Amor, desconcerto anticapitalista

Num mundo que propõe conformismo e alienação como norma, ele sugere olhar o outro, ir além da sobrevivência e do interesse egoico, pensar a transformação da sociedade e de si mesmo. Nesse ponto, encontra-se com a ideia de revolução

Imagem: Hanna Barczyk
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Por Richard Gilman-Opalsky, na Roar Magazine | Tradução: Antonio Martins

Em O Comunismo do Amor: Um inquérito sobre a pobreza do valor de troca (AK Press, 2020), defino o amor como uma atividade, como algo que fazemos, não como algo que recebemos ou damos como uma mercadoria. Praticamos o amor como uma forma ativa de relações humanas não governadas pelo dinheiro. O amor não é uma relação de troca capitalista. É nossa participação ativa nos diversos devires de outras pessoas. É como o que fazemos para que nossos filhos, amigos ou parceiros, tornem-se o que são capazes e gostariam de ser – mas ainda não são.

Defino o comunismo não como uma forma de governo, mas – seguindo a definição original de Marx — como uma oposição ativa ao mundo existente. O comunismo é uma forma de vida, não uma forma de governo. É um esforço para derrubar a regra do valor de troca e para insistir em outros valores. Entendo o comunismo como um movimento em direção a novas relações humanas, não como algo realizado através do Estado.

O amor também deve ser considerado uma questão de movimentos. Como o amor move as pessoas, e a quê? A seguir, investigo o amor tem a ver com lutas e movimentos revolucionários.

Movimentos do Amor

As relações amorosas, onde quer que se deem, são parte da luta contra a alienação. É por isso que, embora as experiências de amor sejam muitas vezes imprevisíveis e desconcertantes, os seres humanos aspiram a elas. Um novo amor – seja de novos amigos, de filhos ou de um amante, pode desenraizar nosso ser no mundo, nosso senso de identidade, e quebrar a ordem estabelecida da vida. É uma irrupção e uma interrupção, sempre bem-vinda.

A noção definidora do amor, segundo Alain Badiou em Elogio do Amor, é a ideia de um mundo visto da perspectiva de dois (não de um): o amor é uma forma de ver as coisas de um ponto de vista ampliado, que se expande além do seu próprio. É uma experiência na qual se pode “construir um mundo a partir de um ponto de vista decente que não seja o de [seu] mero impulso para sobreviver ou reafirmar [sua] própria identidade”. Badiou entende o amor como um movimento de indivíduos afastados do interesse próprio; um movimento que é necessário para ver o que é possível no mundo, como um mundo diferente pode ser.

Poderíamos esperar que Badiou conectasse o amor à política, mas ele rejeita qualquer política de amor:

Não creio que se possa misturar amor e política. Na minha opinião, a “política do amor” é uma expressão sem sentido. Acho que quando se começa a dizer “amem-se uns aos outros”, isso pode levar a um tipo de ética, mas não a qualquer tipo de política. Principalmente porque há pessoas na política que não se ama… Um verdadeiro inimigo não é alguém que você se resigna a ver tomar o poder periodicamente, porque muitas pessoas votaram nele. É uma pessoa que você jamais gostaria de ver como chefe de Estado porque teria preferido o seu adversário. E você vai esperar sua vez, por cinco ou dez anos ou mais. Um inimigo é algo mais: um indivíduo que você não tolerará tomar decisões sobre qualquer coisa que tenha impacto sobre si mesmo.

É verdade que Martin Luther King, Jr. e outros tentaram construir uma política de amor. Exortaram as pessoas a amarem seus inimigos, como no famoso texto “Loving Your Enemies” de King. Se discutir uma política de amor significa que temos que invocar as banalidades de um discurso sentimental e religioso, então teríamos que concordar com Badiou. Entretanto, o amor não exige que amemos nossos inimigos. É possível expressar um ódio a um inimigo enraizado no amor. O ódio e o amor não são opostos. Os verdadeiros opostos do amor são o estreito interesse próprio e a indiferença passiva.

A posição de Badiou é o resultado do erro comum de ver o ódio como algo estranho ao amor. Sua oposição a qualquer política de amor é mais clara quando ele diz: “A questão do inimigo é completamente estranha à questão do amor”. No amor, você pode encontrar obstáculos… mas, na verdade, não há inimigos”. Badiou afirma que a política requer inimigos e que, como não há inimigos no amor, a política e o amor não podem ser combinados. No entanto, uma pessoa cuja amada é morta em Auschwitz pode sentir um ódio mobilizado pelo amor. Poderíamos até dizer em certos casos que, se eu não amo você, então não posso odiar seu inimigo.

Por fim, Badiou insiste no amor como um movimento de um a dois, mas vê pouco sentido em falar de amor a nível social ou político. Mas não devemos deixar o amor amarrado aos assuntos privados dos casais românticos e de suas famílias. O amor pode vir ao mundo conosco participar, e de várias maneiras, de nossos movimentos.

Michael Hardt e Antonio Negri entenderam este ponto melhor do que Badiou. Na Commonwealth eles dizem: “O amor é um meio de escapar da solidão do individualismo, mas não, como nos diz a ideologia contemporânea, apenas para ficar novamente isolado na vida privada do casal ou da família”. Eles afirmam que o amor está no centro de qualquer teoria radical e revolucionária, mesmo quando os teóricos têm medo de assumi-lo.

Em Assembly, Hardt e Negri pensam através dos significados e insights do Black Lives Matter, do Occupy Wall Street, das revoltas no norte da África e no Oriente Médio, e das insurreições na Argentina e na Espanha. Movimentos de amor expressam o desinteresse daqueles que são alvo doo racismo, do sexismo ou de outras tendências capitalistas de exclusão e exploração. Entretanto, embora o amor possa motivar parte do que acontece em uma revolta, ele não é necessariamente o poder definidor de toda revolta. O amor move algumas coisas, mas não tudo. Ele não é onipotente nem infalível.

O amor insurgente

Raya Dunayevskaya foi uma grande revolucionária na busca da universalidade. O mais notável em seus escritos é sua atenção consistente às lutas dos oprimidos nos Estados Unidos e ao redor do mundo. Ela teoriza de baixo para cima e afirma que os insights mais importantes vêm de movimentos revolucionários. Para ela, devemos participar e estudar tais lutas, e aprender com elas.

Dunayevskaya vê os movimentos revolucionários de mulheres, pessoas negras, minorias sexuais, trabalhadores empobrecidos e desempregados como momentos cruciais em uma luta total contra o mundo como o conhecemos. As distintas lutas dos oprimidos são entendidas como parte de uma totalidade guiada por uma sensibilidade humanista universal. Primeiro deve haver uma negação total, uma abolição do que existe, seguida por uma segunda negação, o que indica um momento de criação positiva de algo novo. Como Dunayevskaya coloca na Libertação da Mulher e na Dialética da Revolução: “A derrubada, a primeira negação, é dizer ‘não’ ao que existe. Mas a segunda negação, a criação do novo, é mais difícil, porque implica criar relações humanas inteiramente novas”.

Dunayevskaya entendeu que as lutas revolucionárias das mulheres nunca reduzem o amor ao sexo. As lutas das mulheres visam transformar as relações humanas, e não apenas as relações sexuais. As mulheres “recusaram-se categoricamente a permanecer como um apêndice dos homens”. Elas desejavam ter não apenas relações sexuais, mas relações humanas. Saíram em busca de uma reorganização total da sociedade. Quando Dunayevskaya analisa a revolta das mulheres em todo o mundo – por exemplo, nas greves em Portugal e na África do Sul, no movimento contra a guerra do Vietnã –, encontra aspirações diferentes, porém interligadas, incluindo oposição à guerra, exigências de poder dos trabalhadores, de novas relações no lar, igualdade e oposição ao patriarcado. De fato, as mulheres queriam “nada menos do que a totalidade da pessoa”.

A revolução envolve transformações de todos os seres humanos e de toda a sociedade. Até certo ponto, então, a aspiração de amar sempre participa – e molda – as aspirações de qualquer luta esperançosa. Mas devemos distinguir entre a revolta e a revolução. A revolta raramente é revolucionária. A revolta acontece com muito mais frequência e muitas vezes aspira à revolução. Muitas vezes é um esforço verdadeiro em direção revolucionária. No entanto, a revolta não é revolução, na medida em que não transforma estruturalmente o mundo como o conhecemos.

As revoltas fazem outras coisas. Elas expressam desafeições, novas críticas e imaginam possibilidades de acordo com os desejos reais das pessoas. Muitas vezes, uma revolta é uma expressão de desafeição revolucionária que assume uma forma não revolucionária. Estou inclinado a pensar no amor como mais próximo da revolta do que da revolução. Mesmo quando o amor não transforma estruturalmente a vida, ele aspira a uma forma de relações sociais que não são (e não podem ser) governadas pela ditadura do capital. O amor só existe naquelas relações humanas fora das relações de troca capitalista, nas relações que mais valorizamos.

Do pequeno grupo de pensadores que nadam em águas similares, aquele que mais se aproxima de minha posição aqui é George Katsiaficas em suas elaborações sobre o conceito de eros de Herbert Marcuse. Katsiaficas entende os motins, revoltas e rebeliões como a ativação de certos sentimentos de desafeto e esperança, como a ativação do amor e da solidariedade. Em Combustão Espontânea: O Efeito Eros e a Revolução Global, Katsiaficas escreve: “Precisamos cultivar nossas capacidades de amar e agir de maneira eficiente… O efeito eros tem a ver com ativar continuamente o desejo interior de liberdade, que é a maior força de libertação em nosso planeta”. O “efeito eros” refere-se à propagação geográfica aparentemente contagiosa do sentimento humano que se pode testemunhar nas expressões apaixonadas de revoltas globais de todos os tipos.

Entretanto, o efeito erosivo não pode ser continuamente ativado, nem mesmo na pequena comuna formada por dois amantes. Não podemos manter nosso afeto em movimentos energéticos indefinidamente. A energia humana pode ser esgotada e recarregada por diferentes causas, mas não pode ser “mantida” por toda a vida. Se entendermos o amor como nossa participação ativa no devir de uma pessoa, e politicamente, como nossa participação ativa para que uma sociedade torne-se o que ainda não é (mas poderia ser e deveria ser), então não podemos honestamente afirmar que estamos sempre tão ativamente engajados.

O amor aparece em última análise como um poder que gera união e coragem. A coragem permite agir em nome do que merecemos, e se expressa em ações coletivas, incluindo mas não se limitando a revoltas e rebeliões. O amor assume compromissos e muitas vezes entra em cena como a substância que nos dá confiança para assumir compromissos que não assumiríamos sem ele. A chave é entender que, embora tudo isso seja verdade na relação amorosa de dois, ou em uma família, aplica-se também a formações sociais maiores. Todo mundo é alguém que aspira ao amor, que quer vivê-lo, vivê-lo, conhecê-lo, ser transformado por ele.

Entretanto, onde mais encontramos a aspiração de experimentar um mundo diferente? Examine o que as pessoas ousam esperar quando se reúnem com indignação em momentos insurgentes de ação coletiva. Quando você se apaixona, encontrou alguém com quem fazer causa comum, criar horizonte. Isso se dá também nas ruas, em ocupações, greves e rebeliões.

Convencidos de que o amor é um poder imaterial, inefável e invisível, comunistas, anarquistas e tantos outros puderam ignorá-lo como um sentimento vaporoso impróprio para a militância. Mas o que é mais material do que as experiências reais vividas que fazem nossas vidas valerem a pena? É hora de aqueles que aspiram ao amor – tanta gente, em toda parte – enxergarem o comunismo de suas aspirações.

Porque somente assim podemos compreender a relação de amor articulada com todas as outras relações que regem nossas vidas. Somente assim podemos finalmente ver e dizer que o amor deve, para ser digno de seu nome, ser um contrapoder para o capital

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