Surrealismo, 100 anos: arte, revolução e sonho
Mais que “vanguarda artística”, movimento vislumbrou a vida desmercantilizada, a potência dos povos “selvagens”, o reencantamento e a reerotização do mundo. Por isso, desejou o comunismo. Breve passeio sobre sua trajetória
Publicado 17/10/2024 às 18:03 - Atualizado 23/12/2024 às 19:25
Por Michael Löwy, na Monthly Review | Tradução: Antonio Martins
A aspiração revolucionária estava na própria origem do Surrealismo e assumiu inicialmente uma forma libertária, no Primeiro Manifesto do Surrealismo (1924) de André Breton: “Apenas a palavra liberdade ainda me exalta”. Em 1925, o desejo de romper com a civilização burguesa ocidental levou Breton a se aproximar das ideias da Revolução de Outubro, como evidenciado em sua resenha de Lênin, de Leon Trotsky. Embora tenha se juntado ao Partido Comunista Francês em 1927, ele manteve, como explicou no panfleto Au grand jour, seu “direito à crítica”.
Foi o Segundo Manifesto do Surrealismo (1930) que tirou todas as consequências desse ato, ao afirmar “totalmente, sem reservas, nossa adesão ao princípio do materialismo histórico”. Ao afirmar a distinção, e até mesmo a oposição, entre o “materialismo primário” e o “materialismo moderno” defendido por Friedrich Engels, André Breton insistiu no fato de que “o surrealismo se considera indissoluvelmente ligado, em virtude das afinidades que apontei, à abordagem do pensamento marxista e somente a essa abordagem”.
Um marxismo maravilhoso
Não é preciso dizer que o marxismo de Breton não coincidia com a vulgata oficial da Comintern. Poder-se-ia talvez defini-lo como um “marxismo gótico”, ou seja, um materialismo histórico sensível ao maravilhoso, ao momento sombrio da revolta, à iluminação que rasga, como um relâmpago, o céu da ação revolucionária.
De qualquer forma, pertence, assim como o de José Carlos Mariátegui, Walter Benjamin, Ernst Bloch e Herbert Marcuse, a uma corrente subterrânea que percorre o século XX: o marxismo romântico. Isto é, uma forma de pensamento que é fascinada por certas formas culturais pré-capitalistas e que rejeita a racionalidade fria e abstrata da civilização industrial moderna – mas que transforma essa nostalgia do passado em uma força na luta pela transformação revolucionária do presente.
Se todos os marxistas românticos se rebelam contra o desencantamento capitalista do mundo – um resultado lógico e necessário da quantificação, mercantilização e reificação das relações sociais – é em André Breton e no Surrealismo que a tentativa romântica/revolucionária de reencantar o mundo por meio da imaginação atinge sua expressão mais marcante.
O marxismo de Breton também se diferenciou da tendência racionalista/cientificista, cartesiana/positivista, fortemente influenciada pelo materialismo francês do século XVIII – que dominava a doutrina oficial do comunismo francês – por sua insistência na herança dialética hegeliana do marxismo. Em sua palestra em Praga (março de 1935) sobre “a situação surrealista do objeto”, ele insistiu na importância capital do filósofo alemão para o Surrealismo: “Hegel, em sua Estética, abordou todos os problemas que atualmente podem ser considerados, no plano da poesia e da arte, os mais difíceis, e os resolveu com uma lucidez inigualável. […] Eu digo que, até hoje, é Hegel quem deve ser questionado sobre o mérito ou não da atividade surrealista nas artes”.
Alguns meses depois, em seu famoso discurso no Congresso de Escritores para a Defesa da Cultura (junho de 1935), ele voltou ao ataque e não temeu proclamar, contra a corrente de certo chauvinismo anti-alemão: “É, acima de tudo, na filosofia da língua alemã que descobrimos o único antídoto eficaz contra o racionalismo positivista, que continua a causar estragos por aqui. Esse antídoto não é outro senão o materialismo dialético como teoria geral do conhecimento.”
O resto da história é bem conhecido: cada vez mais próximos das posições de Trotsky e da Oposição de Esquerda, a maioria dos surrealistas (exceto Louis Aragon!) romperiam definitivamente com o stalinismo em 1935. Isso não foi de forma alguma foi um rompimento com o marxismo, que continuou a inspirar suas análises, mas com o oportunismo de Stalin e seus acólitos, que “infelizmente tendiam a aniquilar esses dois componentes essenciais do espírito revolucionário”, que são: a recusa espontânea das condições de vida oferecidas aos seres humanos e a necessidade urgente de mudá-las.
Em 1938, Breton visitou Trotsky no México. Juntos, escreveriam um dos documentos mais importantes da cultura revolucionária do século XX: o apelo “Por uma Arte Revolucionária Independente”, que contém o seguinte trecho famoso: “Para a criação cultural [a revolução] deve, desde o início, estabelecer e garantir um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma imposição, nem o menor vestígio de comando! […] Marxistas podem caminhar aqui de mãos dadas com anarquistas”. Como sabemos, esse trecho é da própria pena de Trotsky, mas também podemos supor que seja o produto de suas longas conversas às margens do Lago Patzcuaro.
Foi no período pós-guerra que a simpatia de Breton pela anarquia se tornaria mais evidente. Em Arcane 17 (1947), ele recordou a emoção que sentiu quando, ainda criança, descobriu uma tumba em um cemitério com a simples inscrição: “nem Deus nem Mestre”. Ele expressou uma reflexão geral sobre o assunto: “acima da arte, acima da poesia, quer gostemos ou não, também voa uma bandeira alternadamente vermelha e negra” – duas cores entre as quais ele se recusava a escolher.
De outubro de 1951 a janeiro de 1953, os surrealistas colaborariam regularmente, com artigos e notas, no jornal Le Libertaire, órgão da Federação Anarquista Francesa. Seu principal correspondente na Federação naquela época era o comunista libertário Georges Fontenis. Foi nessa ocasião que André Breton escreveria o texto flamboyant intitulado “La claire tour” (1952), que relembra as origens libertárias do Surrealismo: “Onde o Surrealismo se reconheceu pela primeira vez, bem antes de se definir, e quando ainda era apenas uma associação livre entre indivíduos que rejeitavam espontaneamente e em bloco as imposições sociais e morais de seu tempo, foi no espelho negro do anarquismo”. Apesar da ruptura que ocorreu em 1953, Breton não cortou laços com os libertários, continuando a colaborar em algumas de suas iniciativas.
Esse interesse e simpatia ativa pelo socialismo libertário não levou, no entanto, os surrealistas a negarem sua adesão à Revolução de Outubro e às ideias de Leon Trotsky. Em um discurso em 19 de novembro de 1957, André Breton persistiu e assinou: “Contra todas as probabilidades, sou um daqueles que ainda encontram, na memória da Revolução de Outubro, boa parte daquele impulso incondicional que me levou a ela quando eu era jovem e que implicava a entrega total de si mesmo.” Saudando o olhar de Trotsky, como ele aparece, em uniforme do Exército Vermelho, em uma antiga fotografia de 1917, ele proclamou: “Tal olhar e a luz que ali nasce, nada conseguirá extinguir, assim como Termidor não foi capaz de alterar os traços de Saint-Just.”
Finalmente, em 1962, em uma homenagem a Natalia Sedova, que acabara de falecer, ele clamou pelo dia em que “não apenas plena justiça seria feita a Trotsky, mas também as ideias pelas quais ele deu sua vida seriam convocadas a assumir todo o seu vigor e alcance”.
O Surrealismo é talvez esse ponto de fuga ideal, esse lugar supremo da mente onde a trajetória libertária e a do marxismo revolucionário se encontram. Mas não devemos esquecer que o surrealismo contém o que Ernst Bloch chamou de “um excedente utópico”, um excedente de luz negra que escapa aos limites de qualquer movimento social ou político, por mais revolucionário que seja. Essa luz emana do núcleo inquebrável da noite do espírito surrealista, de sua busca obstinada pelo ouro do tempo, de seu mergulho desesperado nos abismos dos sonhos e do maravilhoso.
Após Breton
Em 1969, algumas figuras proeminentes do surrealismo parisiense, como Jean Schuster, Gérard Legrand e José Pierre, decidiram que, dado o falecimento de André Breton em 1966, seria preferível dissolver o Grupo Surrealista. Essa conclusão, no entanto, foi rejeitada por muitos outros surrealistas, que decidiram continuar a aventura. Infelizmente, a maioria dos relatos acadêmicos ou populares sobre o Surrealismo aceita como fato que o grupo “se desfez” em 1969. Para a maioria dos historiadores da arte, o Surrealismo foi apenas uma das muitas “vanguardas artísticas”, como o Cubismo ou o Futurismo, que tiveram uma vida muito curta.
Vincent Bounoure (1928-1996) foi quem deu o impulso ao novo período de atividade surrealista, e permaneceu uma figura inspiradora até seu último dia. Um poeta talentoso e ensaísta brilhante, ele, assim como sua companheira Micheline, era fascinado pela arte oceânica da Nova Guiné, sobre a qual escreveu vários ensaios. A outra figura proeminente do grupo após 1969 foi Michel Zimbacca (1924–2021), poeta, pintor, cineasta e uma personalidade envolvente. Seu documentário sobre as “artes selvagens”, L’invention du monde (1952), é considerado uma das poucas pinturas verdadeiramente surrealistas; Benjamin Péret escreveu o texto mitopoético que comenta as imagens. O grupo surrealista também se reunia frequentemente no apartamento que ele compartilhava com sua parceira Anny Bonnin, cujas paredes eram decoradas com pinturas maravilhosas de Zimbacca e outros surrealistas, além de um conjunto notável de penas indígenas da Amazônia. Bounoure e Zimbacca foram o elo vivo entre o movimento surrealista pós-1969 e o grupo fundado por André Breton em 1924.
O Boletim de Ligação Surrealista
Nos anos de 1970 a 1976, os surrealistas parisienses que se recusaram a desistir se reagruparam – em estreita relação com seus amigos de Praga – em torno de um modesto periódico, o Boletim de Ligação Surrealista (BLS). O boletim inclui um debate sobre “Surrealismo e Revolução” com Herbert Marcuse. Entre muitas outras joias, um artigo do antropólogo Renaud em apoio aos índios americanos reunidos em Standing Rock em julho de 1974.
Na última edição do BLS, de abril de 1976, foi publicada uma declaração coletiva em apoio ao jovem cineasta surrealista brasileiro Paulo Paranagua e sua companheira, Maria Regina Pilla, presos na Argentina e acusados de “propaganda subversiva”. Iniciado pelos surrealistas, o apelo foi publicado por Maurice Nadeau na Quinzaine littéraire e também assinado por renomados intelectuais franceses, como Deleuze, Mandiargues, Foucault e Leiris.
Os surrealistas parisienses mantiveram relações próximas com o grupo de Praga, que vivia em semi-clandestinidade sob o regime stalinista imposto à Tchecoslováquia após a invasão soviética de 1968. Eles podiam se encontrar informalmente em residências privadas, mas seu periódico Analogon foi proibido, e eles não podiam exibir suas obras ou filmes. Em 1976, por iniciativa de Vincent Bounoure, os surrealistas de Paris e Praga publicaram juntos, na França, pela Éditions Payot, uma coletânea de ensaios intitulada La Civilisation surréaliste.
Continuar apesar do declínio
O grupo surrealista sempre foi muito político, desde 1924. Após 1969, isso continuou sendo verdade, mas não significa que se tratava de aderir a organizações políticas existentes. Alguns membros participaram de organizações trotskistas (Ligue communiste révolutionnaire, seção francesa da Quarta Internacional), outros na Fédération anarchiste ou na CNT anarcossindicalista. Mas a maioria dos surrealistas parisienses não pertencia a nenhuma organização; o espírito comum era anti-autoritário e revolucionário, com uma tendência libertária dominante. Foi esse espírito que inspirou suas atividades e as declarações conjuntas publicadas durante esses anos.
Em 1987, uma declaração conjunta foi emitida em apoio às comunidades indígenas Mohawk, que lutavam por suas terras contra o estado canadense. Várias outras declarações em apoio aos movimentos indígenas seriam emitidas nos anos seguintes. Isso, é claro, está ligado à tradição anti-autoritária e anticolonialista do movimento, bem como à sua rejeição da civilização ocidental moderna. Mas essa empatia e o interesse agudo pelas “artes selvagens” também são uma expressão de uma mentalidade romântica/revolucionária anticapitalista: os surrealistas acreditavam – como o romântico precoce Jean-Jacques Rousseau, que louvou a liberdade do Caribe – que se podia encontrar, nessas culturas “selvagens” – os surrealistas não gostavam da palavra “primitivo” – valores humanos e modos de vida que eram, em muitos aspectos, superiores à civilização imperialista ocidental.
O Boletim Internacional Surrealista nº 1 foi publicado em Estocolmo, com a resposta dos grupos de Paris, Praga, Estocolmo, Chicago, Madrid e Buenos Aires a uma investigação sobre a tarefa atual do Surrealismo. O grupo de Paris insistiu, em seu texto, no fato de que “o Surrealismo não é um conjunto de receitas estéticas ou lúdicas, mas um princípio permanente de recusa e negatividade, alimentado pelas fontes mágicas do desejo, da revolta, da poesia […]. Nem Deus nem mestre: mais do que nunca, este antigo lema revolucionário parece-nos relevante. Está inscrito em letras de fogo nas portas que conduzem, além da civilização industrial, à ação surrealista, cujo objetivo é o reencantamento (e a reerotização) do mundo.”
Nossas comemorações e as deles
Para protestar contra as pomposas comemorações do quinto centenário do chamado “descobrimento das Américas” (1992), os surrealistas publicaram, em 1992, o Boletim Internacional Surrealista nº 2, com uma declaração conjunta assinada pelos grupos surrealistas da Austrália, Buenos Aires, Dinamarca, Grã-Bretanha, Madrid, Paris, Países Baixos, Praga, São Paulo, Estocolmo e Estados Unidos. Inspirado em um ensaio escrito pela poeta surrealista argentina Silvia Grenier, este documento celebra a afinidade eletiva do Surrealismo com os povos indígenas, contra a civilização ocidental que oprimiu os povos indígenas e tentou destruir suas culturas: “na luta contra esse totalitarismo sufocante, o Surrealismo é – e sempre foi – o companheiro e cúmplice dos nativos.”
O Boletim foi publicado em três idiomas – inglês, francês e espanhol – pelos surrealistas de Chicago, que forneceram uma colagem de capa de Franklin e Penelope Rosemont representando Colombo como o Pai Ubu de Alfred Jarry.
O Museu de Arte Moderna de Paris (Centre Georges-Pompidou) abriu uma grande exposição de arte surrealista na primavera de 2002, sob o título “Revolução Surrealista”. A exposição, na verdade, não tinha nenhum significado revolucionário e tentou apresentar o surrealismo como um experimento puramente artístico, usando “novas técnicas”. Na entrada do museu, os visitantes podiam pegar um folheto gratuito de quatro páginas, que explicava que “o movimento surrealista queria participar ativamente na organização da sociedade” (?), que teve grande influência na sociedade, em particular na “publicidade e nos videoclipes”…
Irritado com essa confusão conformista, Guy Girard sugeriu ao grupo surrealista que preparassem um folheto alternativo, nas mesmas 4 páginas, com letras semelhantes, mas com um conteúdo completamente diferente: o Surrealismo foi descrito como um movimento revolucionário cuja aspiração à liberdade e à imaginação subversiva visava “derrubar a dominação capitalista”. O folheto foi ilustrado com imagens de artistas mulheres como Toyen e Leonora Carrington, quase ausentes da exposição, bem como uma foto histórica de 1927: “Nosso colaborador Benjamin Péret insultando um padre”…
Os membros do grupo então cuidadosamente colocaram uma pilha do folheto surrealista em cima do folheto “oficial”, para que os visitantes pudessem pegá-lo. A parte mais engraçada é que os curadores da exposição, intrigados com o panfleto surrealista, removeram sua própria peça inútil e a substituíram por uma nova, que tentava levar em conta o fato de que o Surrealismo era um movimento subversivo e anti-autoritário, que denunciava “a Família, a Igreja, a Pátria, o Exército e o colonialismo”…
Os vários panfletos e declarações do grupo foram ao fim publicados no livro mencionado anteriormente, Insoumission Poétique. Tracts, Affiches et Déclarations du groupe de Paris du mouvement surréaliste 1970-2010. (Paris, Le Temps des Cerises, 2010). Guy Girard editou o livro, reuniu o material e as ilustrações, e escreveu uma breve introdução para cada documento.
Tempo dos sonhos
Entre 2019 e 2024, foram publicadas cinco edições de uma nova revista parisiense: Alcheringa, le Surréalisme aujourd’hui. Alcheringa é uma palavra de uma língua aborígene da Austrália, que significa “o tempo dos sonhos”, mencionada por André Breton em seu ensaio “Main Première”. Finalmente, no verão de 2024, ocorreu a Exposição Internacional Surrealista “Merveilleuse Utopie”, organizada por Joël Gayraud, Guy Girard e Sylwia Chrostowska, na Maison André Breton em Saint-Cirq-la-Popie.
Independentemente de suas limitações e dificuldades, o movimento surrealista em Paris manteve viva, nos últimos 50 anos, a chama vermelha e negra da rebelião, o sonho anti-autoritário de liberdade radical, a insubordinação poética contra os poderes estabelecidos e o desejo obstinado de reencantar o mundo.
Como sempre, Outras Palavras nos traz matérias importantes, vistas de um ângulo crítico anticapitalista, ousado. Fogem da visão louvamenha usada pela nossa esquerda às vezes míope.
Parabéns em especial pelo artigo sobre o Surrealismo.