“Naves espaciais na Praça Vermelha”

Uma visão particular sobre a Revolução Russa. Em obra de coletivo literário, personagens históricos dão contornos a instigante ficção científica. No centro, limites do Estado em superar o imaginário capitalista e a urgência de outras cosmovisões

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Coletivo Wu Ming em entrevista a Bernardo Gutiérrez, no CTXT | Tradução: Gabriela Leite

Sovietes e eletricidade, arte proletária e ficção científica, assaltantes de bancos e utopistas ferrenhos, experimentos científicos e alienígenas. Wu Ming está de volta. Em seu formato mais habitual: um romance. Com o método que sempre usaram: escrever a muitas mãos. Com o pano de fundo mais comum em suas criações literárias: a revolta social. Nesse caso, com a Revolução em maiúsculas, como contexto: a Revolução Russa. Em Proletkult [lançado na Espanha pela editora Anagrama, 2020], o coletivo italiano Wu Ming, em sua formação atual, na qual resistem três de seus cinco fundadores, revela as dobras e matizes de uma das grandes revoluções de todos os tempos. Se o romance tivesse um slogan, seria “naves espaciais na Praça Vermelha”. A figura histórica de Alexander Bogdanov — médico, filósofo, romancista, planejador de roubos, revolucionário heterodoxo, herege excomungado pelos marxistas ortodoxos — guia uma narrativa trepidante por momentos surpreendentes da Revolução Russa. No último romance de Wu Ming, o movimento de arte proletária Proletkult, que buscava um novo tipo de beleza distante dos cânones burgueses, convive com o “interplanetarismo” defendido por Alexander Bogdanov em Estrela Vermelha, seu livro mais famoso.

Capa do livro Proletkult

Desde que os membros de Wu Ming publicaram o romance Q em 1999, livro assinado com seu primeiro nome coletivo (Luther Blisset), os italianos escolheram contextos de forte agitação política e social para a maioria de seus livros. Em Q, retrataram a guerra dos camponeses alemães (1524-1525), em que a multidão revoltada se autoidentificava com uma identidade coletiva comum, “poor Konrad”. Em Manituana se narra a insurreição que acabou provocando a independência dos Estados Unidos a partir da perspectiva dos indígenas e mestiços. Em O Exército dos Sonâmbulos, seu penúltimo romance, Wu Ming abordou a Revolução Francesa com olhar (e protagonistas) feministas e com o nascimento da hipnose como paisagem e estratégia narrativa. Proletkult é a nova peça de uma saga tão inconclusa como as revoluções do passado. “Uma revolução não é suficiente, precisamos de cem revoluções”, afirma Denni, uma das protagonistas do romance.

Nessa entrevista, realizada por correio eletrônico, Wu Ming medita sobre o “cosmocomunismo” defendido por Bogdanov, sobre a conjunção de ficção científica e revolução, sobre a relação entre arte e realidade, invenção criativa e ação política. Os membros do Wu Ming, firmes defensores do copyleft e da livre circulação do conhecimento, insistem em criar uma nova “cultura vinda de baixo” que não tem que partir da linguagem, nem da forma nem do conteúdo, senão da “forma de fazer cultura, de distribuí-la, de usá-la, de criar momentos de encontro, de fazê-la acessível”. Na entrevista também refletem sobre a crise do neoliberalismo, sobre os vislumbres pós-capitalistas que a pandemia de covid-19 nos deu e sobre a classe trabalhadora, que ficou visível repentinamente por causa da crise.

Em Proletkult, a Revolução Russa é um processo bastante diverso. Os sovietes + eletricidade, Lenin e o Partido Comunista, são apenas uma espécie de pano de fundo. Vocês dão luz a outros aspectos da revolução. O espaço, a ficção científica comunista marciana e o movimento artístico proletário Proletkult estão no epicentro. Tinham essa ideia clara antes de escrever o romance? A intenção era fazer mais complexa e diversa a ideia de Revolução Russa?

Em certo sentido, sim, era nossa intenção. Como fizemos em outros romances, em Proletkult buscamos um ângulo oblíquo para enxergar a Revolução Russa. No livro, não contamos a Revolução em si, mas a história de um homem, Alexander Bogdanov, dentro da Revolução, seu ponto de vista, suas contradições. Foi médico, filósofo, romancista, planejador de roubos a banco e revolucionário herege. Sua biografia é um grande tema literário e sua visão era um inquietante olhar sobre a Revolução que estávamos buscando.

A escolha de Alexander Bogdanov como personagem principal parece, então, crucial em Proletkult. Como teve influência em vocês o universo marciano comunista recriado em Estrela Vermelha, a novela mais famosa de Bogdanov? E a vida e obra do autor?

Conhecemos Bogdanov como personagem por acaso. Nossa ideia inicial era falar da Revolução Russa e da União Soviética a partir de uma perspectiva extraterrestre, pós-humana e oblíqua. Pensamos em uma trama ambientada na década de 1920, um enredo que reuniria os primeiros experimentos sobre viagens espaciais, contato com extraterrestres e socialismo, e comprimimos tudo isso sob um slogan: “Naves espaciais na Praça Vermelha”. Em seguida tivemos esse encontro muito próximo com Bogdanov. Nos fascinaram especialmente três características: seu pensamento sobre si mesmo como o primeiro “herege” excomungado pelos marxistas ortodoxos; sua tentativa de interpretar qualquer coisa segundo a Tektologia, a “ciência da organização” que inventou; e sua capacidade, em seu livro Estrela Vermelha, de narrar uma utopia, a utopia do socialismo marciano, descrevendo também as contradições da ideia de “Progresso”.

A personagem de Denni é muito interessante para mim: uma mulher, quase uma menina, que não sabemos exatamente se veio de Marte ou se tem problemas mentais. Em um momento fala da ideia do interplanetarismo, uma espécie de sentimento solidário e comunista de apoio mútuo entre planetas. No romance, Bogdanov, em uma conversa com Leonid Voloch, descreve a si mesmo como um “marxista marciano”. Por que esse “cosmocomunismo”, tão presente em Proletkult, os interessa tanto?

O “cosmocomunismo” é interessante porque é a conjunção de ficção científica e revolução. Nosso romance também fala da relação entre arte e realidade, invenção criativa e ação política. Denni encarna o interplanetarismo e, ao mesmo tempo, é um personagem vivo tirado de uma novela de ficção científica. Para ela, não há solução de continuidade entre a vida e a fantasia, entre a literatura e a realidade. Mas todo revolucionário precisa de imaginação, bem como de uma leitura eficaz da realidade, se quer tentar fazer real um mundo que ainda não existe.

O livro evoca o processo do movimento Proletkult para encontrar uma nova estética proletária, um novo tipo de arte coletivista que busca as conexões entre as pessoas e uma nova forma de organizar a experiência do mundo. Essa frase, tirada do livro, é bastante impactante e poética: “Queimaremos Rafael, respiraremos uma nova beleza”. Por que trataram de recriar o espírito do movimento Proletkult? Qual foi sua importância real? Era/é possível uma arte e uma cultura proletária e popular produzida de baixo para cima?

Na verdade Bogdanov não estava de acordo com a ideia de queimar Rafael, pensava que seria suficiente deixar de imitá-lo, repetindo as mesmas coisas de sempre. Sua ideia de cultura proletária também conquistou Gramsci, que fundou um instituto inspirado no Proletkult na Itália. Agora é lugar comum pensar que a realidade e a linguagem não podem se separar, mas naquele momento dominava o dualismo, e a ortodoxia marxista dizia que caso se quisesse mudar a mentalidade das pessoas, sua consciência, primeiro haveria de mudar as condições materiais, a forma em que viviam.

Bogdanov acreditava que essa distinção tinha que ser superada: se a cultura dominante era a expressão da classe dominante, então a batalha cultural era parte da luta de classes, exatamente na mesma medida que as greves dos trabalhadores e a autogestão das fábricas. É importante recuperar uma perspectiva deste tipo porque hoje a cultura dominante é tida como certa e o capitalismo se aceita como uma segunda natureza, uma condição inevitável. Experimentar com novas linguagens e formas já é uma forma de cultivar alternativas, de mostrar que as possibilidades são possíveis. Mas a nova “cultura vinda de baixo” — e Bogdanov tinha a mesma opinião — não tem que partir da linguagem, nem da forma, nem do conteúdo: tem que vir da nossa forma de fazer cultura, de distribuí-la, de usá-la, de criar momentos de encontro, de fazê-la acessível, de discuti-la. Pode-se renovar todas as formas que quiser, mas se você escreve um poema para ler em um salão, não está fazendo nada de novo.

Bogdanov foi um dos pioneiros das transfusões de sangue. Mas no livro ele entende a transfusão como um caminho de irmandade, como um regalo recíproco, como um método para uma sociedade coletivista. Me parece que esse é um efeito especial de Wu Ming. Ou estou equivocado?

Não contamos nada além das teorias de Bogdanov, que queria encontrar formas de mudar a percepção que os humanos têm da realidade. Acreditava que sem essa ação cultural, apoderar-se do poder e dos meios de produção não haveria sido suficiente para revolucionar verdadeiramente a sociedade e a humanidade. Compartilhar sangue, o fluido corporal que nos faz viver, não só aumentaria a imunidade social das enfermidades, mas também o sentido de coletividade na vida das pessoas. Era “comunismo de sangue”, ao mesmo tempo comunismo biológico e psicológico.

Aleksandra Kolontai, outra personagem histórica que aparece em Proletkult, em uma conversa com Bogdanov, sustenta que a transfusão de sangue não é suficiente para a coesão de uma sociedade. Defende que as relações sociais, de classe e de gênero, são as chaves para ativar essa conexão. A vida coletiva e a coletividade como sujeito político são centrais em seu romance. Por quê?

Porque é central em nossas vidas: somos um coletivo de narradores que já trabalhamos juntos há 25 anos, e nesse tempo nossas histórias estimularam uma vasta comunidade de pessoas que escrevem, tocam música, fazem trilha, brigam, debatem… É o nicho biológico que criamos para nós mesmos, seríamos pessoas muito diferentes sem ele. O culto ao indivíduo é letal. Aqueles que têm camaradas não morreram.

Em Proletkult, voltam a abordar o tema das histórias coletivas, sempre presentes na obra de Wu Ming. Mas com uma tonalidade nova. “Nunca um único narrador narra. O narrador também escuta, não se pode saber com o que cada um contribui”, escrevem no livro. O ouvinte como possível e futuro narrador. Seguimos na guerra entre histórias fechadas (com direitos autorais) e histórias abertas (com licenças livres)? Ou o fluxo de informação digital dificulta o controle das histórias e sua autoria, e as histórias de código aberto vão ganhar a batalha?

Temos ambas tendências hoje em dia, e evidentemente estão vinculadas entre si. Por um lado, o crescente fluxo de informação e o desenvolvimento de tecnologias digitais tornam cada vez mais difícil “confinar” a criatividade. Por outro lado, o capital persegue as consequências de suas mesmas inovações com novos “cercamentos” para salvaguardar a propriedade privada e os benefícios econômicos. É uma das contradições sistêmicas mais evidentes das últimas décadas. Por exemplo, quando te pedem milhares de euros para poder citar um verso de uma canção em um romance, você consegue se dar conta de que a contradição está produzindo monstros. Por causa disso o Proletkult não abriu com um verso de Starman de David Bowie, como deveria ter sido, mas com uma citação de um escritor que viveu há dezoito séculos atrás, Luciano de Samosata.

Denni diz no livro que uma revolução não é suficiente, que precisamos de cem revoluções. Em outra parte do livro, Bogdanov diz que “mudar a opinião das pessoas é um processo mais lento”. Parece que Bogdanov fez uma viagem ao futuro e viu como Margaret Thatcher trabalhava nesse ponto, não?

Bogdanov previu grande parte do que o mundo experimentou depois de sua morte. Não pode construir uma nave estelar, mas certamente tinha uma máquina do tempo escondida em algum lugar.

Mudar a mentalidade das pessoas requer muito tempo. Além disso, o processo nunca se completa. A maior parte das pessoas adota conceitos e pensamentos contraditórios segundo cada situação. Isso significa que não importa quanto tempo faz que tenha sido imposta uma cosmovisão, sempre é possível encontrar um ponto de alavancagem para dar-lhe a volta.

Franco Berardi Bifo diz que a humanidade — principalmente a esquerda e os movimentos sociais — tem uma espécie de nostalgia do comunismo. Não do sistema comunista que existiu, mas de uma utopia, da possibilidade de futuros. Durante décadas, o fim da história proclamado por Francis Fukuyama e a hegemonia do neoliberalismo dificultaram o simples feito de imaginar um mundo novo. Vocês percebem algum vislumbre de esperança em meio ao colapso da covid-19? Poderemos acabar com o neoliberalismo e construir novas/velhas formas de vida e cosmovisões mais sustentáveis e cooperativas?

Com muito gosto, deixamos as profecias aos profetas. Somos contadores de histórias. O que podemos dizer é que pelo que vimos em 2020, percebemos três efeitos colaterais evidentes da pandemia. O primeiro é que durante os meses em que a produção industrial e o transporte desaceleraram e diminuíram por causa do isolamento, a emergência climático-ambiental se deteve e a tendência até se reverteu.

O segundo efeito é a recessão econômica, cujas consequências sociais devastadoras já começamos a ver. O terceiro efeito é o aumento da paranoia, a infopatia e a enfermidade psíquica do corpo social. Significa que, por um lado, não é possível salvar o planeta sem mudar o sistema econômico e sem livrar-se da ideia chantagista do “aumento da produção ou recessão”. Por outro lado, não é possível criticar o sistema econômico sem tratar da psicopatologia social produzida pelo auge de sua crise. Esse segundo ponto nos leva de volta a Bogdanov e suas teorias sobre a saúde e o cuidado coletivos.

Esses últimos anos do neoliberalismo tornavam visíveis, novamente, as classes. Pode ser que não seja a mesma classe proletária, já que a desindustrialização do Norte global é grande, mas um novo tipo de autoescravidão de trabalhadores pobres/despossuídos/24 horas por dia. Estão de acordo?

No pedestal do túmulo de Karl Marx no cemitério de Highgate, se pode ler: “Trabalhadores de todas as terras, uni-vos”. “Trabalhadores” é um termo mais direto que “proletários”. Hoje em dia, poucas pessoas se descrevem como proletárias, mas muitas, muitas pessoas podem dizer que são trabalhadoras: pessoas que ganham um salário por seu tempo, habilidades, inteligência e trabalho. Quando o neoliberalismo podia depender do crescimento econômico, ainda podia garantir a certos trabalhadores um nível de bem-estar e direitos que os faria sentir diferentes dos demais trabalhadores. Quando entrou em crise, a bolha estourou, e agora a classe trabalhadora é mais visível, e seu tamanho é mais notável, é muito maior que a quantidade de pessoas que exploram o trabalho de outros.

Termino com uma provocação, uma citação de Meme Wars, um livro editado pela revista Adbusters em 2012. No capítulo “Uma nova estética”, escrevem sobre um novo sentido da beleza. “Se vamos continuar mais mil anos… teremos que desenvolver uma nova narrativa, um novo roteiro … um novo tom, estilo, sentimento, humor… uma nova estética… uma nova forma de ‘estar’ no mundo. Teremos que iniciar um empurrão global, uma insurreição espiritual. Teremos que utilizar a criatividade para destruir o velho mundo, a velha estética comercial e dar à luz um novo sentido da beleza.” Não é a mesma busca de beleza presente em Proletkult?

Em certo sentido, é isso. Em uma cena de nosso romance, Denni ensina Bogdanov uma palavra no idioma de seu planeta. A palavra é “adaeth” e significa “bonita e útil”. Em uma sociedade livre da obsessão pelo valor de troca, teremos a união do valor de uso e do valor estético em um mesmo conceito. Depois de tudo, não é nada diferente do que foi teorizado, há um século e meio atrás, por William Morris e o movimento “Arts and Crafts”. Morris perdeu a revolução. A Lenin faltava ter consciência de que tomar o poder político e o controle dos meios de produção não implica necessariamente em uma revolução da mentalidade, que é o sistema mais difícil de apagar. Bogdanov carecia da capacidade política para afirmar suas intuições frente aos reveses da história. Mas diga o que disser Fukuyama, a história nunca termina. Ainda estamos procurando um caminho.

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