Polanski mostra como se forma cultura de ódio

Em O oficial e o espião, cineasta retrata famoso “caso Dreyfus”, no século XIX, e expõe engrenagens da intolerância de hoje. Para punirem judeu acusado de espionagem, poderosos corrompem Justiça e propagam mentiras e xenofobia

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Há quem veja o novo filme de Roman Polanski, O oficial e o espião, como uma peça enviesada de defesa do cineasta contra o linchamento virtual que tem sofrido mundo afora por causa das acusações de estupro (pelo menos uma comprovada) que pesam sobre ele. Assim como o capitão do exército francês Alfred Dreyfus, ele seria vítima de uma condenação injusta, baseada em falsas provas.

Caso se resumisse a isso, a obra seria frágil e só teria interesse para a Justiça, a psicanálise e as colunas de fofoca. Mas, a exemplo de Elia Kazan, que fez de Sindicato de ladrões (1954) muito mais que um “elogio da delação” para se justificar por ter dedurado colegas ao Comitê de Atividades Antiamericanas, Polanski é um grande artista e fez um belíssimo filme sobre… o mundo atual.

Sim, pois embora centrado no famoso “caso Dreyfus” – a história do capitão judeu condenado à prisão na ilha do Diabo no final do século 19 sob a acusação de ter passado segredos militares franceses aos alemães –, O oficial e o espião fala da realidade que nos cerca hoje, ou melhor, é uma leitura da história que realça as linhas de força que desembocaram no que estamos vendo à nossa volta: xenofobia, intolerância, exaltação de valores morais conservadores, patriotismo de fachada, cultura do ódio, manipulação dos sentimentos mais primários da população, fake news. E também resistência a tudo isso – a busca da verdade, o papel da imprensa livre e do pensamento independente, a força da palavra crítica.

Jornada de esclarecimento

O primeiro acerto de Polanski, baseado no romance histórico de seu co-roteirista Robert Harris, foi escolher como protagonista não o próprio Dreyfus (Louis Garrel), nem o escritor Émile Zola (André Marcon), autor do célebre libelo J’accuse, que ocasionou uma reviravolta no caso, e sim o tenente-coronel Jacques Picquart (Jean Dujardin). É Picquart que realiza uma acidentada jornada em direção ao esclarecimento – e leva o espectador junto com ele, graças aos sortilégios da narrativa cinematográfica clássica, que Polanski manuseia como poucos.

Inicialmente convencido da culpa de Dreyfus, Picquart começa a ver essa convicção abalada quando, promovido a chefe do departamento de inteligência do exército, depara-se com fragilidades e contradições no processo. Ele próprio, segundo confessa, “não gosta de judeus”, mas percebe aos poucos que o sentimento antissemita amplamente difundido no país pode ter influenciado na manipulação das evidências para incriminar o capitão.

Não cabe descrever aqui o passo a passo desse itinerário, mas apenas chamar a atenção para a habilidade com que Polanski, usando códigos do filme de detetive e do drama de tribunal, confere aos acontecimentos um sentido histórico que transcende seu contexto imediato. O exemplo mais evidente é o momento em que, depois da publicação do panfleto de Zola pelo diário L’Aurore, exemplares do jornal são queimados numa enorme fogueira em praça pública e, na fúria antissemita da multidão, pedras são atiradas contra os vidros da redação. É impossível não pensar imediatamente na barbárie nazista que viria algumas décadas depois.

Em outra cena, agonizando de sífilis numa cama, o velho coronel que antecedeu Picquart na Inteligência diz que “a França está sendo destruída por essa invasão de estrangeiros”, discurso cujos ecos temos ouvido hoje em tantos países.

A argúcia de Polanski está em fazer aflorar os temas de modo sutil e “natural”, isto é, inseridos na lógica do relato e sem a estridência da denúncia ou o didatismo da aula. Não é preciso pronunciar a palavra “homofobia”, por exemplo, para deixar claro o que ela designa no diálogo entre Picquard e o general que o sabatina para uma promoção. Diz o general: “Você não é casado. Algum motivo especial para isso? Algo que possa ser usado como chantagem contra você?”

Arte do cinema

Polanski não faz história ilustrada nem teatro filmado: faz cinema. Constrói seu relato com as ferramentas específicas de sua arte, desde a magnífica cena de abertura, a da expulsão e humilhação pública de Dreyfus, que começa com um longo plano aberto do pátio militar, com os batalhões em formação, e termina com as armas e divisas do capitão no chão empoeirado.

Quando Dreyfus é encarcerado na ilha do Diabo, da janela de sua cela vemos o mar. Num contraplano, vê-se a ilha, a princípio de perto. Depois, em três planos cada vez mais distantes e abertos, a ilha vai sumindo no horizonte. Quantas ideias e sensações se constroem nesses poucos segundos silenciosos: isolamento, distância, solidão, esquecimento.

Por fim, o antissemitismo, que pode ser visto como metonímia da intolerância em geral. No filme, os preconceitos pessoais e sociais interferem não só na Justiça, mas também na ciência e na tecnologia, conforme fica claro na atuação do grafologista forense Bertillon (Mathieu Amalric), que “prova” a autenticidade do bilhete incriminador de Dreyfus. Munido dos equipamentos e técnicas mais avançados de sua época, ele no entanto se deixa cegar por seu antissemitismo.

Todavia, indica o filme, o preconceito pode ser combatido, não apenas socialmente, mas dentro de cada indivíduo. Picquart reconhece de cara sua antipatia pelos judeus, mas tem uma aversão maior ainda à injustiça, e é isso que lhe permite confrontar a condenação de Dreyfus, mesmo assumindo todos os riscos. É um personagem contraditório, em crise, que talvez não coubesse no maniqueísmo básico dos dramas hollywoodianos ou nas séries convencionais de TV. Mas cabe na vida e no grande cinema de Roman Polanski.

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