Europa: a saudável provocação italiana

Desempenho espetacular do MVS poderia produzir governo inédito, e transformar eleições europeias-2014 em debate real sobre futuro do continente

Beppe Grillo, líder do MVS, dialoga com o teatrólogo Dario Fo, um dos intelectuais italianos mais respeitados. Nos últimos dias, Fo tem argumentado com Grillo a um acordo pontual com o PD, de esquerda moderada

Beppe Grillo, líder do MVS, dialoga com o teatrólogo Dario Fo, um dos intelectuais italianos mais respeitados. Nos últimos dias, Fo tem argumentado com Grillo em favor de um acordo pontual com o PD, de esquerda moderada

.

Desempenho espetacular do MVS poderia produzir governo inédito e transformar eleições europeias-2014 em debate real sobre futuro do continente

Por Gabriele Cescente, em PressEurop| Tradução: Bruna Bernacchio

O resultado das eleições italianas causou surpresa em todo o mundo. Mas para os líderes europeus, deveria significar um suspiro de alívio: por uns poucos décimos, Angela Merkel e companhia não se encontrarão com Silvio Berlusconi, na próxima reunião de cúpula europeia. A ressurreição do Cavaliere e o repentino afundamento de Mario Monti, o candidato de Bruxelas e de Berlim, alimentam na imprensa europeia os comentários irônicos sobre a “benção” de Angela — que se converte sempre em sentença de morte para aqueles que a recebem…

 

Produz certa ironia recordar o líder do Partido Democrata (PD), Pier Luigi Bersani, que, uns dias antes das eleições, enfrentou-se cara a cara com Monti para saber qual dos dois a chanceler alemã preferiria, para estar à frente do governo italiano, sem ao menos considerar um instante a eventualidade de a maioria dos eleitores, a quem cabia decidir, não desejar nem um, nem outro em tal posição.

 

Slavoj Zizek destacou recentemente essa descrença na democracia, considerada por alguns (agora abertamente) como um perigo para a estabilidade econômica. Muitos imaginaram que as pressões e as intimidações bastariam para convencer os italianos a não perder tempo refletindo e a votar “da maneira devida”. Falou-se inclusive, como na Grécia, em repetir as eleições, caso não apresentassem o resultado esperado. Mas na Itália não se voltará a voltar, ao menos por enquanto.

 

A razão é simples: se houver novo pleito, o beneficiário será, muito provavelmente, o Movimento 5 Estrelas (M5S) de Beppe Grillo — o homem que, muito mais que Berlusconi, impede aos líderes europeus de conciliar o sono. Para mostrar que não é menos ortodoxo que sua rival, o candidato social-democrata a chanceler da Alemanha, Peer Steinbrück, apressou-se em expressar  seu sentimento de horror, declarando que a Itália acabava de eleger “dois palhaços”.

 

E no entanto, vistas de perto, essas eleições estão cheias de boas notícias. Como insistiu recentemente o diretor do diário La Stampa, Mario Calabresi, trouxeram o remédio para o que era universalmente considerado como uma das grandes doenças de um Velho Continente bloqueado: após as eleições, a Itália tem um dos Parlamentos mais jovens da Europa, com uma boa proporção de mulheres e de caras novas. Muitos dos que ocuparam os mesmos postos, durante os últimos vinte anos, foram excluídos. De uma maneira ou de outra, a enorme pressão por renovar, bloqueada desde tempos imemoráveis, por fim abriu uma brecha.

 

O mérito deve ser atribuído em grande parte ao M5S que, apesar da personalidade polêmica e dos propósitos com frequência inadmissíveis de seu líder, abriu a fresta que permitiu a dezenas de jovens aceder ao circuito fechado da política institucional. Esses recém-chegados merecem respeito: não são robôs guiados por Grillo e, uma vez no Parlamento, terão direito de exercer o voto secreto.

 

Deslegitimando o compromisso de seu líder para não levar a cabo acordo com ninguém, um grande número de eleitores do M5S já expressou sua vontade de apoiar um possível governo do Partido Democrata. Aliar-se a eles, em vez de aceitar a oferta de uma grande coalizão com Berlusconi, não seria mais um erro de Pierluigi Persani, o líder do PD.

Um governo minoritário dirigido pelo PD com o apoio do M5S seria uma experiência completamente nova e interessante na Europa das coalizações blindadas, da governabilidade como valor absoluto e do consenso de Bruxelas. Um laboratório em que as decisões não corresponderiam ao imperativo de mostrar aos mercados uma sacrossanta estabilidade, mas nasceriam de uma dialética permanente que deve ser a base da democracia. E é, sobretudo, a única maneira para compor entre as exigências com frequência contraditórias de sociedades que se fragmentaram dramaticamente, como a italiana e as europeias, em geral.

 

Não será tarefa fácil. No programa do M5S há pontos que serão acolhidos favoravelmente na Europa, como a redução dos custos da política; outros são potencialmente explosivos, como — para citar apenas um — o referendo sobre a moeda única. Mas depois de quatro anos de crise, o conflito que se alimenta no seio da União Europeia e em seus Estados-membros não pode mais ser reduzido a um simples debate de salão.

 

Como escreveu Adriana Cerretelli no Sole 24 Ore, “Angela Merkel fez todo o possível para tirar de seu caminho, até as eleições alemãs de setembro, o perigo de novos sobressaltos de instabilidade europeia”. Mas seu fracasso é agora mais evidente e as montanhas de pó acumuladas embaixo do tapete logo pesarão na balança. Chegou o momento de abrir um novo período em que se trata abertamente dos problemas — expondo-os em praça pública, ao invés de deixá-los para a gestão do sistema intergovernamental europeu, marcado por discussões de cúpula a portas fechadas.

 

Berlim e seus aliados já não têm partido na Itália nem na Espanha, onde todo o sistema político está por um fio e com o risco de que logo se encontre sem interlocutor. A dialética da austeridade e as previsões contraditórias sobre o futuro da União Europeia deverão ser debatidas a partir de agora fora da cúpula, e diante de todos. E as eleições europeias de 2014 chegam ao melhor momento.

 

Uma campanha eleitoral em escala europeia, como propôs recentemente Andre Wilkens — em que as distintas ideias sobre o futuro do continente sejam debatidas e avaliadas pelos cidadãos: talvez seja esta a última cartada para evitar que a fachada do “consenso europeu” venha abaixo, arrastando todo o edifício.

Gabriele Crescente é jornalista italiano. Trabalha desde 2006 no seminário Internazionale e é responsável pela edição italiana de PressEurop

 

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *