O impasse boliviano

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Como os conservadores paralisam Assembléia Constituinte. Que propostas estão em debate e quais as visões de mundo por trás delas. Por que a democracia direta pode ser parte da saída

Foi, sem dúvida, uma demonstração de força. Em 28 de agosto, um locaute (greve patronal) paralisou seis dos nove departamentos da Bolívia — os mais ricos, mais a leste e mais dominados pela oligarquia de origem hispânica. A maior parte das empresas fechou as portas. Os funcionários foram exortados a permanecer em casa. A paralisação dos transportes públicos contribuiu para o esvaziamento das cidades. Quem resistiu sofreu ameaças ou agressões. Em pleno centro de Santa Cruz de la Sierra, uma das capitais paradas, o mercado indígena de Abasto foi invadido por jovens brancos armados de porretes. Destruíram vitrines, prateleiras e objetos de seus ocupantes.

Os conflitos foram uma nova tentativa de inviabilizar a Assembléia Constituinte, reunida em Sucre. Um ano depois de instalada, ela aproxima-se de sua fase decisiva, na qual serão votadas (e, em seguida, submetidas a dois referendos populares) propostas que ampliam os direitos sociais e alteram a composição dos poderes, a distribuição das riquezas, a relação entre as etnias (leia na postagem abaixo). As maiorias indígenas continuam mobilizadas e a popularidade do presidente Evo Morales, alta — embora em leve declínio. O sucesso do locaute revela, porém, que a oposição não está batida. Desde 22 de agosto, uma escalada de tensões mantém a Constituinte paralisada. O velho espantalho da secessão do país voltou a ser erguido. A retomada das iniciativas populares, e de sua inventividade política, parecem cruciais para tirar o processo de mudanças do impasse ao qual foi conduzido. A primeira resposta dos que estão a favor das mudanças foi uma manifestação nacional em Sucre, dia 10 de setembro, reunindo milhares de pessoas.

Uma manobra astuta da oposição desencadeou o atual embaraço. Em meados de agosto, o maior partido conservador, o Podemos (Poder Democrático e Social), propôs abruptamente, à Assembléia, o deslocamento geográfico das sedes do poderes Executivo e Legislativo. Hoje em La Paz, elas seriam transferidas para Sucre, que é a capital oficial, mas abriga apenas o Judiciário. O sentido da proposição é evidente. La Paz e a vizinha El Alto — um subúrbio-dormitório situado a 4,1 mil metros de altitude — são símbolos da Bolívia indígena e cenários de suas mobilizações. Esvaziar essas cidades significaria desprezar um processo de luta por direitos que tem marcado a vida do país nos últimos dez anos e que levou, em 2006, à posse do primeiro governante não-branco em cinco séculos.

Majoritários na Constituinte, os partidos que expressam o avanço indígena podem derrotar a proposta sem dificuldades. Mas não se deram ao trabalho de fazê-lo. Alegaram que o mandato da Assembléia não inclui o debate sobre a capital. Foi o pretexto para a oposição submeter o país a uma onda de tensões. Em 20 de agosto, os chamados Comitês Cívicos, ligados à elite empresarial, organizaram greves de fome individuais — recorrendo a uma forma de luta usada contra governos militares, nos anos 70, pelas mulheres indígenas. Dois dias depois, integrantes dos mesmos comitês e jovens de direita tentaram queimar casa que supunham pertencer a um integrante do partido governista MAS (Movimento Ao Socialismo), que apóia as reivindicações indígenas. Os tumultos obrigaram Silvia Lazarte, a presidente da Constituinte, a suspender os trabalhos. Novas tentativas de reiniciá-los continuaram sendo feitas, sem sucesso, até 6 de setembro, quando bandos de direita agrediram delegados e tentaram invadir o edifício em que se reúnem. Em resposta a eles, Silvia anunciou, um dia depois, a suspensão, por 30 dias, dos trabalhos da assembléia.

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Esta matéria continua em:

O que está em jogo na Contituinte, O poder aos cidadãos? e A quem interessa a violência. Ao final, dossiê bibliográfico.

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2 comentários para "O impasse boliviano"

  1. Renato Monte disse:

    Impressionante como a América Latina sempre procura culpar o “Império” pelo seu fracasso socio-econômico e político.
    Infelizmente, estamos condenados a intervalos de caudilhismo messiânico e socialismo de terceiro-mundo, com a mesma lenga-lenga de “oprimidos”, “excluídos” e eternas “vítimas do capitalismo”.
    Temos vocação para ser pobres e nunca sairemos disso.,..

  2. orlando m.s. gomes disse:

    como é visível a ingerência norte-americana nos processos de avanço democrático em nosso continente. até quando teremos forças conservadoras infiltradas, comprometidas com a política beligerante?
    saudações democráticas

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