Hora de imaginar o pós-capitalismo

Por décadas, ideia de planificaro futuro coletivo foi associada à burocracia do “socialismo real”. Agora ressurge, livre deste peso e ligada a uma democracia de alta intensidade – pois a ideia do capitalismo infinito está se tornando insuportável

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Por Martín Arbolleda, no CTXT | Tradução: Vitor Costa

Na tentativa de arriscar hipóteses,
no desejo que desenha mapas cognitivos
está o princípio da sabedoria
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Fredric Jameson, La estética geopolitica

O ano de 2019 deu início a um ciclo de protestos que abalou o panorama social e político da América Latina. O panorama de extrema desigualdade, injustiça social, violência do Estado e crise social e ecológica rompeu o consenso neoliberal das últimas três décadas, levando a grandes manifestações nas ruas e praças da região. Apesar das particularidades de cada território, a demanda tem sido clara e unânime: redistribuição da riqueza e democratização do poder político e econômico.

Os incêndios que em 2019 devoraram centenas de quilômetros de florestas tropicais e plantações agroexportadoras na Amazônia de Evo Morales e de Jair Bolsonaro simbolizam uma verdade contundente: a ordem dominante é incapaz de oferecer uma alternativa concreta ao mundo que o capital construiu à sua imagem e semelhança.

Enquanto isso, a revolta social toma as ruas e a pandemia abre possibilidades nos meios populares, em hospitais, em residências. Nessa multiplicidade de espaços de encontro, cooperação e cuidado, diferentes mundos são imaginados e forjados, mundos cuja realização concreta está diretamente ameaçada pela inércia institucional da ordem liberal. O que fazer, então, quando as chamas do radicalismo popular e as urgências da crise arrefecem e se retoma a suposta “normalidade”? De que forma essa sucessão de momentos-chave poderia ir além de um registro agonístico e ampliar o espectro do que é possível, ou mesmo do que é imaginável?

O presente exige urgentemente formas de intervenção na realidade que possam superar o cerco do que o crítico cultural Mark Fisher chamou de realismo capitalista: a aceitação generalizada – tanto explícita quanto tácita – de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável e, portanto, é impossível imaginar qualquer alternativa coerente [possível]. A “economia emocional” que predomina nas últimas décadas, segundo Fisher, é a de uma “melancolia de esquerda”, vinda de intelectuais e organizações políticas que se sentem à vontade em sua marginalização e derrota e que, portanto, limitam-se a uma orientação meramente defensiva, rebelde ou denunciadora contra os excessos do sistema.

Não se pode esperar que uma situação pós-revolucionária ou catastrófica, por si só, possa levar automaticamente a um sistema socioeconômico diferente. No “Manifesto por uma política aceleracionista”, Alex Williams e Nick Srnicek afirmam que uma transição pós-capitalista requer um exercício de planificação consciente que, além de desenvolver um mapa cognitivo do sistema atual, pode também fazer uma imagem ou representação possível do futuro sistema econômico.

As práticas alternativas de consumo, por si só, são incapazes de promover uma transformação agrária e alimentar significativa, que destrua o poder de concentração das redes transnacionais de supermercados, laboratórios e grandes monoculturas industriais. Trocar o carro pela bicicleta pode ser um ato individual importante, mas insuficiente para empreender uma profunda transição energética que permita um verdadeiro desmantelamento das indústrias fósseis e o florescimento de energias limpas e comunitárias. As marchas e protestos contra a desigualdade, por mais massivas que sejam, não terão efeito real se não se transformarem em reformas fiscais que controlem as pulsões de sonegação do grande capital e recuperem a riqueza socialmente gerada para redistribuí-la de forma igualitária.

Constituir um poder democrático, que permita desmontar a economia de mercado capitalista e avançar em direção a formas superiores de organizar a vida em comum, não requer apenas enfrentar o establishment nas ruas e nas urnas. Nas últimas décadas, entretanto, vimos como a questão sobre a forma de um Estado que pode possibilitar a transição para uma sociedade alternativa foi substituída por um novo consenso que rejeita as instituições em bloco e entende os movimentos sociais, por si próprios, como os únicos sujeitos da mudança. A ordem neoliberal e seu exército de tecnocratas e economistas, enquanto isso, aferram-se cada vez mais nas abstrações técnicas e insondáveis ​​da regulação, sequestrando o aparato estatal para favorecer pequenas elites. A planificação econômica está de volta e opera em uma escala sem precedentes.

Há muitos anos, o consenso geral na teoria econômica e nos espaços de tomada de decisão consistia na ideia de que o mercado constituiria o instrumento mais sofisticado e completo de coleta de informações dispersas na economia; uma “superinteligência” difusa e sobre-humana que traduziria essas informações em “sinais” que, em seguida, alimentaria as estruturações institucionais e das políticas públicas. O mercado, portanto, era entendido como o meio mais eficaz para resolver qualquer problema coletivo de alocação e gestão de recursos. Esse senso comum (ou doxa) remonta ao conhecido “debate sobre o cálculo socialista” das décadas de 1920 e 1930, no qual Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises (filósofos e economistas da Escola Austríaca) questionavam a capacidade das agências nacionais de planificação do mundo socialista de mobilizar esse tipo de informação de sistemas complexos, como essas economias nacionais.

A tese da impossibilidade do cálculo socialista, sob esse entendimento anterior, consistia então na impossibilidade da viabilidade técnica (e também política e moral) de uma economia planificada conscientemente, principalmente a partir de dois caminhos teóricos. Primeiro, as correntes neoclássicas questionavam sua viabilidade prática por causa dos problemas de cálculo e de contabilidade que a gestão de uma economia extensa causaria. Em segundo lugar, as tradições austríacas duvidavam de sua viabilidade lógica, devido à incapacidade de uma economia dessa natureza coletar as informações necessárias para um cálculo racional do processo geral de reprodução socioeconômica.

A figura do indivíduo racional e maximizador de lucros – célula elementar deste difuso sujeito coletivo denominado “mercado” – tem sido desde então tão hegemônica como símbolo de anticoletivismo que, como Jodi Dean destaca, extrapolou para o imaginário de uma esquerda que considera as práticas individuais e micropolíticas como um foco de ação mais importante do que os movimentos organizados de massa e de grande escala (como sindicatos, partidos políticos, quadros técnicos e, claro, órgãos de planificação).

A sucessão de crises globais que começou com o estouro da bolha das hipotecas impagáveis nos Estados Unidos em 2008, e que atingiu seu pico na pandemia global de coronavírus em 2020, colocou em xeque esse consenso. Em primeiro lugar, mostrou que a “cataláxia” [Do grego: intercâmbio, etc] (termo que Hayek usou para descrever a natureza supostamente auto-organizadora do mercado) da economia neoliberal é na verdade uma prática de governo: sua existência é inconcebível sem uma vasta diversidade de mecanismos de intervencionismo político e coordenação entre empresas.

A ascensão de megacorporações como Amazon, Facebook e Walmart também foi possível graças a ambiciosos esquemas de planejamento estratégico dentro das próprias empresas. Fazendo referência à Gosplan (a agência de planificação central da União Soviética sob o stalinismo), alguns analistas sugerem que as práticas de coordenação de tais atores monopolistas deram origem a uma espécie de “Gosplan 2.0” ou “Google Gosplan”.

Se essa planificação do poder oligárquico nos conduziu a uma era de extinções em massa e de extrema desigualdade, por que não disputar mais uma vez a elaboração e a execução dos planos, ou mesmo o próprio significado da planificação?

Planificar para criar futuro

Um dos elementos principais da planificação é justamente o fato de ela não se voltar apenas para o futuro, mas também porque desenvolve os instrumentos técnicos do aparato estatal — leis, estatutos, planos, dispositivos regulatórios, censos, etc. – para realizar de forma concreta este futuro. É justamente pelo seu caráter prospectivo que a planificação tem sido entendida como um modo de alocação de recursos que opera ex ante, em oposição à alocação de recursos por meio do mercado, que opera ex post.

Outro elemento característico da planificação é que ela não se limita a atuar sobre setores específicos] da economia. Ao invés disso, direciona o processo geral de reprodução socioeconômica a partir de trajetórias de desenvolvimento estabelecidas democraticamente. A partir dessa concepção, a planificação democrática seria então o conjunto de instrumentos que se ativam para dar forma (potestas) às visões de sociedade que emergem do povo organizado (potentia).

Pode parecer estranho e até anacrônico querer recuperar, num tom relativamente apologético, um conceito com um passado tão carregado e turbulento quanto a planificação. Sem dúvida, foi a visão megalomaníaca da planificação, bem como suas deformações burocráticas e autoritárias, que marcaram seu declínio após o fim da Guerra Fria. Na década de 1990, a ideia de planificação econômica parecia arrogante, e também ineficiente e politicamente perigosa. Em sua substituição, a governançasurgiu como uma alternativa mais sensata, imparcial e aparentemente menos ideológica ao gerenciamento de recursos escassos numa sociedade.

Após o declínio da planificação econômica modernista, a governança e o planejamento urbano inauguraram um paradigma de política econômica que está desvinculado dos grandes desenhos utópicos e normativos. Sua principal função passa a ser garantir a eficiência, criar um ambiente atraente para o investimento privado e incutir atitudes e disposições empresariais na população. A competitividade territorial passa a ser o novo norte da gestão pública, e os diferentes espaços regulatórios (das economias nacionais aos espaços sub-metropolitanos) passam a competir entre si para atrair fluxos de investimento estrangeiro direto, bem como capital humano altamente qualificado. A partir deste momento, as regiões e territórios começaram a especializar-se na atração de vários tipos de investimentos – mineiros, turísticos, agroindustriais, energéticos e financeiros, entre outros. Além disso, os protocolos de intervenção de governança são geralmente acompanhados por uma retórica e alguns exercícios apenas formais de “participação” e “inclusão” como dispositivos que permitem que eles tenham legitimidade aos olhos dos cidadãos. Esse tipo de exercício participativo, entretanto, tem sido criticado porque, na prática, tende a cooptar a organização coletiva e desativar demandas redistributivas reais.

Apesar das críticas, a governança — com seu evangelho de eficiência e seus mecanismos de inclusão falsa – é apresentada hoje como a única forma viável de gestão. Então, há algo na figura da planificação que é subversivo justamente porque impreme uma historicidade densa a um momento em que os excessos do pós-modernismo e da ideologia neoliberal fecham a possibilidade de pensar historicamente. Como sugere Fredric Jameson em “Arqueologias do futuro”, o conhecimento histórico é um dos mecanismos que nos permitem romper o cerco da experiência que, em circunstâncias normais, nos impede de apreender a alteridade radical; ou seja, o fato de que as coisas não só podem ser radicalmente outras, mas de fato o foram em algum momento, e que, portanto, a ruptura é uma possibilidade concreta de vida social.

A planificação, então, vai além da ideia do presente como tempo vazio ou simplesmente como contínuo e exige uma capacidade que hoje está adormecida: a de imaginar e produzir um futuro que não seja mero pastiche da sociedade já existente. Em outras palavras, a planificação não apenas molda o futuro como ruptura. Por sua natureza eminentemente prefigurativa, ela evoca mundos alternativos e é, portanto, uma forma mediada ou um modo de existência do futuro.

Como fica claro na crítica materialista da economia política desenvolvida por Marx, a mercadoria é uma forma mediada ou indireta de trabalho humano, assim como o dinheiro é uma forma mediada de mercados e da interdependência econômica. Essas formas cristalizam – ainda que de forma parcial, instável e indireta – os atributos das relações sociais que as originam. Da mesma forma, os instrumentos técnicos da planificação podem ser entendidos como expressão mediada e reificada das visões de futuro que emergem do poder popular que a constitui.

Os estudos mais importantes, censos e leis que deram vida às reformas agrárias latino-americanas do século passado, por exemplo, cristalizaram em maior ou menor medida a sensibilidade dos múltiplos movimentos de massa que, ao gritarem “a terra para quem nela trabalha”, traçaram o caminho para uma sociedade livre do domínio dos latifundiários. Nesse sentido, as fórmulas e protocolos de intervenção que podem surgir no quadro de novas lutas por justiça territorial, racial, de gênero, social e ecológica também prefigurariam mundos para além de outras formas de dominação.

Dessa forma, o objetivo deste ensaio é identificar e resgatar o que existe de emancipatório na planificação tal como ela existiu. Isso inclui não apenas a planificação existente no passado histórico, mas também novas formas de planificação insurgente que surgiram em cidades e territórios para enfrentar os efeitos desintegradores do capitalismo tardio em sua configuração financeirizada, microeletrônica e rentista.

Parte da inspiração para este livro veio da cidade de Santiago do Chile que, durante a década de 1960, foi um dos principais epicentros globais do pensamento crítico sobre planificação. O Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO), o Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social (ILPES), o Centro de Estudos da Realidade Nacional (CEREN) e a Comissão Econômica da América Latina e do Caribe (CEPAL), foram alguns dos nós de uma vibrante rede epistêmica transnacional que entrelaçava espaços universitários, militância política e de tomada de decisões.

Posteriormente, no contexto do processo revolucionário liderado pelo governo de Unidade Popular após a vitória eleitoral de Salvador Allende em 1970, Santiago foi palco de uma das reformas agrárias mais massivas e transformadoras levadas a cabo por um regime democrático. Naquele período, a cidade também foi cenário para o Projeto Synco, talvez o esforço mais futurista e ambicioso a empregar tecnologias cibernéticas para criar um sistema de planejamento econômico descentralizado/a em tempo real.

O sonho de construir uma economia consciente e coordenada coletivamente com base nos princípios da democracia econômica, da libertação nacional e do autogoverno dos trabalhadores foi, como é sabido, extinto por uma sangrenta ditadura militar. Sua presença histórica, no entanto, ainda persiste na cultura política das organizações populares que hoje enfrentam o neoliberalismo.

Retomar a ambição futurista

Uma planificação democrática que efetivamente traduza e amplie a linguagem do poder constituinte requer um novo imaginário escalar e temporal cujo horizonte de transformação é muito mais amplo do que os territórios afetados por problemas específicos, ou as perspectivas de curto prazo. Nas visões que inspiraram o desenho das principais reformas transformadoras, Estados de bem-estar, projetos de habitação social e programas de reconversão produtiva no século 20, existem mapas cognitivos de mundos onde se buscou não apenas expandir a igualdade socioeconômica, mas também expandir as fronteiras do bem-estar material e até mesmo do desfrute e da experiência estética para milhões de pessoas.

É por isso que este texto também busca resgatar algumas das questões, abordagens metodológicas e aspirações do planejamento econômico no modernismo. O retorno crítico a essas imagens históricas não implica uma atitude nostálgica ou complacente para com os mundos perdidos do socialismo, da socialdemocracia ou do desenvolvimentismo. Articular o passado historicamente, como Walter Benjamin argumenta em suas Teses sobre a Filosofia da História, “não significa conhecê-lo como realmente foi. Significa apreender uma memória como um relampejo, num instante de perigo”. A história da planificação econômica anima e atualiza trajetórias de democratização que desapareceram antes do “eterno presente” do realismo capitalista e que poderiam traçar o caminho para um planejamento diferente no futuro.

Ao refletir sobre essas trajetórias de democratização também buscamos contestar o consenso pós-moderno que despreza os grandes projetos de transformação social do passado. Hoje, novos movimentos populares já começam a propor visões de desenho social e planejamento enraizadas em movimentos de base, mas com abrangência de atuação em escala nacional e, em alguns casos, até transnacional.

O Green New Deal ou Virada Sociambiental, proposto por um emergente movimento pelo Socialismo Democrático nos Estados Unidos, expressa um ambicioso programa de descarbonização das infraestruturas tecnológicas que constituem a economia e cujo desenvolvimento estimulará a criação em massa de empregos dignos. Em outras palavras, o Green New Deal parte do pressuposto de que uma transição energética em larga escala é inconcebível sem garantir o bem-estar material das classes trabalhadoras – e particularmente das comunidades mais afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas e econômicas. Embora o Green New Deal tenha origem no mundo anglo-europeu, atualmente ele está sendo apropriado por partidos e movimentos sociais em vários países do mundo para combater simultaneamente os dois grandes desafios deste século: o aquecimento global e a desigualdade extrema.

Na América Latina, a discussão sobre uma possível Virada Socioambiental ainda é incipiente, mas já começa a traçar alguns caminhos possíveis para a descarbonização e democratização das economias da região. Por outro lado, uma rede de prefeituras rebeldes está transformando as administrações locais em laboratórios de experimentação de formas não capitalistas de mercado e relações sociais. No Uruguai, o caso do Sistema Nacional e Integrado de Atenção (SNIC) também ilustra uma visão de planificação cujo âmbito de atuação se estende em escala nacional. Criado em 2015 após um longo processo de mobilização social feminista, o SNIC inaugurou uma institucionalidade pública que visa dar visibilidade ao trabalho assistencial, que cuida de pessoas em situação de dependência e promove maior justiça de gênero no trabalho reprodutivo.

Ainda que esses casos representem muita inovação, eles são exceções a uma tendência geral de negligência em relação aos projetos institucionais de larga escala e de longo prazo. Principalmente porque se pressupõe que eles implicariam uma lógica estatista e homogeneizante. Por isso, voltar ao velho problema da planificação implica repensar as grandes questões – muitas delas ainda não resolvidas – que animaram os diversos programas e protocolos de intervenção do século passado.

Em relação às suas manifestações históricas concretas, podemos identificar três tipos ideais de planificação: primeiro, um planejamento do passado histórico sob o modernismo, que apesar de ser baseado em ideais e programas redistributivos de diferentes raízes, foi intrinsecamente burocratizado, masculinizado e centrado no ideal de crescimento econômico pensado como um fim em si mesmo. A persistência de alguns elementos desse paradigma de gestão pode ser evidenciada no recente surgimento de plataformas neodesenvolvimentistas ou neokeynesianas, como foi o caso dos governos progressistas da chamada “maré rosa” na América Latina.

Em segundo lugar, uma planificação do presente sob o capitalismo tardio, cujas tendências polarizadoras permitiram novas e mais avançadas configurações de poder monopolista, segregação social e colapso ecológico. Esse tipo de planejamento estratégico é o que predomina atualmente, e seus modos de operação tornaram-se muito mais evidentes após a recente mutação do neoliberalismo para uma configuração mais ostensivamente autoritária e intervencionista.

Em terceiro lugar, uma planificação democrática de um futuro possível. Esta última forma de planejamento pode ser uma determinação necessária da ativação política das massas populares e de sua subsequente inserção no processo decisório. Seria diverso não apenas em termos de sua capacidade de combinar formas institucionais estatais e extra-estatais (isto é, corpos técnicos e grupos de democracia de base), mas também na sua possibilidade de concertar públicos heterogêneos em termos de gênero, raça e composição de classe. Da mesma forma, essa planificação não emanaria de cima ou de qualquer tipo de “centro”, mas seria o produto da interação coesa de diferentes níveis de tomada de decisão.

Por fim, esse terceiro exemplo de planificação poderia superar a obsessão doentia pelo ideal do crescimento econômico infinito, tão típico não apenas das abordagens (neo) keynesiana e (neo) desenvolvimentista, mas também do socialismo produtivista em suas variações. Pelo contrário, este modo de coordenação consciente da economia seria orientado para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas e do valor de uso como princípio regulador das relações sociais: democracia econômica, tempo livre, cuidado, solidariedade interespécie, fruição estética e bem-estar físico e mental, seriam seus objetivos originais.

Seria um modo de gestão orientado para a realização concreta da antropologia filosófica presente nos Cadernos de Paris, nos quais um jovem Marx propõe que a construção de uma sociedade pós-capitalista é apenas a emancipação dos sentidos do domínio da necessidade abstrata. Nesta sociedade, as pessoas desenvolveriam plenamente uma vasta gama de potencialidades e atributos de seu ser genérico [Gattungswesen], elevando-se acima de um sistema de relações sociais onde sua própria individualidade sensível é reduzida a suas funções animais: para os famintos, o alimento não existe em sua forma social, convivial e humanizada, mas em sua forma abstrata como alimento. Para alguém encurralado por dívidas e privações materiais, não há diferença entre o som de uma melodia e o barulho de um objeto caindo.

A emancipação dos sentidos, entretanto, estaria longe de ser um esforço grosseiramente antropocêntrico. Conforme sugerido por recentes abordagens teóricas de planificação ecossocialista, o projeto político de emancipação humana sensível contribuiria de forma decisiva para o enfrentamento da crise climática. A multiplicação de novas formas de desenvolvimento pessoal e consumo coletivo – manifestadas nas atividades de lazer, esportivas, artísticas, eróticas e intelectuais – teria uma “pegada energética” menor do que aquelas que dependem do consumismo individualista e irracional do capitalismo. O mesmo aconteceria com a expansão do setor de empregos relacionados ao processo de reprodução social, como cuidados, educação, saúde, transporte público, habitação, etc.

Uma transição para estilos de vida de baixo carbono, nesse sentido, reduziria a pressão sobre as espécies e ecossistemas planetários, permitindo um programa de estabilização do clima eficaz e democraticamente coordenado. Compreendida nesses termos, a planificação não se limita ao exercício econômico de organizar as relações de produção. Por ser uma prática com forte sensibilidade utópica, compreende também a aspiração estética de criar e mobilizar novas formas de desejo e fruição.

É talvez a dimensão propriamente libidinal da planificação que explica a fixação retromaníaca na cultura material do modernismo, em muitos casos deliberadamente voltada para amplificar as esferas sensíveis e lúdicas do corpo desejante. O fascínio atávico que hoje despertam os artefatos arquitetônicos de correntes como o brutalismo, a Bauhaus, o construtivismo ou o art déco – conjuntos habitacionais, mas também parques, monumentos, estádios e locais de recreação – é um sintoma de inconformismo generalizado tanto para o dogma da austeridade neoliberal e em direção ao ascetismo lúgubre ou pastoril da esquerda mais tradicional.

Depois de três décadas de neoliberalismo e de uma pandemia global ter devastado a estabilidade material e psicoafetiva do corpo social, reinstalar uma política de prosperidade pode ser uma das tarefas mais urgentes. Ao contrário do que acontecia com os antigos debates sobre planejamento, no entanto, hoje não se trata apenas de uma disputa pela capacidade de administrar o bem-estar social e a felicidade em um cenário de colapso econômico. A natureza da conjuntura também torna inevitável a necessidade de redefinir e expandir radicalmente o que se entende por abundância.

Narrativas tradicionais de bem-estar, baseadas em noções ocidentalizadas de riqueza material, trabalho assalariado, família heteronormativa e Produto Interno Bruto (como a única medida do progresso humano), foram inquestionáveis ​​por décadas. Hoje, no entanto, elas enfrentam uma crise profunda. Embora a globalização neoliberal tenha permitido um aumento do influxo material de vários setores da sociedade, garantindo-lhes acesso a uma maior quantidade e diversidade de bens de consumo, isso tem sido feito às custas de níveis crescentes de estresse, endividamento, instabilidade econômica, sobrecarga de trabalho e destruição ecológica.

Destacando o efeito deslibidinizane desse tipo de consumismo financeirizado e individualizado, Kate Soper recentemente levantou a necessidade de um hedonismo alternativo como o imaginário político de uma futura sociedade pós-consumo. Esse hedonismo alternativo, de acordo com Soper, revela a perda de prazer que acompanha a aquisição irracional de mais e mais bens de consumo, e prevê uma estrutura libidinal complexa e vibrante que poderia ser ativada por culturas de trabalho e estilos de vida menos apressados, cronocêntricos e consumistas. O retorno da velha questão da planificação, como será visto ao longo deste livro, aparece então como um importante campo de batalha no qual vamos os termos concretos de uma futura política de prosperidade.

A planificação foi uma das ideias motrizes mais importantes do século passado. Seu desaparecimento coincidiu com o declínio daquela sensibilidade que Mark Fisher chamou de “prometeísmo popular” e que consiste na aspiração que a classe trabalhadora outrora teve de criar um mundo que ultrapassasse – em termos experienciais, estéticos e políticos – os miseráveis ​​limites das relações sociais burguesas. O conhecimento histórico das contradições e potencialidades da planificação econômica pode servir à imaginação tática e estratégica de novos movimentos de massa (feministas, antirracistas e pela justiça climática) que hoje buscam resgatar essa antiga ambição futurista.

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