A exposição Anita Malfatti

Resposta a Lobato: “Suas telas chocam o preconceito fotográfico (…) Sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia”

140426-SantoAmaro

.

Resposta a Lobato: “Suas telas chocam o preconceito fotográfico (…) Sua arte é a negação da cópia, a 140426-SeloOswaldojeriza da oleografia”

Por Oswald de Andrade | Imagem: Anita Malfatti, Paisagem de Santo Amaro

Este artigo de Oswald de Andrade é um pequeno documento histórico. Publicado no Jornal do Comércio, no início de 1918, é a única voz que se contrapõe de uma forma manifesta às idéias e concepções de Monteiro Lobato, a propósito da exposição de Anita Malfatti.

Conforme o leitor poderá verificar, no corpo da série Oswald 60, em texto publicado quase um mês antes, no jornal O Estado de São Paulo, Lobato se insurge de uma maneira violenta contra aquilo que enxerga como uma grosseira mistificação.

Pelos estragos promovidos, observa-se com isso o peso de um determinado pensamento conservador, diga-se de passagem, muito bem estruturado em suas ambições estéticas, aliado a uma inquestionável força do mais importante jornal paulista da época.

Não é difícil imaginar o seu alcance naquele meio cultural e político. Além do mais, é sabido que o texto de Lobato contava com a anuência da direção do jornal.

Por outro lado, verifica-se, igualmente, na contramão da visão hegemônica, a capacidade que um movimento de transformação artístico-cultural possui quando as condições objetivas estão dadas.

Muitos anos depois, ao editar o seu livro de memórias, em 1950, o escritor modernista iria comentar: “A exposição de Anita Malfatti, em 17, provocara o coice monumental de Monteiro Lobato, inteiramente ignaro e maldoso. Sou o único a defender timidamente Anita pelo Jornal do Comércio com iniciais. Agora em 19, encontro-a com Di, Guilherme de Almeida e outros literatos”.* Os tempos começam a ser outros. (Theotonio de Paiva)

A exposição Anita Malfatti

Encerra-se hoje a exposição da pintora paulista sra. Anita Mafatti, que durante um mês levou ao salão da Rua Líbero Badaró, 111, uma constante romaria de curiosos.

Exigiria longos artigos discutir-se a sua complicada personalidade artística e o seu precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe apenas o aplauso a quem se arroja a expor no nosso pequeno mundo de arte pintura tão pessoal e tão moderna.

Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante artista não temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.

Diante disso, surgem desencontrados comentários e críticas exacerbadas. No entanto, um pouco de reflexão desfaria, sem dúvida, as mais severas atitudes. Na arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram. E os naturalistas mais perfeitos são os que melhor conseguem iludir. Anita Malfatti é um temperamento nervoso e uma intelectualidade apurada, a serviço de seu século. A ilusão que ela constrói é particularmente comovida, é individual e forte e carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista.

Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?

A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o que os salva.

A realidade existe, estupenda, por exemplo, na liberdade com que se enquadram na tela as figuras número 11 e número 11; existe, impressionante e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o quadro 172; existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que enchem a exposição.

A distinta artista conseguiu, para o meio, um bom proveito, agitou-o, tirou-o da sua tradicional lerdeza de comentários e a nós deu uma das mais profundas impressões de boa arte.

[Publicado no “Jornal do Comércio”,

São Paulo, 11/1/1918, um dia após o término da exposição]

* Andrade, Oswald. Um homem sem profissão. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 135.

1O Homem Amarelo e Lalive são respectivamente as telas 11 e 1

2Paisagem de Santo Amaro é o número 17

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *