Aristocráticas terras fora-da-lei

Dois livros jogam luz sobre paraísos fiscais, onde transitam alegremente (e sonegam impostos…) o crime organizado e os executivos globais

.

Dois livros jogam luz sobre paraísos fiscais, onde transitam alegremente (e sonegam impostos…) o crime organizado e os executivos globais

Por David Runciman, do London Review of Books | Tradução: Daniela Frabasile

  • Treasure Islands: Tax Havens and the Men who Stole the World by Nicholas Shaxson

    Bodley Head, 329 pp, £14.99, January 2011, ISBN 978 1 84792 110 9

  • Winner-Take-All Politics: How Washington Made the Rich Richer – and Turned Its Back on the Middle Class by Jacob Hacker and Paul Pierson

    Simon and Schuster, 368 pp, £11.50, March 2011, ISBN 978 1 4165 8870

Como sintetizar Saif al-Islam Gaddafi, filho do ditador líbio e figura emblemática dos nossos tempos, com seu doutorado na London School of Economics-LSE (“O papel da sociedade civil na democratização das instituições de governança global”), suas fundações de caridade, suas diversas propriedades, seu estilo de vida playboy, sua coleção variada de amizades (Peter Mandelson, Nat Rothschild, Prince Andrew), seu fácil acesso ao fundo soberano da Líbia, e sua recentemente declarada vontade de eliminar um a um os inimigos do regime de seu pai, a bala.

Ele é um hipócrita – é claro – mas isso não lhe faz justiça (quem não é?). Ele também é, na visão de alguns, uma vítima: seu infeliz orientador da LSE, David Held, descreveu a saia-justa em que Saif, supostamente reformista, viu-se metido, após a revolta do povo contra seu pai como “coisa de Shakespeare”.

Ele pode ser apenas um bandido de fala suave, e muitos observadores da internet notaram que ele parece copiar o modelo de bandido de fala suave e pretenso empresário Stringer Bell, de A Escuta [The Wire – série de drama da televisão norte-americana]. Mas a palavra que melhor capta Saif Gaddafi vem da consideração mordaz de Nicholas Shaxson sobre a importância dos paraísos fiscais nas finanças internacionais. Shaxson não debate os próprios Gaddafis, mas ele pinta a imagem do mundo em que o jovem Gaddafi, até muito recentemente, sentia-se em casa. Esse é o mundo do offshore1, ou dos paraísos fiscais. Shaxson não limita o termo a seu significado técnico, como uma simples descrição da jurisdição particular que permite que as pessoas eliminem a cobrança de impostos. Ele aplica o termo tanto a pessoas quanto a lugares; a um modo de vida e a um estado de espírito. Vista desta forma, ela se torna uma palavra muito útil. Saif Gaddafi é apenas uma pessoa offshore, que vive em um mundo offshore.

A essência do paraíso fiscal é a necessidade de manter uma sólida aparência de respeitabilidade, enquanto se permite que o dinheiro entre e saia com o mínimo de alarde possível. A elisão2 fiscal, ao contrário da evasão não é uma atividade ilícita, e os paraísos fiscais não existem apenas para permitir que as pessoas escondam seu dinheiro das autoridades. O dinheiro precisa ser acessível, e precisa ser líquido. Por essa razão, as pessoas preferem os paraísos fiscais onde podem administrar seus negócios de maneira relativamente aberta. As jurisdições offshore mais bem sucedidas são as que não perguntam nada, mas que também não mentem. A frase memorável de Shaxson para isso é “teatro de honestidade”. A Suíça sempre foi o mestre, com maneiras formais e documentação cuidadosa. Mas parece que outros campeões desse modo de se fazer negócios são os ingleses. O livro de Shaxson explica como e por que Londres tornou-se o centro do que ele chama de “teia de aranha” das atividades offshore (e, portanto, um lar tão confortável para os gostos de Said Gaddafi). É que offshore é a desdobramento [offshoot, em inglês – o trocadilho é intraduzível] de um império em declínio. Isso se aplica perfeitamente a um país que tem aparência de grandeza e tradicional alto padrão mas, por baixo disso, cheiro de desespero e necessidade urgente de mais dinheiro.

Como Shaxson mostra, muitos dos paraísos fiscais mais bem sucedidos são aqueles que foram, ou ainda são, parte do Império Britânico. Isso inclui Hong Kong, as ilhas Channel e territórios remanescentes como as ilhas Cayman. O que esses lugares oferecem são regimes fiscais limitados ou inexistentes, regulamentações extremamente frouxas, política local fraca, mas muitos dos aparatos de respeitabilidade e democracia. Os depositantes colocam, felizes, seu dinheiro em localidades que dão a impressão de ter jurisdições importantes, como a Inglaterra, sem realmente estar sujeitos às regulamentações britânicas – ou seus tributos.

As ilhas Cayman, ou Jersey, fazem pleno uso de suas conexões com a Inglaterra para assegurar às pessoas que seu dinheiro está seguro (o hino nacional de Cayman ainda é o “Deus salve a Rainha”). Mas quando alguém aponta às autoridades em Londres que esses lugares são usados por criminosos e ditadores para lavagem de seus bens, responde-se que a Grã-Bretanha não tem mais responsabilidade de dizer às colônias como lidar com seus próprios assuntos. É uma função que Hong Kong preencheu antes de ser entregue à China em 1997. Era possível apresentar-se ao mundo como um território com os valores britânicos, mas sem a tendência infeliz de aumentar seus impostos ou padrões de regulamentação em resposta à pressão política. Surpreendentemente, Hong Kong tem a mesma função para a China hoje. Após 1997, o governo chinês preservou Hong Kong como “zona administrativa especial”, autônoma da porção continental em todas as questões, com exceção das relações internacionais e defesa. Como Shaxson coloca: “a analogia com a conexão ambígua entre Inglaterra e Jersey, ou entre a Inglaterra e Cayman, não é coincidência. As elites chinesas querem seu próprio paraíso fiscal, com controle político e judicial completamente separado”. Portanto, os paraísos fiscais também atendem aos interesses de impérios em crescimento.

Outro fato que a maioria desses países tem em comum é que são ilhas. Ilhas tornam-se bons paraísos fiscais, e não só porque podem se separar das exigências políticas do continente. É também porque muitas vezes são comunidades unidas, nas quais todos sabem o que se passa, mas ninguém quer falar por medo de ostracismo. Esses “aquários”, como Shaxson chama, encaixam-se à mentalidade do paraíso fiscal, porque são aparentemente transparentes. Pode-se ver tudo o que acontece, mas quando você olha, não enxerga nada.

Jersey é o padrão: um lugar bom e distinto, com um forte senso de responsabilidade civil e muitas oportunidades para participação da sociedade, incluindo eleições para todos os cargos públicos, mas com partidos políticos fracos, eleições “gerais” escalonadas, e sem mudanças significativas no governo. “Se você não gosta, pode sair” é o lema básico da política de Jersey. Dissidentes não são reprimidos, como seriam em uma ditadura (é o motivo pelo qual ditaduras não são bons paraísos fiscais: nunca se sabe quando tudo vai cair por terra). Os dissidentes são simplesmente autorizados a deixar o país. O mesmo acontece nas ilhas Cayman, com sua minúscula população (por volta de 55 mil), seu legislativo e seu governador-geral nomeados por Londres – que toma todas as decisões difíceis, mas permite que os locais expressem sua opinião. Como um antigo governador-geral , “eu acho que estamos no campo da semântica nesse ponto. Quanto mais naturais de Cayman pudermos colocar em posições de poder, tanto melhor; eles neutralizarão, como pára-raios, as dissidências”.

Essa é a teia, mas onde está a aranha? No centro da história de Shaxson, está a cidade de Londres, que é um tipo de ilha no meio do Estado britânico. Novamente, a ascensão da cidade como local favorito para estrangeiros estacionarem seu dinheiro, não importando quem sejam ou de onde vieram, está relacionada ao declínio do império. Após a II Guerra Mundial, a libra ainda financiava muito do comércio global, mas a economia britânica não era mais capaz de sustentar o valor da moeda frente ao dólar. Como resultado da perda do controle sobre o canal de Suez, que causou uma corrida contra a libra, o governo tentou impor um freio nos empréstimos estrangeiros concedidos por bancos comerciais de Londres.

A resposta dos bancos, com conivência do Banco da Inglaterra (Bank of England), foi converter os empréstimos internacionais para dólares. O resultado foi a criação do chamado “mercado de eurodólar” – efetivamente, um paraíso fiscal. Como as trocas aconteciam em dólares, a Inglaterra não viu necessidade de impor tributos ou regulações a elas; como aconteciam em Londres, os norte-americanos não tinham meios de regular as trocas. Entre os primeiros a detectar as vantagens desse novo sistema estavam os soviéticos, que queriam um local seguro, fora dos Estados Unidos, para guardar seus dólares. Assim os norte-americanos não poderiam apreendê-los, se as relações entre os países se deteriorassem. Eles foram logo seguidos pelos próprios estadunidenses. Ou seja, por bancos norte-americanos e particulares ricos – que viram o mercado londrino como um local para se fazer negócios longe das mãos das autoridades nacionais. O dinheiro começou a se juntar.

O Banco da Inglaterra estava feliz: Londres voltara a ser o eixo central das finanças internacionais. As autoridades norte-americanas, como era de esperar, não gostaram: temiam uma crise do balanço de pagamentos. Mas quando, em 1963, o presidente Kennedy tentou conter a saída da moeda, tributando juros auferidos em papéis estrangeiros, em um esforço para reduzir a saída de dólares para mercados mais lucrativos, o efeito foi contrário às expectativas. Produziu-se o que Shaxson chama de “debandada para o mercado offshore de Londres, livre de taxas e regulamentações”.

Os políticos dos Estados Unidos viram-se diante de um dilema. Eles poderiam tentar enfrentar a ameaça dos paraísos fiscais com maiores taxas de juros domésticas; ou com controle mais forte sobre a saída de moeda e um regime regulatório mais resistente, exigindo que os bancos compartilhassem informações sobre suas atividades em outros países. Ou eles poderiam copiar Londres, criando um paraíso fiscal próprio e mais próximo: em outras palavras, se não pode competir, junte-se a eles. O segundo era o caminho de menor resistência – entre outras coisas, era uma maneira útil de reforçar a posição do dólar como moeda de reserva global. Com o tempo, foi o que o que escolheram. Lentamente, no final da década de 1960 e na década de 1970, e muito mais rápido nas décadas de 80 e 90, os Estados Unidos desregulamentaram seus controles financeiros e permitiram que o dinheiro se movesse com poucas perguntas.

Assim que o processo começou, desencadeou uma nova onda de competição entre os próprios Estados norte-americanos, que passaram a oferecer mais facilidades, e regulamentação menos intrusiva, para empresas de fora. Liderando esse caminho estava Delaware, que sempre tentou compensar sua pequena área abrindo-se a qualquer negócio. A partir da década de 80, cada vez mais empresas se mudavam para Delaware, para se beneficiarem da atitude extremamente favorável às administrações das empresas, contra os direitos dos empregados e acionistas. Se você levasse seu negócio a Delaware, (e muitas vezes isso era apenas uma questão de estabelecer um escritório e preencher alguns formulários), seria muito difícil que provassem qualquer coisa contrária a seus interesses, pois as cortes do Estado não se julgavam obrigados a controlar o que você fazia. Novamente, outros Estados colocaram-se diante da pergunta: poderiam isolar Delaware, reforçando suas próprias regulamentações? Ou deveriam tentar competir por uma parte dos lucros? Muitos decidiram competir. O paraíso fiscal tornava-se interno.

Quando autoridades de Delaware percorreram o globo no final da década de 1980, fazendo propaganda de seus serviços (e esperando, entre outras coisas, proporcionar um paraíso fiscal para todo o dinheiro que provavelmente sairia de Hong Kong, prestes a ser entregue à China), criaram a frase “Delaware pode te proteger da política”. Shaxson define um paraíso fiscal como “local que procura atrair negócios oferecendo comodidades politicamente estáveis que ajudassem pessoas ou entidades a contornar as regras, leis e regulamentações de jurisdições que existiriam em outros lugares”. Mas esse é o ponto crucial: onde está a política? Por que esses movimentos não geram resistências ou, ao menos, controvérsias?

No caso de Delaware, como em outras comunidades “aquário”, o tamanho provavelmente explica (por muito tempo, a política de Delaware foi moldada pela influência da família Du Pont, cujas vastas operações químicas dominavam a economia local). E no caso de Washington, onde a mudança para uma mentalidade offshore em nível nacional pode encontrar sérias oposições políticas? O que aconteceu com os representantes de todas as pessoas que não têm muito dinheiro para aplicar, que não podem realocá-lo mesmo que queiram, e que têm interesses em um sistema fiscal justo, aberto e amplamente progressivo? Eles não perceberam o que estava acontecendo?

Essa é a questão que Jacob Hacker e Paul Pierson abordam em Winner-Take-All Politics. Eles se estendem muito sobre offshore, mas a história que contam tem um surpreendente paralelo com a estabelecida por Shaxson. Uma das maneiras de identificar um ambiente offshore, de acordo com Shaxron, é que a política local é capturada pelos serviços financeiros. Para Hacker e Pierson, isso, mais do que qualquer outra coisa, explica o motivo pelo qual os ricos ficaram muito mais ricos nos últimos trinta anos. E por “ricos”, não entendem os “genericamente ricos”. Falam dos muito ricos. A explosão da renda dos “de cima”, ocorrida desde a década de 1970, não beneficiou 1% da população – mas, apenas, 0,1%. Desde 1974, a parcela da renda nacional abocanhada pelo 0,1% mais rico da população norte-americana cresceu de 2,7% para 12,3% do total. Trata-se de uma redistribuição alucinante de renda dos que não têm para os que têm muito.

Quem são essas pessoas? Como Hacker e Pierson apontam, eles “não são, em sua maioria, celebridades nas artes, entretenimento ou esportes. Nem são os rentistas, que vivem da riqueza acumulada, como ocorria no começo do século passado. A maioria substancial é de executivos e empresários, e uma parte crescente deles são administradores financeiros de empresas.

Hacker e Pierson creem que a política deva ser culpada por isso. Aconteceu porque os políticos e os funcionários públicos deixaram que acontecesse; não aconteceu por causa de mercados internacionais, nem por causa da globalização ou por diferenças nas oportunidades educacionais ou de vida em geral.

O que aconteceu foi construído, por pressão de lobbystas e de outras organizações para criar ambiente amigável para os super-ricos, que satisfaça suas necessidades. E se trata, de fato, de uma espécie muito particular de política, e de uma espécie muito específica de escolha. Não é resultado de conspiração, dado que aconteceu aí, à vista de todos. Mas não é movimento político do tipo de política que se vê nas ruas, com comícios, discursos e triunfos eleitorais.

A política que deixou que acontecesse o que aconteceu com o grande dinheiro planetário deslocalizado depende em grande parte do que Hacker e Pierson chamam de “um movimento de deriva”: “fracassos sistemáticos, prolongados de sucessivos governos responderam à deriva de um movimento econômico. Os políticos e decisores, com grande frequência, foram persuadidos a não resistir, a nada fazer, a deixar que as coisas se acomodassem, que andassem para onde quisessem andar, que o dinheiro corresse pelo mundo, para cima e para baixo, à vontade, até que o dinheiro se acumulou na ponta mais alta da pirâmide.

Essa ideia faz eco ao que Shaxson diz sobre como o sistema de deslocalização do grande dinheiro foi deixado livre, leve, solto, sem qualquer controle, ao longo dos últimos 40 anos. E nem se fala de conspiração, porque ninguém precisou conspirar. De fato, o que aconteceu aconteceu porque “ninguém estava prestando atenção ao grande dinheiro”.

Uma das reclamações de Hacker e Pierson sobre o modo como nós em geral vemos a política é que não vemos o que realmente acontece, porque só vemos o show eleitoral e as disputas partidárias. É o teatro da política eleitoral, que se desenrola ao lado do teatro da probidade.

Muito frequentemente, dizem eles, reduzimos a política ao plano do esporte: “Isso, sem dúvida, é o que explica que a política eleitoral seja tão atraente, como tema, para a mídia: é excitante e é simples. Os torcedores memorizam as jogadas características de seus atletas preferidos ou se tornam especialistas em grandes pelejas passadas. Mas todos sempre podem gozar o apaixonante espetáculo oferecido por duas equipes altamente motivadas disputando a palma.”

Aqui, tenho de fazer um mea culpa. Já várias vezes me surpreendi pensando se me interesso por política pelo mesmo motivo que me interesso por esportes, e várias vezes senti-me vagamente culpado. Desconfio que a culpa se explique porque, de fato, não sei, a fundo, o que acontece nem num caso nem no outro. Eleições são eventos fascinantes, aqueles dias são vividos de modo tão radical, que com certeza ali nada se vê do que seja a verdadeira política: os grupos de pressão – dinheiro, lobbys, ameaças – operam nesses dias para arrancar o melhor dos candidatos, sejam quem for, para influenciar a modelagem das políticas futuras. Eleições são também falsos pontos de virada histórica.

Seria fácil aceitar que, se os ricos têm vencido nas últimas décadas, o processo começou com a eleição do grande agente pró-big business e antigoverno que foi Ronald Reagan em 1980 (e, concomitantemente, de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha em 1979). Mas Hacker e Pierson dizem que o verdadeiro ponto de virada aconteceu antes, em 1978, ainda durante a presidência de Jimmy Carter.

Nesse ano, os lobbyistas e outros grupos organizados, que trabalhavam para implantar na opinião pública os discursos pró-desregulação e execravam o “peso dos impostos e regras” sobre os mais ricos e os interesses das grandes corporações, descobriram que ninguém labutava na resistência contra seus planos.

Apesar de o Partido Democrata controlar a Casa Branca e as duas Casas do Congresso, 1978 assistiu à derrota de todas as tentativas para aprovar reformas progressistas no campo tributário e para fortalecer a posição legal dos sindicatos. Em vez disso, aprovaram-se leis para reduzir a carga tributária das empresas e aumentar a carga tributária dos empregados (leis que autorizam desconto de impostos na fonte, que são leis conservadoras). Tudo isso aconteceu, porque os políticos seguiram a via de menor resistência – como sempre fazem os políticos eleitos – e a resistência mais bem organizada e mais bem abastecida de dinheiro veio dos representantes do big business, não das forças trabalhistas organizadas.

O que aconteceu nos EUA nos anos 1980s foi portanto uma extensão dos anos Carter, não alguma virada em relação a eles. O processo de desregulação e redistribuição rumo à concentração do dinheiro no pico da pirâmide foi acelerado nos anos Reagan, que era amplamente simpático a essa concentração. Mas não aconteceu por Reagan ser simpático ao processo, mas porque suas simpatias encontraram ambiente político favorável para correr com rédea solta, ambiente no qual a oposição manteve-se muda e a esperada coalizão de interesses populares jamais se materializou no campo contrário. Afinal de contas, como Hacker e Pierson observam, Richard Nixon, do qual se poderia esperar que partilhasse várias das simpatias de Reagan, uma década antes, havia labutado na direção oposta e acolhera o marco legal do estado de bem-estar e mantivera um sistema tributário amplamente progressista.  (Processo semelhante acontecera na Grã-Bretanha, com Edward Heath.)

Nixon agiu como agiu, não por suas simpatias estarem num lado ou noutro, mas porque não teve escolha: a pressão organizada para impedir que se aprovassem leis de concentração da riqueza ali estava, atenta, e muito mais forte que a pressão a favor dos interesses dos muito ricos. Só durante os anos Carter é que essa pressão enfraqueceu, e enfraqueceu muito mais do que se poderia esperar que enfraquecesse. Os políticos da revolução Reagan/Tatcher fizeram o que fizeram porque eram ideólogos comprometidos, determinados a não ceder um palmo de seus princípios. Fizeram o que fizeram, porque perceberam que não seriam presos nem seriam eleitoralmente derrotados.

Mas… e que fim levou a resistência contra os interesses da elite de super-ricos? Esse é o verdadeiro enigma, a cuja elucidação Hacker e Pierson dedicam-se empenhadamente, porque levam a democracia a sério – apesar de serem doentiamente obcecados na defesa de eleições.

Democracia implica favorecer os interesses da maioria, em detrimento dos interesses da minoria. Nas palavras de Hacker e Pierson, “A democracia talvez não preste em muitos pontos. Mas se supõe que seja eficaz para solucionar problemas que afetam maiorias amplas.” Será que a maioria realmente não se incomodou com estar perdendo tanto, a favor dos interesses de uma pequena elite de super-ricos?

No caso dos EUA, a ideia geral é que os eleitores permitiram que tudo acontecesse porque vivem preocupados com outras coisas: religião, cultura, aborto, armas etc. Quem pense assim entende que os norte-americanos comuns assinaram uma espécie de pacto faustiano com o Partido Republicano, pelo qual os ricos ficariam com o dinheiro e os pobres receberiam apoio e respeito aos valores culturais que lhes eram caros. Hacker e Pierson rejeitam essa ideia, mas não só porque não acreditam que o processo que analisam dependa de haver um Republicano na Casa Branca.

Os autores veem fortes evidências de que o público eleitor norte-americano continua a desejar um sistema tributário mais justo e entende que não é trabalho dos políticos proteger os interesses dos mais pobres contra os interesses da alta finança. O problema parece ser que os eleitores simplesmente não sabem o que os políticos fazem. O eleitor não é adequadamente informado sobre como as leis foram sendo consistentemente alteradas na direção que mais prejudicava o maior número de pessoas. “Os norte-americanos também são igualitaristas no que tenha a ver com o que entendem como mundo ideal” – escrevem Hacker e Pierson. “Mas têm opiniões muito menos claras, menos acuradas, quando se trata do mundo real”.

Por que ninguém estava prestando atenção ao que estava acontecendo? A culpa talvez seja da Internet, que torna cada vez mais difícil que alguém pense sobre alguma coisa, por tempo suficiente. Mas chama a atenção, de fato, que o argumento de Hacker e Pierson implica retorno a uma crítica muito antiga da democracia, uma crítica que floresceu nos anos 1920s e 1930s, mas foi suplantada, no período do pós-guerra, pela convicção de que os eleitores seriam competentes para manifestar comportamento racional em massa.

Essa crítica tradicional não vê qualquer fragilidade na democracia, no sentido de supor que os eleitores desejem coisas erradas, ou que não saibam o que querem. O eleitor sabe o que quer, mas não sabe como consegui-lo. As pessoas não são idiotas, mas, no que tenha a ver com política e votos, são ignorantes, preguiçosas, deixam-se satisfazer rapidamente por qualquer resposta de ocasião, construída para acalmá-las e calá-las. Hacker e Pierson reconhecem que hoje já se vê como ‘politicamente incorreto’ dizer tais coisas, mesmo nos discursos políticos sérios. Mas ainda é plena verdade.

“A maioria dos cidadãos dá pouca atenção à política, o que se vê pelas ruas. Generosidade política, hoje, seria, precisamente, chamar a atenção dos eleitores para seus vícios.” A solução tradicional que se encontrou para esse problema tem sido suprir a ignorância dos eleitores com opiniões de especialistas, que se apresentam como dispostos a reformar todo o sistema, na direção do melhor interesse dos eleitores. A dificuldade é que, quanto mais falam esses especialistas, menos os eleitores manifestam interesse em informar-se mais sobre o que se passa no mundo.

É onde Hacker e Pierson identificam o xis do problema da política democrática: para combater o que acontece fora do radar dos eleitores, é preciso que a luta continue a acontecer nos espaços que o eleitor vê. A esperança progressista é que, assim sendo, o leitor eventualmente acorde para as lutas e decida engajar-se nelas. Nas palavras de Hacker e Pierson: “Os reformadores políticos têm de aprender a discutir política pequena e para poucos, em milhões e milhões de fronts, a política de eixo longo e transmissão complexa.” O que exige muito tempo.

Mas tempo parece ser uma das coisas que os reformadores não têm. Como Shaxson aponta, em seu estudo de como nasceram os paraísos fiscais, uma das causas pelas quais a deriva andou na direção da desregulação é que a resistência política demorou demais para constituir-se como resistência. E aqui, outra vez, aparece mais uma das críticas tradicionais que se fez à democracia: enquanto os democratas bons e decentes organizam-se para fazer do mundo lugar mais acolhedor, o mundo a ser transformado já se transformou.

Em ambiente de altas finanças, cada vez mais rápido, é sempre mais fácil reunir uma coalizão de vontades a favor de cada vez menos regulações e regras, que reunir gente para trabalhar a favor de mais regulações ou leis mais apertadas. Assim também, é sempre mais fácil não aplicar leis que haja, do que fazê-las valer: não aplicar leis é trabalho instantâneo – basta fechar os olhos, exige o tempo de uma piscadela –, mas aplicar leis é processo lento e laborioso.

Shaxson, como tantos de nós, parece ter construído a arapuca na qual se vê preso. Por um lado, entende que a chave para resistir ao poder do dinheiro deslocalizado, global, offshore, super concentrado no topo da pirâmide, é construir sistema mais transparente, baseado no que chama de “troca automática de informação, em plataformas multilaterais”. Mas, isso, é o mesmo que entregar o timão aos especialistas (que, cada dia mais, falam sozinhos, ou só entre eles). Por outro lado, Shaxson quer governos nacionais mais ativos, dinâmicos, que respondam mais e melhor aos cidadãos. Mas, nesse caso, supervalorizam-se os governos nacionais e se enfraquece qualquer governança global, cuja coordenação é indispensável a qualquer sistema que se queira transparente. Se as políticas nacionais forem reforçadas, mais difícil será implantar qualquer coordenação no plano internacional. Essa é a arapuca-total em que se meteu a globalização.

Shaxson ilustra o problema, ao final de seu livro, quando lista propostas para mudar a cultura da grande finança deslocalizada global offshore. Um dos exemplos que oferece de como se pode fazer, vem dos EUA onde, em 2001, o Congresso afinal aprovou leis mais duras contra a lavagem de dinheiro e impediu a proliferação de bancos offshore que se ocultam sob delegados e acionistas cujos verdadeiros nomes ninguém conhece e que são os verdadeiros proprietários daqueles bancos. Mas, aí, é preciso considerar a data: todas essas leis foram incluídas no ‘pacote’ do Patriot Act, e só foram aprovadas porque todos os deputados e senadores estavam paralisados pelo 11/9. Além do mais, ninguém, em sã consciência, dirá que daquelas leis resultou mundo mais bem integrado ou mais transparente, ou alguma revitalização da política nos EUA.

Shaxson recomenda também que os governos se dediquem mais a manter ‘em casa’ o dinheiro da grande finança. Uma das forças motrizes do mundo da grande finança deslocalizada global offshore, diz ele, são “as marés de dinheiro sujo do petróleo que escorrem para dentro do sistema offshore global, e distorcem, nesse processo, toda a economia global.” Solução radical para manter as riquezas minerais dos países longe das mãos dos poucos indivíduos hiper-ricos e nas mãos de cidadãos comuns, é redistribuir o dinheiro, internamente, diretamente para os cidadãos. Parece irrealista, mas já se faz assim em vários lugares do mundo, por exemplo, na Líbia e no Alaska. Mas Shaxson não deixa que sua análise avance até a revelação dos nomes dos políticos governantes que fazem isso: Muammar Gaddafi, na Líbia; e Sarah Palin, no Alasca.

Assim sendo, sim, políticos ágeis, socialmente sensíveis, democráticos ou não, podem fazer grande diferença; mas não se conclui daí que, de suas políticas, resultem melhor compreensão entre os povos, nem, sequer, alguma paz. Esses dois ensaios brilhantes que resenhamos aqui acertam, ao sugerir que a política seja parte da questão. Mas a política (e a democracia) continuam a ser,  também, sempre, parte do problema.

1Offshore: Em tradução literal, “fora da costa”, ou “em alto mar”. O termo é empregado para designar empresas ou instituições financeiras que se localizam fora da jurisdição dos respectivos Estados nacionais – escapando, desta forma, à cobrança de impostos.

2Elisão fiscal é um termo técnico que designa a prática de buscar brechas na lei para evitar o pagamento de impostos. Ao contrário da evasão, ela procura burlar o espírito da lei, embora respeitando, formalmente, seu texto.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *