Psicanálise: Fazer justiça a Sándor Ferenczi

Principal interlocutor de Freud, húngaro cultivou estilo de análise empático e afetivo, mais afinado aos pacientes de hoje. Também insistiu na necessidade do cuidado com o próprio analista. Dossiê CULT introduz seu pensamento e trajetória

Em pé: Otto Rank, Karl Abraham, Max Eitingon, e Ernest Jones. Sentados: Sigmund Freud, Sándor Ferenczi e Hanns Sachs (Foto: Wellcome Collection)
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Por Daniel Kupermann para a Revista Cult

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> Este texto é parte da edição 284 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne o dossiê intitulado “Fazer justiça a Sándor Ferenczi”. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP


O leitor da Cult não deve se culpar por nunca ter escutado o nome do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi. Muitos analistas com anos de prática pouco sabem sobre esse pioneiro, principal interlocutor de Sigmund Freud, que o considerava seu “grão-vizir secreto”. E por interlocutor leia-se não um discípulo, um paciente ou mesmo um amigo e companheiro de viagens. Ferenczi foi tudo isso, mas foi principalmente aquele que provocava – no sentido etimológico do termo, “chamar adiante” – o pensamento de Freud.

E como é possível, perguntará o leitor, que um personagem tão importante da história do pensamento psicanalítico seja, ao mesmo tempo, tão ignorado? Ferenczi sofreu, efetivamente, uma verdadeira “morte pelo silêncio” (Todschweigen) a partir dos anos 1930 – seu falecimento foi em 1933 – que chegou ao ponto de promover verdadeiras alucinações negativas no campo psicanalítico: textos de Freud escritos em diálogo com Ferenczi são lidos sem que sequer se perceba o nome do húngaro citado pelo criador da psicanálise; o que dizer então da sua importância para o debate ali apresentado? É o caso, apenas para citar dois exemplos, de “Caminhos da terapia psicanalítica”, conferência originalmente pronunciada por Freud no Congresso de Budapeste (1918), recuperado atualmente pela sua referência inaugural à criação das clínicas públicas de psicanálise, e do célebre “Análise terminável e interminável” (1937), no qual Freud tece um diálogo com o ensaio “O problema do fim da análise”, publicado por Ferenczi nove anos antes.

Alguns fatores ajudam a compreender o seu evitamento durante décadas. Em primeiro lugar, Ferenczi desenvolveu um pensamento bastante autoral e crítico, sobretudo a partir da “virada de 1928” empreendida no pensamento psicanalítico, quando recupera a concepção de uma origem traumática do sofrimento psíquico e elabora um estilo clínico diferenciado, privilegiando a afetividade na relação analítica, o que foi bastante mal compreendido por seus pares. O húngaro recebeu o apelido de enfant terrible da psicanálise e foi o principal questionador do que Giselle Galdi chamou de “psicanalista teflon”, excessivamente “técnico”, distanciado e inacessível ao paciente, o que contribui para aumentar seu sentimento de abandono.

Ferenczi foi bastante exigente em relação à necessidade de aprofundamento requerido pela análise dos próprios analistas, de modo a desenvolverem a disponibilidade empática indispensável para se colocarem diante do sofrimento daqueles que os procuram, o que desagradou a ainda incipiente comunidade psicanalítica. Naquela época, eram poucos os analistas, sobretudo entre os pioneiros, que tiveram a oportunidade de se analisar devidamente. Finalmente, credita-se a Ernest Jones, maior responsável pela divulgação da psicanálise em língua inglesa e biógrafo de Freud, a versão de que Ferenczi sofria de uma perturbação psíquica que se deteriorou nos últimos anos de vida, levando-o a formulações equivocadas. É digno de nota que Jones deitou-se, a contragosto, no divã de Ferenczi – a quem nunca perdoou –, uma vez que Freud se recusou a analisá-lo.

Não obstante, a presença de Ferenczi na psicanálise brasileira não é exatamente recente, ainda que esteja sendo renovada com o intenso trabalho de divulgação – em eventos, lives, podcasts e livros – empreendido pelo jovem Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Essa mobilização só foi possível por haver, entre nós, uma tradição já consistente de estudos ferenczianos. A partir do final dos anos 1980, alguns psicanalistas, em sua maioria também professores universitários, dedicaram-se à tarefa de recuperar suas ideias. Joel Birman editou um volume, intitulado Escritos psicanalíticos 1909-1933, com alguns dos principais textos de Ferenczi traduzidos para o português antes mesmo da publicação das obras completas pela Martins Fontes. Chaim Katz organizou, com o grupo da Formação Freudiana do Rio de Janeiro, um evento e, depois, um livro, Ferenczi: história, teoria e técnica, dedicado às suas ideias. Teresa Pinheiro publicou Ferenczi: do grito à palavra, fruto do seu doutorado realizado na França. Em São Paulo, Renato Mezan e Luís Claudio Figueiredo se encarregaram de tornar a obra ferencziana presente nas pesquisas acadêmicas, e o psicanalista Roberto Azevedo organizou uma conferência internacional dedicada às suas contribuições. Na sequência, houve iniciativas importantes em outras capitais culturais, como Recife e Porto Alegre.

No movimento psicanalítico internacional, assiste-se ao que foi nomeado “renascimento de Ferenczi” a partir dos anos 1980, tendo como centros irradiadores a França e os Estados Unidos. Seus textos voltaram a ser lidos e suas ideias discutidas, mostrando-se indispensáveis para a compreensão dos sucessivos traumas que abatem as subjetividades na contemporaneidade e seu impacto na produção de sofrimento psíquico, para além das neuroses cartografadas por Freud. Há também em sua obra a indicação de um estilo clínico mais afinado às necessidades dos pacientes da nossa atualidade.

Este dossiê pretende fazer justiça a Sándor Ferenczi, apresentando algumas das principais perspectivas da sua obra ao leitor da Cult. Gustavo Dean-Gomes tece uma breve biografia do húngaro, destacando momentos significativos do seu percurso intelectual. Eugênio Canesin Dal Molin discorre sobre a noção ferencziana de trauma, centrando seu argumento no revelador conceito de identificação com o agressor. Eu me encarreguei de apresentar o estilo clínico empático, tão inspirador para os psicanalistas do século 21, desenvolvido por Ferenczi com base em sua experiência com o tratamento de sujeitos traumatizados. E Jô Gondar discute de que modo as concepções ferenczianas acerca da constituição subjetiva contribuem para as discussões contemporâneas sobre gênero.

Por último, e não menos importante, compartilho a confissão feita a mim por um jovem psicanalista, após descobrir a obra de Ferenczi: “Meus pacientes têm me dito repetidamente que eu mudei, que estou um analista diferente… na verdade, melhor! Mais próximo, disponível, e com uma escuta mais sensível”.


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