Crônica: Influências

“Já não era sustentável limitar a captura ao outro. O controle precisava ser (o) eu. A mão externa precisava ser a minha. Fui otimizada em combo dois em um. Aprendi a andar acoplada no objeto inteligente que programou em mim o prazer compulsivo da auto-captura. A selfie”

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Olá, eu sou uma criança, nascida em 2010, ano de lançamento da rede social onde me socializei. Nasci ali, da barriga da mãe diretamente compartilhada no feed dos seguidores que já me aguardavam, ansiosos e ávidos para consumir imagens. E eu, desde o primeiro respiro digital, sou eficiente e capaz de produzir atenção. Sempre foi assim. Nasci motivada pela produção de dados digitais, essa mercadoria valiosa que precisa ser acumulada. Cresci aliciada para performar uma felicidade rotineira, uma disponibilidade espontânea que garanta uma atenção produzida. Sou uma nativa e a intimidade com a rotina digital é minha natureza. Não há nada artificial em mim.

Mas a imagem do sorriso fotografada pela mão externa precisou ser otimizada. Já não era sustentável limitar a captura ao outro. O controle precisava ser (o) eu. A mão externa precisava ser a minha. Eu mesma fui otimizada em combo dois em um. Aprendi a andar acoplada no objeto inteligente que programou em mim o prazer compulsivo da auto-captura. A selfie. Imagem-maquínica de produtividade vigilante. Com ela, aprendi o cultivo da aparência nas redes como imagem de uma marca. Um brand. Minha imagem é agora tela capaz de incorporar mensagens patrocinadas. Mensagens acompanhadas de objetos, palpáveis, mercadorias que eu possa segurar, mover, re-encenar um estilo de vida que aparece como real, realidade que me move. Já tão normalizada é minha ficção que não sei ao certo se a movo ou se sou movida por ela. Talvez os dois. Provavelmente os dois. “O real multiplamente determinado”. O determinado multiplamente real.

Minhas imagens são matéria prima de uma engrenagem para qual sempre trabalhei sem ser paga. Mas não importa, porque a motivação que me nutre desde o espaço doméstico – historicamente forjado como território onde o trabalho reprodutivo também nunca foi pago – programa em mim uma subjetividade que celebra a gerência empresarial como afeto. A cada selfie lançada nas redes a simbiose entre memórias compartilhadas e o trânsito de mercadorias acontece como se fosse mágica. E é. Magia das metamorfoses do capital. Valor que atravessa matérias, objetos, corpos, subjetividades, relações. Magia que lança feitiços através da variedade de formas que o capital precisa inventar para circular.

Minha imagem é uma dessas formas, por onde o capital circula. Imagem que não é minha mas que preciso personalizar. Sua mera produção não basta, as imagens precisam circular, ou ainda, precisam fazer as mercadorias circularem até o fim de seu ciclo. Ciclo que precisa de excesso. Excesso escoado pelos cálculos algorítmicos e traduzido em dados. As imagens que produzo e narro com a nostalgia dissimulada de uma memória compartilhada são editadas em tempo real por um calculo que gerencia a circulação de mercadorias. E o que para mim é memória retorna como predição de um comportamento que me anima. Comportamento personalizado em formato de produto. Predição de futuro que se realiza.

(Esse texto é parte do roteiro para o curta INFLUÊNCIA que compõe a pesquisa de mestrado de Veridiana Zurita no Programa de Ciências Humanas e Sociais pela UFABC (2022-2023). A pesquisa em andamento discute uma subjetividade hegemônica sendo produzida através da prática dos influenciadores mirins digitais que integra as relações de trabalho na contemporaneidade).

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