Uma aquarela das águas transbordantes
De Mário de Andrade a Chico Buarque e Tião Carreiro; de Shakespeare ao Apocalipse. Muito foram os escritores que cantaram os mistérios dos rios, os acolhedores copos d’água gelada e a chuva que afaga a colheita e é elixir do amor
Publicado 17/04/2020 às 18:05 - Atualizado 17/04/2020 às 18:06
Por Gerôncio Albuquerque Rocha | Imagem: Claude Monet, Bathers at La Grenouillere (1869)
A água é o bem mais essencial da natureza; sem ela, não há vida. Além disso, a água – sob qualquer forma de ocorrência – é fator de equilíbrio dos ecossistemas. (Algumas pessoas dotadas de especial sensibilidade acham até mesmo que a água tem vida.)
Ao longo dos tempos, a água tem sido cantada e louvada na literatura, nas artes e na música, como fonte de inspiração. Aqui, de maneira aleatória e sem qualquer rigor de pesquisa, reunimos uma pequena mostra de pensamentos, imagens, alegorias e frases poéticas sobre a água.
São Francisco é talvez o primeiro amigo declarado da água. Em sua Oração está escrito:
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã água,
A qual é muito útil e humilde
E preciosa e casta.
Água é coisa delicada, não pode ser maltratada. É o que diz Guimarães Rosa em A estória de Lelio e Lina (O Urubuquaquá, no Pinhém).
A água…grita a qualquer pancada que lhe dão.
Antes de enveredar pela prosa, o grande escritor fez poesia, reunida no livro Magma. Imagens e paisagens “naturalistas” – a água, o rio, os ribeirinhos, os índios, as lendas –, lembranças de um tempo que não volta mais. O poema “Sono das águas” começa assim:
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água, nos grotões
fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira, há de ouvir a
cachoeira parar a queda e o choro, que a água
foi dormir…
O desenvolvimento econômico, quase sempre às custas do meio ambiente, concentra a urbanização e a industrialização em algumas regiões hidrográficas. Como consequência, os rios sofrem de poluição, ficam quase mortos, mas tornam a viver. Em geral, são os poetas os que primeiro captam a dimensão ecológica da tragédia.
Mário de Andrade, nos anos 1940, registra um flagrante do rio em A meditação sobre o Tietê:
Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro
de água Pesada e oleosa.
Na mesma época, João Cabral de Melo Neto descreve a saga do rio Capibaribe, que desanda pelos mangues da cidade de Recife, antes de chegar ao mar em O cão sem plumas:
Na paisagem do rio difícil é saber
onde começa o rio; onde a lama começa
no rio; onde a terra começa da lama;
onde o homem, onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem naquele homem.
Hoje em dia, nas grandes cidades, a chuva é um tormento; mas ainda há lugares em que ela é recebida como uma benção.
Euclides da Cunha, em Os Sertões, faz essa impressionante descrição da chuva:
Embruscado em minutos,
o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites,
sucessivos, sarjando a imprimadura negra
da tormenta. Reboam ruidosamente
as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossa
espaçadamente,
sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro
diluviano …
Outra imagem da chuva vem de quem menos se espera: Dalton Trevisan, o escritor tido por maldito, em 234 ministórias:
Agulhas brancas ligeirinhas
costuram o ar. Chove.
“Um dia cinzento, frio, com vento e uma chuvinha ocasional”,1 em plena ditadura getulista, dá medo mas pode ser matéria de poesia. É o que faz Carlos Drummond de Andrade em “O medo”:
Refugiamo-nos no amor,
Este célebre sentimento,
E o amor faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em S. Paulo.
Fazia frio em S. Paulo… Nevava.
O período chuvoso deixa um rescaldo que o compositor Tom Jobim – em “Águas de março” – transforma em esperança:
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
[…]
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.
Cecília Meireles, no vasto poema Romanceiro da Inconfidência, imagina um cenário do século XVIII no interior de Minas Gerais:
Largos rios de corpo sossegado
Dormiam sobre a tarde, imensamente
– e eram sonhos sem fim, de cada lado.
No Nordeste Seco, os sertanejos desenvolveram uma cultura secular de adivinhação de chuva e de previsão de seca. Os irmãos Felipe Guerra e Teófilo Guerra, em Secas contra a seca (1909), reproduzem algumas crendices:
• As “experiências” do povinho baseiam-se naquilo que ele facilmente enxerga.
• No fim do ano, as formigas da roça procuram situar-se nas baixas, no leito dos riachos ou dos rios? Não haja dúvidas: o ano será seco.
• Parece que as abelhas de ferrão têm desaparecido? Ninguém as vê? É seco o ano.
• Em novembro ou dezembro, mesmo em outubro, em pleno seca, os olhos d’água e as fontes perenes mostram sensível aumento de águas? Bom sinal.
• O juazeiro, a oiticica, a carnaubeira brotam cedo? Bom prenúncio.
• O peixe está ovado no fim do ano? Sinal favorável.
Graciliano Ramos não enfeita: água é para saciar a sede; em Vidas secas, expõe o final da caminhada do seu rude personagem:
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama.
Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas.
Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu.
A água é também um poderoso elixir no cotidiano das pessoas e nas relações amorosas, o que é fartamente ilustrado na música popular. Imagine Noel Rosa sentado à mesa do bar (“Conversa de botequim”):
Seu garçom faça o favor de me trazer
depressa uma boa média que não seja
requentada, um pão bem quente com
manteiga à beça um guardanapo e um copo
d’água bem gelada.
Três “caipiras” – Tião Carreiro, Lourival Santos e Piraci – imaginaram um “Rio de lágrimas” que se tornou famoso:
O rio de Piracicaba
Vai jogar água pra fora
Quando chegar a água
Dos olhos de alguém que chora.
Chico Buarque, em “Ludo real”, sublima a mulher:
Que nobreza você tem
Que salta de sonho em sonho
E não quebra a telha
Que passa através do amor
E não se atrapalha
Que cruza o rio
E não se molha.
Às vezes, um copo d’água pode saciar uma outra sede, como nos versos de Anastácia e Dominguinhos, na voz de Gilberto Gil:
Traga-me um copo d’água, tenho sede
E esta sede pode me matar
Minha garganta pede um copo d’água
E os meus olhos pedem teu olhar.
Ou, ainda, como no samba de Luiz Américo e Braguinha, na voz de Clementina de Jesus:
Na hora da sede você pensa em mim
Pois eu sou o seu copo d’água
Sou eu que mato a sua sede
Sou eu que lavo a sua mágoa.
Por fim, existem as visões impressionistas sobre o Planeta Água. Há 130 anos, o poeta Castro Alves teve um sonho; no poema “As trevas”, de Espumas flutuantes, ele narra:
Tive um sonho que em tudo não foi sonho!… […]
O mundo fez-se um vácuo.
A terra esplêndida,
Populosa tornou-se numa massa
Sem estações, sem árvores, sem erva,
Sem verdura, sem homens e sem vida,
Caos de morte, inanimada argila!
Calaram-se o Oceano, o rio, os lagos!
Antes dele, Shakespeare fez essa impressionante descrição do ciclo hidrológico:
Então os ventos, soprando para nós em vão,
Como por vingança sugaram do mar
Nevoeiros contagiosos que, caindo sobre a terra,
Fizeram rios caudalosos que de tão orgulhosos
Transbordaram seus continentes
São João, no Apocalipse, exorbitou:
E o primeiro anjo tocou a trombeta,
E formou-se uma chuva de granizo e fogo misturados com sangue, que foi atirada sobre a terra, e foi abrasada a terça parte da terra,
e foi queimada a terça parte das árvores,
e toda a erva verde.
Depois dessa, convém interromper a prosa.
1 Graças ao mestre Antonio Candido, ficamos sabendo da circunstância política do poema (In: Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993).
Extraordinário.
A partir de uma postagem do amigo Alexandre Ramos, passei a acompanhar o OUTRAS PALAVRAS. Obrigado ao amigo e aos editores