Espanha: depois da greve, novo cenário social

Grande sucesso da paralisação traz novos desafios. Como manter a pressão sem desgastar o movimento? E como controlar episódios violentos?

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Por Albert Recio*, em Sin Permiso | Tradução: Daniela Frabasile e Tadeu Breda

É complicado medir o êxito ou o fracasso de uma greve geral pela via quantitativa. Além do número de participantes, temos que levar em consideração o contexto da greve e a forma em que foi produzida. Não existe maneira de contabilizar com precisão quem aderiu à greve, quem teve de trabalhar por coação direta do empresariado ou para cumprir a cota mínima de serviços essenciais estabelecida em lei, quem não trabalhou porque foi convencido pela ação coletiva e quem foi ao trabalho apelando para alguma vergonhosa justificativa individual.

A única possibilidade de parar totalmente um país é fazendo um lock-out patronal (uma espécie de greve dos empresários) apoiado pelo governo. As verdadeiras greves gerais são sempre paralisações parciais, que permitem medir o grau de mal-estar, de mobilização e de apoio que a proposta dos sindicatos conseguiu alcançar entre as classes trabalhadoras.

Se colocamos nossa atenção às condições em que ocorreu a greve e em seu processo de construção, porém, fica claro que a mobilização ocorrida na Espanha no dia 29 de março foi um sucesso retumbante. Não só porque os índices de adesão foram altos entre os setores que tradicionalmente se mobilizam — indústria, transporte público etc. —, mas também porque repercutiu bastante na administração pública.

O coletivo Economistas frente a la Crisis avaliou que o consumo elétrico nas atividades econômicas espanholas experimentou uma queda de 87,7% no dia da greve, em comparação com dias normais de trabalho e também com feriados previstos pelo calendário. O dado é bastante significativo daquilo que muitas pessoas perceberam: foi uma mobilização importante. Os meios de comunicação dizem que o sucesso da greve foi parcial, pois o comércio abriu as portas — o que mostra o baixo impacto da paralisação. Mas é bem conhecido que no comércio coexistem empresas familiares, pequenas empresas e grandes companhias que adotam sistematicamente práticas antissindicais. Não é à toa que lojas de departamentos como El Corte Inglés ou Caprabo acumulam uma série de condenações por violações de direitos trabalhistas e coletivos — e assumiram a missão irredutível de boicotar a greve.

A greve geral do dia 29 de março foi convocada às pressas para “esquentar os motores”, e sofreu com novos episódios de perseguição aos sindicatos, na imprensa reacionária, e um autêntico apagão informativo nos meios “liberais”. Teve que enfrentar o velho argumento de que a greve é inútil, teve que vencer a pressão política e simbólica das autoridades europeias, peitar o insistente discurso que diz que “não há alternativas” e que devemos assumir as medidas de austeridade com bom humor… Apesar de tudo isso — e da desconfiança que os maiores sindicatos do país provocam numa parte expressiva dos cidadãos engajados —, a mobilização foi impressionante.

O tom definitivo da greve foi dado pelas massivas manifestações que ocorreram à tarde, não só em Madri e Barcelona, mas em muitas cidades menores onde a convocatória colheu um êxito notável. Qualquer um que se lembre de greves anteriores recordará que a manifestação da tarde era só o encontro dos ativistas mais mobilizados. No dia 29, porém, o protesto vespertino serviu para calar as vozes de todos os que pretendiam afirmar que a greve havia fracassado.

Não foi causalidade. Os manifestantes que participaram de atividades ao longo do dia já diziam que as ações da manhã, os piquetes informativos nos bairros e as concentrações locais haviam reunido muita gente e superado todas as expectativas. As manifestações da tarde de 29 de março de 2012 mostram a continuidade de um processo mobilizador que começou em maio do ano passado e que — convocadas pelos Indignados ou pelos sindicatos e organizações sociais tradicionais — levaram às ruas centenas de milhares de pessoas em inúmeras ocasiões. Se, por um lado, passamos da crise financeira à depressão generalizada e ao roubo de direitos sociais, por outro se produziu uma mudança: o povo cansou de esperar e partiu para a ação.

Ganho de consciência

Essa mudança se deu pela soma de muitos fatores. Ao lado da mobilização oriunda das organizações tradicionais, especialmente dos sindicatos, houve um ganho de consciência por parte da população, que percebeu que as políticas neoliberais constituem um ataque aos direitos trabalhistas e sociais, às condições de vida dos cidadãos e ao próprio papel organizacional e institucional do Estado. O cinismo com que o patronato firmou um pacto pelo emprego, poucos dias antes da aprovação de uma reforma laboral que não criaria novos postos de trabalho, mereceria por si mesmo uma resposta contundente. A reforma fecha muitas portas aos sindicatos e é em si mesma uma declaração de guerra à ação sindical e uma ameaça aos direitos trabalhistas ainda vigentes.

Pode-se criticar a atuação dos sindicatos — excessivamente ziguezagueante, contraditória — mas não há dúvida de que nos últimos meses os sindicalistas promoveram uma série de mobilizações (contra a reforma da Constituição, os cortes de verba, o emprego público) e iniciativas que elevou a participação pública e a ação coletiva. Além disso, é preciso lembrar — e não é pouco — que se uniram à convocatória geral todos os sindicatos minoritários, o que permitiu olhar para a greve como uma resposta autêntica de classe.

Por outro lado, o surgimento dos Indignados — com todas as suas contradições e discursos ambíguos, mas com bom nível de ativismo — constituiu um importante sopro de energia, de renovação e de politização para setores desencantados ou alheios à ação coletiva. Suas mobilizações tiveram momentos de êxito, e a persistência de grupos locais gerou uma nova rede organizacional que às vezes compete e às vezes coopera com as velhas estruturas de mobilização, como os sindicatos. Em Barcelona, essa rede foi a principal condutora dos piquetes de greve nos bairros, ainda que, em muitos deles, tenham contado com a participação de associações de bairro e, nuns poucos, onde já existe uma velha tradição de ativismo organizado, tenham se incorporado a comitês unitários mais abrangentes.

Existe um processo social que favorece a mobilização massiva e a heterogeneidade social das grandes manifestações. Até pouco tempo atrás, a segmentação social que dividia a população assalariada se refletia numa forte diferença de comportamento frente às grandes convocações. A maior parte das greves gerais anteriores eram, fundamentalmente, greves dos trabalhadores manuais, greves “operárias”, com pouca participação de empregados públicos e empregados de colarinho branco. Os ataques às condições de trabalho dos funcionários públicos e os cortes de gastos em saúde e educação estão contribuindo para gerar outra percepção social — assim como a brutal falta de expectativa de trabalho para a juventude educada e a extensão de empregos precários.

As políticas neoliberais estão atingindo muito mais gente, estão mostrando de forma mais forte a diferença radical entre capital e trabalho, e estão destruindo parte das estruturas que sustentavam as classes médias assalariadas. Ainda que incipiente, a brutalidade da crise abre as portas para uma reconstrução do sujeito coletivo, da autorrepresentação da classe operária como um grupo social diferenciado. É, sem dúvida, um processo em andamento (por exemplo, destaca-se a maior presença dos professores em relação a profissionais de saúde nas mobilizações mais recentes) e contraditório, mas que deve ser considerado seriamente na hora de elaborar propostas, mobilizações e discurso social.

Dilemas da mobilização

O resultado do processo depende da inteligência e da capacidade de seus atores para desenvolver um novo processo social. A curto e médio prazo, a questão fundamental é como prosseguir com a mobilização. Parece claro que as elites no poder, em todos os níveis, estão dispostas a sustentar com intransigência suas propostas. E não vão ceder por causa de umas poucas manifestações — vejamos o caso da Grécia, por exemplo. Os poderosos contam com o esgotamento e o desânimo do povo para conduzi-lo à rendição final. Por isso é tão crucial saber escolher um caminho de mobilização que seja capaz de resistir ao desgaste, mas que mantenha a pressão sobre o governo. Não há solução fácil para este dilema. E é possível que floresçam respostas dispersivas e desagregadoras.

A insistente exigência dos sindicatos em pedir espaços de negociação e diálogo com o governo parece mais dirigida a neutralizar as bases sociais que estão de acordo com a ordem das coisas ao invés de mobilizar os trabalhadores. São propostas incompreensíveis, pois é evidente que as elites não estão nem um pouco a fim de negociar nada. Geram ressentimento nos aliados mais distantes e não cumprem um objetivo crucial ao movimento: explicar bem à sociedade quais são os limites que nenhum país decente pode ultrapassar; explicar muito bem quais são as contradições, as injustiças, as incoerências das políticas atuais; explicar bem as propostas básicas de regulação que devem ser impostas. Os sindicatos só conseguirão ampliar sua legitimidade junto aos seus “aliados naturais” gerando propostas claras em suas próprias bases, especialmente numa conjuntura em que a negociação a portas fechadas parece mais uma via aberta à concessão sem contrapartidas.

Porém, o sucesso da greve geral não pode fazer-nos pensar que a ideia de uma mobilização permanente é um caminho possível. A greve geral é uma ação custosa, difícil. É optar sempre pela ofensiva. Os ativistas mais decididos estão sempre correndo o risco de ignorar os custos, de se esquecer do desgaste que a greve produz entre as pessoas que não concordam totalmente com suas propostas. Deixam de lembrar que a própria classe trabalhadora está num nível tal de vulnerabilidade (desemprego, endividamento, precariedade) que suas forças se veem limitadas.

Seria bom que todas as partes prejudicadas pela crise reconhecessem pelo menos um máximo denominador comum e se dedicassem a levar a cabo uma campanha de mobilização sustentável, que avance no estabelecimento de propostas compartilhadas e que abra espaços de confiança e unidade. Essa é uma tarefa urgente e necessária para todas as pessoas que lideram, promovem e animam organizações e campanhas, que continuam pensando que é necessário opor-se à barbárie atual. Começando pelos principais líderes sindicais e seguindo por todo o conjunto de ativistas dos diversos movimentos sociais.

Violência gratuita

O único ponto negativo da jornada de mobilizações que a direita conseguiu explorar foram as ações violentas que ocorreram em Barcelona — uma violência mais simbólica que real, mas totalmente gratuita e injustificada. Queimar lixeiras é um ato que sequer possui o simbolismo dos ataques contra carros ou lojas de luxo que ocorreram em outros tempos. Trata-se simplesmente de pensar que o conflito com a polícia tem significado em si mesmo. Atitudes como estas não têm nada a ver com os piquetes de greve, que agem como força coletiva, que estende e dá visibilidade a si mesma. Infelizmente, alguns grupelhos frequentemente aparecem nas grandes mobilizações e provocam distorções. Permitem, assim, a criação de uma cortina de fumaça que não apenas oculta a violência patronal, a coação individual praticada contra milhares de trabalhadores para que não adiram à greve, mas também impedem observar os excessos cometidos pela polícia.

Com certeza, muitos manifestantes pacíficos ficaram indignados ao ver as lixeiras em chamas. Porém, muitos também sofreram com os cassetetes metálicos e gases lacrimogêneos utilizados pelas forças de ordem catalãs — que, mais uma vez, mostraram imenso despreparo para lidar com esse tipo de situação. E muitos ainda nos perguntamos: como é possível que a polícia não realize uma ação preventiva eficaz contra a violência, se tais grupelhos estão tão identificados como diz o governo da Catalunha? O agravamento das condições sociais dá asas a novas respostas violentas e obriga os movimentos a pensar alternativas que impeçam a ocorrência de novas imagens apelativas — que servem apenas para ocultar a questão central da mobilização.

A greve geral de 29 de março foi um sucesso. E deveríamos começar parabenizando todas as pessoas que trabalharam para isso, que demonstraram que a diferença pode conviver com a unidade, que as políticas neoliberais merecem rechaço massivo, que somos milhões de pessoas que acreditamos numa sociedade mais justa. O êxito da greve deve fazer com que sigamos lutando para construir um amplo movimento de resposta, para fortalecer a unidade contra a minoria social que segue enxergando o mundo como uma propriedade particular e as pessoas, como escravos de seus interesses. Sindicalistas e ativistas trabalhamos lado a lado para que a greve acontecesse. Devemos considerá-la um estímulo para dar novos passos, produzir consensos e encontrar novos caminhos de transformação social.

(*) Albert Recio é professor de economia aplicada na Universidade Autônoma de Barcelona

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