O que está em jogo na Constituinte

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Em disputa, na Bolívia, dois projetos para o país e duas visões de mundo

Desde seu início, em 6 de agosto de 2006, os trabalhos da Constituinte boliviana têm se caracterizado por efervescência e disputa. As 21 comissões temáticas formadas pelos delegados examinaram mais de 7 mil proposições, boa parte das quais provenientes de audiências públicas, realizadas todas as semanas. Este impulso de participação, porém, não foi capaz de levar a assembléia a decisões. Durante os oito primeiros meses de sessões, o principal tema debatido nas plenárias foi o quorum necessário para a aprovação de artigos. Minoritários na sociedade e na Constituinte, os conservadores “exigiram” maioria de dois terços e ameaçaram constantemente não reconhecer decisões aprovadas de outra maneira.

Apenas nas últimas semanas, teve início algum trabalho de sistematização. As 7 mil propostas foram consolidadas em 767 artigos. Há consenso em torno de 250. Para outros 517, há sempre mais de uma redação em debate. As polêmicas concentram-se em cinco grandes temas:

Autonomias: O Estado unitário imposto pelos colonizadoras oprime, há 500 anos, não apenas a língua e cultura indígenas mas também as formas originárias de organização em comunidades, produção e distribuição de riquezas, relação com a natureza, administração da justiça. O tema das autonomias, proposto há décadas, tornou-se central na Constituinte. Os movimentos populares reivindicam quatro níveis de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena. Pretendem articulá-las, contudo, sob o guarda-chuvas das leis nacionais. Curiosamente, autonomia também passou a ser uma palavra-chave para os conservadores, que a empregam com sentido muito diverso. Desde os primeiros sinais do ascenso popular — e, mais ainda, após a eleição de Morales — eles sonham em reforçar o poder estatal dos departamentos onde sua influência é maior, como forma de se contraporem à Bolívia indígena. A escalada de tensões em Sucre sugere que podem estar dispostos a jogar a carta da separação do país.

Visões de país e de mundo: Uma das comissões da Constituinte é a de Visão Nacional. Encarregada de redigir os artigos sobre o modelo geral de Estado e economia, ela também está dividida. A tradição indígena propõe um “Estado unitário”, porém “plurinacional e comunitário”, voltado para “o bem viver” (um conceito aimara) e com ênfase na garantia inclusão dos pobres e marginalizados. O Podemos e outros grupos de oposição querem manter a estrutura do Estado, assegurando apenas o reforço de seu caráter federalista.

Diversidade: Na comissão de Direitos e Garantias, a reivindicação indígena é estabelecer o reino da diversidade. Sugere-se proibir discriminações de gênero, idade, cultura, nacionalidade, língua, orientação sexual, religião, opção política ou filosófica, condição econômica e social, desabilitação ou gravidez. Propõe-se cláusula constitucional assegurando o direito à água e proibindo a privatização dos serviços de abastecimento. Introduz-se o respeito à justiça comunitária, em paralelo à tradicional. Os partidos conservadores, em contrapartida, levantam, como bandeiras, a defesa da propriedade e a proibição constitucional do aborto (garantindo-se o “direito à vida desde a concepção”). Condenam a justiça indígena, afirmando que, por sua natureza não-escrita, ela tem caráter arbitrário.

Poder estatal: Num país onde os indígenas são entre 55% e 60% da população, essa etnia deveria, segundo o MAS, eleger representantes próprios para o Parlamento. Ao invés de Câmara e Senado, como hoje, haveria uma única Assembléia, composta por 70 representantes nacionais, 27 departamentais (os atuais senadores) e 70 indígenas. Os conservadores insistem em duas câmaras. Vêem o Senado como um baluarte do poder oligárquico. Debate-se também a maioridade eleitoral: o MAS pretende reduzi-la de 18 para 16 anos.

Reeleições: Confiante na popularidade de Evo Morales, o MAS quer estabelecer a possibilidade de um número indefinido de reeleições. A direita, em contrapartida, quer bloquear a possibilidade de concorrer até mesmo a um segundo mandato consecutivo.

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Esta postagem é seqüência de:

O impasse boliviano

A série prossegue em:

O poder aos cidadãos? e A quem interessa a violência. Ao final, dossiê bibliográfico.

 

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