O Maquiavel utópico de Gramsci

O “Príncipe” é atual por formular o mito da ‘res-publica’ e pensar como concretizá-lo. O príncipe moderno é o partido hegemônico gramsciano, que não vai ocupar o Estado, mas estimular a mudança da sociedade civil e dos demais partidos

Imagem: Machiavelli in China II, de Marije Bijl
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Por Adelina Bisignani na Revista Outubro | Tradução de Alvaro Bianchi

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Este artigo é parte da edição 35 da revista Outubro, editada pela Autonomia Literária, parceira de Outras Palavras. O tema central deste número é o Direito à Educação, como contraface da mercantilização do ensino. O índice completo está aqui.

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Nos últimos anos, muitos volumes e conferências foram dedicados a Antonio Gramsci.[1] A biografia e a pesquisa teórica do pensador sardo foram analisadas com delicadeza, e muitos detalhes de sua atividade política — que continuou durante seus anos de prisão — foram trazidos à luz. O tema da relação hegemonia/democracia esteve no centro dessas investigações. E parece que, a esta altura, os estudiosos estão de acordo em destacar o caráter democrático da teoria gramsciana da política ou, para ser mais explícita, em afirmar que o conceito gramsciano de hegemonia não tem um viés totalitário.[2]

No entanto, a meu ver, é necessário verificar a validade dessa interpretação em um terreno mais específico: o da concepção de partido político e da relação entre ele e o Estado. A interpretação ainda mais difundida tende, de fato, a ver no partido aquele “intelectual coletivo”, ou “Príncipe moderno”, que organiza as massas para ocupar o Estado. Mas são precisamente as páginas dedicadas ao Príncipe moderno (as Noterelle sulla politica del Machiavelli) que nos oferecem um Gramsci que vê no partido o instrumento para a realização de um “mito”, de uma res-publica que acolhe a multiplicidade e as diferenças, assim como Maquiavel — como um ante-litteram jacobino — via no “novo principado” a possível unificação de diferentes realidades sociais como a cidade e o campo.

No primeiro parágrafo do Quaderni 13, Gramsci esboçou uma interpretação de Il Principe (1513) de Maquiavel como uma obra que olhava para a formação de uma nova civilização e, poderíamos dizer, como uma obra que combinava realismo político com uma perspectiva utópica. Segundo Gramsci:

“O caráter fundamental de Il Principe é não ser um tratado sistemático, mas um livro ‘vivo’, no qual a ideologia política e a ciência política se fundem na forma dramática do ‘mito’. Entre a utopia e o tratado escolástico, as formas nas quais a ciência política se configurou até Maquiavel, em que este deu a sua concepção a forma fantástica e artística, para a qual o elemento doutrinário e racional se personifica em um líder, que representa plástica e ‘antropomorficamente’ o símbolo da ‘vontade coletiva’”.[3]
(Gramsci, Q 13, § 1, p. 1555)

E posteriormente, ainda no Quaderni 13, acrescentou: “Maquiavel não é um mero cientista; é um homem de partido, de paixões poderosas, um político em ato que quer criar novas relações de forças e, portanto, não pode deixar de ocupar-se com o ‘dever ser’” (Gramsci, Q 13, § 16, p. 1577, grifos nossos).

Não nos interessa aqui estabelecer se a figura de Maquiavel que Gramsci estava desenhando correspondia, ou não, ao que ele realmente era. Este não é o lugar para discutir a vasta bibliografia que se acumulou sobre o secretário florentino. Mas a leitura de um Maquiavel “republicano” e mesmo “utópico” — no sentido de um pensador que na realidade apreende os elementos para curvá-la em direção a um novo mundo, ainda não existente, mas possível de construir —, pode ser facilmente confirmada por alguns pontos importantes de suas obras.

Nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio (1531), comentando o processo histórico que levou Roma a extraordinária grandeza, uma vez libertada de seus reis, Maquiavel afirma que a razão desse crescimento civil

“É fácil de entender: não é o bem particular, mas o bem comum o que engrandece as cidades. E, sem dúvida, este bem comum não é observado senão nas repúblicas, porque tudo o que é feito, é feito para seu bem, e embora aquilo que se faça cause dano a um ou outro homem privado, são tantos os que se beneficiam que é possível fazer as coisas contra a vontade dos poucos que sejam oprimidos por elas. O contrário acontece quando há um Príncipe e, na maioria das vezes, o que é feito em seu favor ofende a cidade, e o que se faz pela cidade o ofende”.
(Machiavelli, 2000, p. 139)

Mas era, sobretudo, pela leitura do capítulo final de Il Principe (1513) que Gramsci insistia em mostrar a dimensão mítico-utópica da obra do secretário florentino:

“Em todo o pequeno volume, Maquiavel trata de como deve ser o Príncipe para conduzir um povo à fundação do novo Estado (…); na conclusão o próprio Maquiavel se torna povo, confunde-se com o povo, mas não com um povo ‘genericamente’ entendido, mas com as pessoas que Maquiavel convenceu com seu argumento precedente (…) Por isso, o epílogo de Il Principe não é algo extrínseco, ‘imposto’ externamente, retórico, mas deve ser explicado como um elemento necessário da obra, aliás, como aquele elemento que reverbera sua verdadeira luz em toda a obra e a torna algo semelhante a um ‘manifesto político’”.

(Gramsci, Q 13, § 1, p. 1556)

E algumas páginas adiante Gramsci acrescentou: “A conclusão de Il Principe justifica toda a obra” (Gramsci, Q 13, § 25, p. 1618). Foi Luigi Russo, no seu Prolegomeni a Machiavelli (1966), quem relacionou o tratamento frio de todo o “volume” com a sua conclusão (Russo, 1966 [1945], cap. 3). Mas Gramsci, que também tinha em mente a definição de Maquiavel dada pelo próprio Russo como “artista-herói da técnica política”, não hesitou em valorizar essa conclusão como a expressão de um “mito” capaz de formar um novo espírito coletivo. O realismo da análise política de Maquiavel — Gramsci insistiu — não poderia de forma alguma ser separado de seu projeto político: o “mito” (utopia) de uma Itália tornada Estado-nação era baseado em um reconhecimento cuidadoso das forças políticas e militares em campo. Corretamente Massimo Cacciari recordou que para Maquiavel, “verdadeiro profeta é aquele que sabe amar as próprias ideias e assim impô-las, fazê-las Estado” (Cacciari, 2016, p. XCIII). Afirmação esta na qual realismo e utopia se encontram organicamente conectadas. E, se quiséssemos usar um oxímoro, poderíamos dizer que Gramsci viu em Maquiavel o expoente de um “realismo utópico” em oposição ao realismo dos Stenterellos;[4] ao realismo de quem, por excesso de diplomacia, não consegue ver além do próprio nariz. Segundo Gramsci, o

“realismo ‘excessivo’ (e, portanto, superficial e mecânico), conduz frequentemente a afirmar que o homem de Estado deve operar apenas no âmbito da ‘realidade efetiva’, sem interessar-se pelo ‘dever ser’, mas apenas pelo ‘ser’. Isso significaria que o homem de Estado não deve ter nenhuma perspectiva que vá além do próprio nariz”.

(Gramsci, Q 13, § 16, p. 1577)

Não se tratava, portanto, de opor uma política utópica a uma política realista, o “dever ser” ao “ser”, mas de conceber a atualidade do “dever ser”:

“O ‘dever ser’ é, portanto, concretude, aliás, a única interpretação realista e historicista da realidade, é apenas história em ato e filosofia em ato, apenas política. A oposição Savonarola-Maquiavel não é a oposição entre ser e dever ser, mas (…) entre dois ‘dever ser’, o abstrato e esfumaçado de Savonarola e o realista de Maquiavel”.[5]

(Gramsci, Q 13, § 16, grifos nossos)

O realismo utópico que Gramsci identificou em Il Principe (1513), motiva e explica a discussão contextual da concepção soreliana do “mito” presente naquela primeira nota do Quaderni 13. Este é visto como “uma ideologia política que se apresenta não como uma utopia fria ou como um raciocínio doutrinário, mas comouma criação de fantasia concreta que opera sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar sua vontade coletiva” (Gramsci, Q 13, § 1). Essa concepção do mito oferecia a possibilidade de pensar um Maquiavel que escrevia e trabalhava pela construção de uma “cidade futura”; um Maquiavel republicano, não do modo imaginado por Rousseau e Foscolo (Gramsci, Q 8, § 21, p. 952-953 e Q 13, § 25, p. 1617), mas como representante de um pensamento político cujo objetivo fundamental era superar a cisão entre dirigentes e dirigidos. Segundo Gramsci:

“na formação dos dirigentes é fundamental a premissa: deseja-se que existam sempre governados e governantes ou se deseja criar as condições nas quais a necessidade da existência dessa divisão desapareça? Isto é, parte-se da premissa da perpétua divisão do gênero humano ou acredita-se que ela é apenas um fato histórico, correspondente a certas condições” .

(Gramsci, Q 15, § 4, p. 1.752)

O mito elaborado por Maquiavel era funcional a esse projeto político. O Príncipe moderno deveria ser capaz de transformar “um povo disperso” em um sujeito político capaz de atuar dentro de certas relações de força para criar novos equilíbrios políticos. Era sobre a autonomia e a capacidade projetiva da política (ser orientada por um “deve ser”) que Gramsci se apoiava para conceber a construção da “cidade futura”. E, nessa perspectiva, a visão maquiavélica da relação entre virtù e fortuna tematiza a relação entre política e vontade de mudança.[6] Se, de fato, a fortuna indicava a situação objetiva, caberia, no entanto, à virtù do Príncipe mostrar a capacidade de identificar aquelas forças que poderiam operar na direção de uma nova res-publica.

Gramsci, no entanto, não hesitava em apontar o limite fundamental do “mito soreliano”: o seu antijacobinismo.[7] A perspectiva soreliana movia-se, a seu ver, na dimensão econômico-corporativa, enquanto a ideia maquiavélica de unificação da cidade e do campo era um aspecto indispensável para a formação de uma nova “vontade coletiva nacional-popular”. Escreveu Gramsci: “Pode-se estudar como Sorel, partindo da concepção da ideologia-mito, não tenha chegado à compreensão do partido político, mas se tenha detido na concepção do sindicato profissional” (Gramsci, Q 13, § 1, p. 1.556). E acrescentou:

“o caráter abstrato da concepção soreliana do ‘mito’ aparece na aversão (que assume a forma passional de uma repugnância ética) pelos jacobinos, que certamente foram uma ‘encarnação categórica’ do Príncipe de Maquiavel. O moderno Príncipe deve ter uma parte dedicada ao jacobinismo”.

(Gramsci, Q 13, § 1, p. 1.559)

Pode-se, talvez, comparar a leitura de Maquiavel proposta por Gramsci com aquela “republicana” de Hans Baron (1994) e de Quentin Skinner (1989). No que diz respeito à interpretação da ética protestante na formação do mundo moderno, pode-se refletir sobre a relação Gramsci-Weber.[8]

A formação dessa vontade coletiva requer, desse modo, a intervenção e a unificação de uma multiplicidade de sujeitos sociais. Maquiavel foi movido (além do exemplo das grandes monarquias francesa e espanhola) pela necessidade de criar um “Estado italiano unitário” (Gramsci, Q 13, § 3, p. 1563). A criação de tal Estado nacional-popular constituiria o “objetivo último”, o dever de ser, do Príncipe. Mas, observa Gramsci, a formação de tal estado “é impossível se as grandes massas de camponeses cultivadores não se dividem simultaneamente (junto com grupos sociais urbanos) na vida política” (Gramsci, Q 13, § 1, p. 1560).

Ao ler Il Principe, embora não aceitasse a ideia de Francesco De Sanctis de um Maquiavel “profeta da unidade nacional”, Gramsci evidentemente tinha em mente a interpretação que dela fez o pensador napolitano. Como ele mesmo explicou, De Sanctis era participante de um processo de transformação política da realidade nacional e percebeu no secretário florentino uma concepção de ciência política que não encontrava sua resolução no realismo político, porque era alimentada pela ideia de que a ação política deveria ser orientada pela concretude de um “deve ser” que não fosse “amor às nuvens”, mas a vontade de criar uma nova ordem política.[9] A posição gramsciana em relação àqueles que propuseram uma leitura de Maquiavel como um teórico do Estado-potência — de Francesco Ercole a Benito Mussolini — era muito crítica.[10] O tema que, por meio de Maquiavel, debatia-se era a redefinição da forma de Estado no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Como Eugenio Garin teve a oportunidade de observar, naquela fase histórica “engajar-se em Maquiavel não era analisar um momento específico da cultura italiana: significava posicionar-se sobre todas as questões fundamentais da história e da política italiana” (Garin, 1990, p. 111). O engajamento tinha o propósito de discutir as características do Estado moderno e sua crise.

Mas que tipo de Estado estava em crise? E que novo Estado Gramsci hipotetizou? Já em um artigo de 8 de novembro de 1919, ele identificou na guerra as origens e algumas características da crise: “A guerra rompeu irremediavelmente o equilíbrio mundial da produção capitalista. Antes da guerra, uma densa rede de relações comerciais havia se estabelecido no mundo”, escreveu (Gramsci, 1987, p. 303). A guerra, entretanto, destruiu esse sistema de relações e condenou Estados individuais a praticar políticas de poder. Além disso, ao “movimentar” as classes subalternas, ela tornou obsoletos os antigos instrumentos de representação e mediação de interesses presentes no território nacional e, com esta crise dos sistemas nacionais liberais, os próprios princípios fundamentais da democracia representativa (divisão de poderes, pluralismo, etc.) foram questionados.

Nos Quaderni, Gramsci desenvolveu sua análise. A Grande Guerra não era a origem da crise, mas ela própria era uma manifestação da crise ou, mais precisamente, era uma manifestação das mudanças estruturais que se desenvolveram na Europa e na América entre o final do século XIX e o início do novo século. Estas mudanças consistiam, essencialmente, na alteração da relação entre as políticas nacionais e a internacionalização das economias. Gramsci observava:

“Ocorre hoje no mundo moderno um fenômeno semelhante ao da separação que ocorreu na Idade Média, entre ‘espiritual’ e ‘temporal’; fenômeno muito mais complexo do que então, visto que a vida moderna é mais complexa (…) os intelectuais tradicionais, rompendo com o agrupamento social ao qual deram até agora a forma mais elevada e abrangente e, portanto, a consciência mais ampla e perfeita do Estado moderno, na realidade realizam um ato de significado histórico incalculável, eles marcam e sancionam a crise do Estado de modo decisivo (…). Este (processo de) desintegração do Estado moderno é, portanto, muito mais catastrófico do que o (processo histórico) medieval, que foi desintegrador e integrador ao mesmo tempo”.

(Gramsci, Q 6, §10, p. 690-691)

Era, portanto, o distanciamento dos intelectuais tradicionais da forma de Estado-nação que sinalizava a desintegração daquele espírito nacional-popular coletivo, que havia caracterizado a história dos Estados e da cultura europeia até o final do século XIX.[11] E o vínculo tradicional entre Estado e nação era rompido, pois a própria realidade nacional era atravessada por interesses supranacionais, que resistiam a qualquer forma de unificação e centralização dentro de uma única vontade nacional e estatal. Os Estados nacionais, portanto, tendiam a responder a esta “crise de autoridade”, à sua dificuldade em governar os interesses e paixões presentes no seu território, com uma “política de bastar a si próprios”. Eles tendiam a se isolar e a lançar todas as forças nacionais contra um inimigo externo. Gramsci desenvolveu seu discurso na nota que ele dedicou à vida nacional francesa:

“O exercício ‘normal’ da hegemonia no terreno que se tornou o clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação de força e consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força sobrepasse em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria”.

(Gramsci, Q 13, § 37, p. 1.638)

Mas era justamente na França que ocorria uma “crise endêmica do parlamentarismo” que indicava a existência de “um mal-estar generalizado no país”. E era isso o que demonstrava a impossibilidade de um “exercício ‘normal’ da hegemonia” e a tendência a acentuar os aspectos autoritários do governo nacional. Segundo Gramsci:

“No pós-guerra o aparelho hegemônico se rompe e o exercício da hegemonia torna-se permanentemente difícil e incerto. O fenômeno é apresentado e tratado sob várias denominações e em aspectos secundários. Os mais triviais são: ‘crise de autoridade’ e ‘dissolução do regime parlamentar’”.

(Gramsci, Q 13, § 37, p. 1.638)

Encontrar uma solução democrática para tal “crise de autoridade” não era fácil. O caminho que Gramsci identificava era o de um novo internacionalismo que reconhecia plenamente as razões de uma conciliação de interesses (internos e externos à nação), a partir do pleno reconhecimento da primazia do homem-trabalho, que deve “colaborar na reconstrução econômica do mundo de modo unitário” (Gramsci, Q 19, § 5, p. 1988). Tal reconstrução unitária da economia mundial requeria uma racionalização dos processos de produção, mas, acima de tudo, exigia o estabelecimento de uma nova subjetividade política capaz de repropor “o caráter utópico do Príncipe” (Gramsci, Q 13, § 1, p. 1556).

Estabelecido o “objetivo último” nos termos citados, podemos compreender melhor os motivos que levaram Gramsci a destacar as características de um “manifesto político” em Il Principe (1513). O “Maquiavel do proletariado” não se identificava apenas com Marx (como escreveu Croce), mas com um novo tipo de ação política que tinha como objetivo a recomposição unitária da economia mundial. E se a utopia de Il Principe (1513) de Maquiavel consistia em imaginar a unificação da relação cidade-campo por meio da formação de milícias, a utopia do Príncipe moderno deveria, ao contrário, consistir em propor uma estratégia que soubesse combinar o nacional com o supranacional. Ao mesmo tempo, deveria preservar sua natureza de organismo que estrutura a sociedade civil e medeia seus interesses na vida do Estado. A perspectiva gramsciana rejeitava, assim, a ideologia da identificação entre partido (ou movimento) e Estado, típica das teorias políticas totalitárias[12] e, em vez disso, preservava a ideia da unidade-distinção entre associações privadas e o Estado, entre a sociedade civil e sociedade política. Mantinha a ideia de uma supressão impossível das diferenças políticas dentro da sociedade e dentro do próprio partido político.

Com razão, portanto, Giuseppe Vacca escreveu que o Príncipe moderno não é o partido da classe trabalhadora, mas o partido em geral (Vacca, 2017, p. 208). A construção de uma res-publica pressupõe a coexistência de uma multiplicidade de sujeitos, que cooperam na formação de uma nova ética pública. A pluralidade de partidos é indispensável para a construção da nova res-publica. Segundo Gramsci,

“Deve-se enfatizar a importância e o significado que os partidos políticos no mundo moderno têm na elaboração e disseminação das visões de mundo, pois elaboram essencialmente a ética e a política conforme a elas, ou seja, eles funcionam quase como ‘experimentadores’ históricos dessas concepções”

(Gramsci, Q 11, § 12, p. 1.387)

Só nesse sentido são “totalitários”. Somente na medida em que experimentam em si a unificação entre teoria e prática, entre humildes e sábios, promovendo um processo de modificação real das consciências e das relações intersubjetivas. Os partidos são chamados a criar uma nova ética pública, um novo sentido nacional-popular e, na realização deste trabalho, devem apresentar-se como um “imperativo categórico”.

Portanto, os partidos em sua pluralidade cumprem a tarefa de vivificar e democratizar a sociedade civil, uma tarefa que, com o tempo, podem cumprir, na medida em que na sociedade civil operam uma subjetividade política que desenvolve sua hegemonia cultural. O tema do Príncipe moderno está inextricavelmente entrelaçado com o da hegemonia. A tarefa do Príncipe moderno passa então a perturbar

“Todo o sistema de relações intelectuais e morais (…). O Príncipe ocupa o lugar, na consciência, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um secularismo moderno e de uma secularização completa de toda a vida e de todas as relações dos costumes”.

(Gramsci, Q 13, § 1, p. 1.561)

O partido hegemônico não deve, portanto, ocupar o Estado, mas sim estimular molecularmente a transformação da sociedade civil e de todos os demais partidos que a representam. Ele os hegemoniza apenas na medida em que os incita a mudar sua natureza. Segue-se que

“com a extensão dos partidos de massa e sua adesão orgânica à vida mais íntima (econômico-produtiva) da própria massa, o processo de padronização dos sentimentos populares de mecânico e casual (isto é, produzido pela existência de condições ambientais e pressões semelhantes) torna-se consciente e crítico”.

(Gramsci, Q11, § 25, p. 1.430)

A construção da res-publica parte do Príncipe moderno, mas deve envolver-romper todo o sistema político. Tal revolução não pode ser o produto de um único partido ou de um líder carismático (Vacca, 2017, p. 177-178) porque, se o “objetivo final” é colaborar na reconstrução da unidade da humanidade, então certamente não se pode reconstruir tal unidade considerando como inimigos os demais alinhamentos ideais e políticos, mas apenas como sujeitos sobre os quais agir, para torná-los parte de um projeto reformador.

Referências bibliográficas

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[1] Cfr. A. D’Orsi (2017); Montanari (2016); Rossi (2017); Suppa (2016); Vacca (2017). Cf. tb. a antologia de escritos gramscianos organizada por Liguori (2016) e a reedição do volume de Santucci (2017). Entre os congressos recordamos aquele ocorrido em Roma no Istituto dell’Enciclopedia Italiana entre os dias 18 e 20 de maio de 2017, com o tema “Egemonia e modernità. Il pensiero di Gramsci in Italia e nella cultura internazionale”, e o que ocorreu na Università degli Studi di Milano, no dia 11 de outubro de 2017, com o tema “Gramsci nel Novecento”.

[2] Veja-se, em particular Vacca (2017, cap. 1).

[3] Cito os Quaderni del carcere na edição de Valentino Gerratana (Gramsci, 1975) indicando o número do caderno, o parágrafo e a página.

[4] Stenterello é uma máscara do carnaval e do teatro florentino, que representa um personagem tagarela e medroso, mas ao mesmo tempo impulsivo. Gramsci faz várias vezes nos Quaderni o paralelo entre Maquiavel e Stenterello, p. ex. Q 9, § 25 e 27; Q 10/I, § 1; Q 13, § 37, etc. (N. do T.).

[5] Também sobre a relação Savonarola-Machiavelli Gramsci ver as páginas de Luigo Russo (1966, p. 181-188).

[6] Optou-se por manter a palavra virtù em italiano para expressar os múltiplos sentidos que ela assume no vocabulário maquiaveliano (N. do T.).

[7] Sobre a relação Gramsci-Sorel ver Cavallari (2001).

[8] Sobre isso, ver Montanari (1989) e Fabio Frosini (2010, cap. 4).

[9]De De Sanctis, Gramsci tinha presente o capítulo XV da Storia della letteratura italiana, dedicado, precisamente, a Maquiavel. Sobre a interpretação desanctisiana de Maquiavel creio que ainda possa ser aceito o juízo de Giuliano Procacci: “em seu conjunto as páginas desanctisianas permanecem um ponto de partida obrigatório para quem quiser entender os termos e o desenvolvimento da crítica moderna sobre o grande florentino” (Procacci, 1981, p. XCII).

[10] Para a interpretação de Maquiavel por Mussolini, vejam-se os dois artigos: “Forza e consenso” (Gerarchia, a, II, n. 3, marzo 1923) e “Preludio a Machiavelli” (Gerarchia, a. II, n. 4, aprile 1923. Ambos os artigos foram republicados em Mussolini (1979). Ver também Francesco Ercole (1926). Sobre o debate a respeito de Maquiavel nos anos 1920-1930 ver as contribuições na primeira parte do volume organizado por Bassani; Vivanti (2006). Ver também Calabrò (2005).

[11] Para uma análise detalhada de tais processos ver Mangoni (2013) e Guazzaloca (2004).

[12] Nesta perspectiva, Carl Schimitt (1935) é exemplar. Para uma bibliografia essencial sobre Carl Schmitt ver Bisignani (2016).

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