Viva o Gordo – e seu pluralismo!

Sagaz sem perder a irreverência, Jô Soares marcou gerações. Deu espaço a Brizola, Prestes, Lula e outros deserdados pelos oligopólios midiáticos. Mostrou a potência que poderia emergir de um ecossistema televisivo plural e democrático

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Com o falecimento de Jô Soares, aos 84 anos de idade, o Brasil enfrenta nesses dias uma inestimável perda cultural. Jô foi um intelectual grandioso e multifacetado que marcou a minha geração. Homem dotado de vocações ímpares, teve larga experiência no campo das artes: cinema, teatro, televisão, literatura, artes plásticas, música.

Expressando o seu talento como humorista, definitivamente eram muito engraçados alguns dos seus personagens célebres interpretados no programa televisivo “Viva o Gordo”, tais como o Zé da Galera, o Décio, o Capitão Gay e o Rochinha. Na minha infância, Jô era um ícone do humor brasileiro, ainda que então eu particularmente guardasse uma preferência pelo Renato Aragão, o Mussum e o Ronald Golias. Talvez mais palatáveis para o meu universo infantil.

Em outro exercício de memória, se pode dizer que, nos primeiros anos da década de 1990, nos idos da adolescência desse escrevinhador, o programa de entrevistas conduzido pelo Jô Soares no SBT constituiu-se, simplesmente, em assunto obrigatório no meio da garotada, sobretudo no colégio e no cursinho pré-vestibular. As entrevistas feitas pelo “Gordo”, as brincadeiras com seus músicos, as suas opiniões, ponderações e dicas culturais eram temas inescapáveis das rodas de conversa juvenil.

O programa “Jô Soares onze e meia” era absolutamente plural sob o ponto de vista político. Guiado pela enorme cultura, graça e inteligência do genial entrevistador, a despeito de ele às vezes se estender em demasia nas conversas com seus interlocutores. Sem exagero, tratava-se de uma fonte de estímulo para o telespectador conhecer mais sobre a cultura e a política. Não tenho dúvidas de que Jô possuía clareza do especial papel educativo do seu programa.

Fazia entrevistas bastante pitorescas, como as realizadas com Agildo Ribeiro e Sérgio Malandro, que eram motivos para se dar sorrisos largos e escangalhados. E tantas outras entrevistas de rico interesse político e intelectual, com uma grande diversidade de personagens oriundos das letras, da política, da cultura.

O seu programa, lá no distante início dos anos 1990, era, diga-se, a bem da verdade, um significativo incentivo para os estudos. Instigava a curiosidade intelectual de muitos da minha geração a aprender, a buscar mais informações, a estudar. Nesse aspecto, tanto à época, quanto mais ainda hoje, consistiu em um caso incrível e raríssimo na televisão brasileira.

Além disso, sob o ângulo mais propriamente político, o seu programa manifestava um profundo apreço ao princípio do pluralismo da opinião e da informação. Recebia líderes políticos e partidários afiliados a diferentes e antagônicas correntes de pensamento. Talvez um caso único na televisão brasileira do período. Seguramente um caso inexistente em nossos dias.

Novamente a título de reminiscência, em uma época em que Leonel Brizola havia sido lançado ao ápice da demonização pela Globo (já dotada de tons criminalizantes), satanização operacionalizada também com um misto de boicote e silêncio sobre o seu nome em distintos canais de TV, Jô entrevistou o velho caudilho com um respeito imenso.

Nos idos de 1993 e 1994, Jô concedeu um raro espaço para o então governador do Rio expor com tempo significativo algumas das suas ideias, o que proporcionava um encanto pela visão completamente alternativa em face do pensamento dominante. De certa maneira, uma entrevista do “Gordo” com Brizola foi decisiva para, naquela quadra da minha vida, nutrir e iluminar boa parte da perspectiva política que abraço até os dias que correm.

Assim, me encantava a oportunidade que Jô abria ao processo de formação da opinião pública para a participação de personagens como Brizola, Luiz Carlos Prestes, Lula, Darcy Ribeiro, Miguel Arraes, demais políticos e atores dos movimentos sociais e sindicais desprezados pelo latifúndio semimonopolista da mídia. A visão pluralista do grande entrevistador atribuía credibilidade aos deserdados dos conglomerados de comunicação para se expressar e veicular as suas visões de mundo.

Com o tempo, o “Gordo” retornou para a Globo e o seu programa tendeu a perder parte da graça e da espontaneidade que possuía no SBT. Porém, o seu legado pluralístico deveria servir como um precioso patrimônio para pensarmos nas potencialidades de um ecossistema televisivo diverso e plural: uma reforma democratizante dos meios de comunicação.

A imprescindível defesa e reverberação de temas, demandas coletivas, categorias de interpretação e valores alternativos para a vida em sociedade, em contraposição ao que preconiza o mainstream. Múltiplas e diversificadas vozes com poder de visibilidade e de se tornarem audíveis ao público, no bom combate contra a manufatura do pensamento único, neoliberal e capitalista. Viva o “Gordo”, salve o Jô!

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