordeste e para o Brasil”, destacou. Pedro Limeira, paraibano de 46 anos, servidor público, afirmou durante o lançamento popular que “se existe um pai para essa obra, é Lula. A Dilma deu continuidade e o Temer apenas inaugurou”, avaliou. “A figura do Lula é uma figura emblemática, e não é de hoje. O Temer é que é o estranho no ninho”, completou o servidor.
FOCOS DE RESISTÊNCIA
Nem tudo são flores diante da transposição. Devido a suas consequências, a obra enfrentou resistência desde governadores que não se sentiram contemplados até de comitês de bacias hidrográficas e de movimentos populares, preocupados com os impactos da obra. Um dos principais opositores da iniciativa foi o bispo Luiz Flávio Cappio, do município de Barra, na Bahia, que fez até greve de fome contra o projeto. O Supremo Tribunal Federal (STF) também emitiu decisões desfavoráveis à obra e, de novembro de 2005 até dezembro de 2006, os trabalhos foram interrompidos algumas vezes. As ações questionavam o licenciamento ambiental do projeto, que, à época, ainda aguardava parecer do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama). Um dos maiores focos de resistência contra o projeto se concentrou no estado baiano. A promotora de Justiça Luciana Khoury, do Ministério Público da Bahia, é uma das figuras que questionaram as violações causadas na Bacia do São Francisco e que conseguiu paralisar a obra junto ao STF. “Nós conseguimos liminares nos dois processos e conseguimos suspender a obra durante dois anos”, lembra. Para a promotora, a transposição é um “empreendimento potencialmente causador de danos”. “[A obra] não podia deixar de ser verificada, acompanhada. Na época, a gente teve uma atuação muito integrada com os ministérios públicos de outros estados e também com o Ministério Público Federal. Com isso, nós fizemos um trabalho muito parceiro de conhecimento da proposta do projeto e identificação de irregularidades das normas; [avaliamos] se ele cumpria de fato com as etapas previstas pelas normas, do ponto de vista ambiental, e das normas de recursos hídricos”, explica a promotora. O grupo que a acompanhava teve acesso aos Estudos de Impacto Ambiental (EIAs), notas técnicas de setores do Ministério Público Federal (MPF) sobre povos e comunidades tradicionais, além de pareceres de universidades, que mostravam possíveis lacunas do projeto no meio físico e no meio socioeconômico.“O projeto previa uma quantidade de pessoas impactadas, de comunidades impactadas, muito menor do que de fato aconteceu. Além de não ter feito estudos, por exemplo, dos impactos da fauna do rio, postergando estudos para a fase de implantação do projeto”, acrescenta Khoury.
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* Publicado originalmente no Brasil de Fato. Reproduzido em Outras Palavras com autorização especial do autor.