Das feiras no Agreste para o mundo

Mestre da cultura popular nordestina, J. Borges criou o Museu da Xilogravura e tem trabalho até no Louvre. Aos 84 anos, após tragédias pessoais e ter “morrido por 3 horas”, só quer retratar alegrias — como as do Carnaval e do São João

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Em uma tarde quente de quarta-feira, José entra de camisa vermelha, chapéu e muleta em uma casa grande na Cohab da cidade de Bezerros, situada a 100 km de Recife. Ele passa pelo salão principal e se dirige a uma sala ampla, povoada de pássaros, cactos, sois, bois voadores, dragões, pessoas e alguns santos. De carnaval a São João, o sertão nordestino transborda na sala que abarca o mundo inteiro.

Borges então cumprimenta os presentes, senta-se em uma cadeira e pede para ver o desenho que seu cunhado, Dedé, começou a talhar na madeira. O senhor de 84 anos olha calmo para a obra ainda em nascimento, pergunta quando ela ficará pronta e dá algumas sugestões a Dedé.

Localizado na BR 232, o Museu da Xilogravura reúne obras de José Francisco Borges, um dos mais conhecidos gravuristas e cordelistas do Brasil. Nascido em Bezerros, o artista J. Borges atuou primeiramente como cordelista em feiras de rua. Até que, por falta de gravura em seus escritos, começou a se arriscar no mundo da xilogravura – arte que o tornou famoso em todo o mundo.

Da pequena Bezerros para inúmeros museus e galerias de arte no Brasil e no mundo, J. Borges também ministrou aulas sobre xilogravura e cordel em países como a França, a Suíça e os Estados Unidos. Além disso, teve sua obra “Vida na Floresta” incluída no calendário de um encontro da Organização das Nações Unidas (ONU).

José Saramago, Eduardo Galeano e Ariano Suassuna (que se tornou amigo pessoal e padrinho artístico de Borges) foram alguns escritores que tiveram as gravuras do mestre pernambucano publicadas em seus livros.

Imagem: Alessandra Goes Alves

As homenagens a Borges tem longa data. Em 2020, ele foi o homenageado pelo Galo da Madrugada, maior bloco de carnaval do planeta, que trouxe em seu cortejo o tema “Xilogravuras no Cordel do Frevo”.

Infância

Nascido em Bezerros, no Agreste pernambucano, José cresceu em um sítio, onde trabalhou na roça junto à sua família durante a infância. Ainda menino, frequentou a escola apenas por dez meses, pois a escola parou de funcionar após o único professor da instituição se mudar para a capital pernambucana. 

Esse foi o primeiro episódio que desenvolveu o autodidatismo de Borges que, além de ler, aprendeu sozinho a escrever, desenhar e talhar em madeira. Como na época era muito caro comprar livros, ainda menino ele lia revistas velhas e o jornal que embrulhava sabão e pacotes de doces. “Eu lia tudo o que vinha pela frente”, lembra.

Sem cadernos, ele trocava o lápis por carvão e o papel por pedra. “Era uma pobreza muito grande, não tinha material para a gente usar”. Em sua casa, o pai era o único que sabia ler, mas o trabalho na roça não lhe deixava tempo para ensinar os nove filhos a decifrar as letras.

Borges ficou em Bezerros até os 17 anos, quando a seca obrigou ele e sua família a migrar para a Zona da Mata pernambucana. Após 15 anos, ele retorna já casado para sua cidade natal, onde mora há mais de 50 anos. “Aqui era mais viável para o meu trabalho, a cidade tinha feira quase todos os dias”, explica o artista .

O mundo do cordel

Imagem: Alessandra Goes Alves

A entrada de Borges no mundo da xilogravura se deu a partir do cordel. Apreciador dessa literatura, ele ouvia as histórias contadas pelo cordel ainda criança, no sítio onde a família morava. “Ali não tinha rádio nem TV nem cinema nem nada. Só tinha cordel. A gente lia 2 ou 3 histórias antes de dormir. Me apaixonei.”

A partir daí, ele começou a comprar e vender cordel. E, aos 21 anos, escreveu um. “Mostrei para um amigo. Ele gostou, mas eu não tinha dinheiro para fazer um milheiro (mil cópias), que custava uns 500 cruzeiros.” O amigo então emprestou metade do dinheiro e disse para Borges devolvê-lo após a impressão. “Vendi rápido e parti para escrever outro”, conta.

Mas, diferentemente do primeiro cordel, Borges não tinha nenhuma gravura emprestada para o segundo. A falta de dinheiro para comprar uma gravura foi o que o fez adentrar o mundo da xilogravura. “Peguei a madeira, risquei e cortei, fui fazendo todos os detalhes. Levei para a gráfica, eles imprimiram e vendi rápido. Do terceiro cordel em diante, não pensei mais e comecei a fazer as gravuras.”

Você sabe quem escreveu esse livro?”

Os muitos cordelistas que circulavam na década de 1970 se tornaram os primeiros clientes de Borges, que cobrava 5 cruzeiros por cada gravura. Com o tempo, ele foi aperfeiçoando o seu desenho e o corte na madeira. “Até que chegou ao ponto de vir gente do Rio de Janeiro e fazer encomendas para galerias de arte na cidade”, lembra ele.

Foi em galerias de arte do Rio de Janeiro que o trabalho de Borges ficou conhecido pelo escritor e teatrólogo Ariano Suassuna. “Ele viu o meu trabalho e perguntou quem era o fera que tinha feito aquilo. Ele estava muito precavido por causa da ditadura, mas disse que queria me conhecer”, conta Borges, sorrindo.

Na época, Suassuna trabalhava na reitoria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde recebeu Borges. Na conversa, o escritor perguntou se o xilogravurista conhecia o livro “A Pedra do Reino” e se sabia quem o tinha escrito. “Eu respondi que não, que e vinha do interior e não tinha o hábito de ler livro.”

Suassuna então contou ser o autor do livro e mostrou um exemplar para Borges e disse que ele havia escrito. Ele disse que parecia que eu tinha lido, porque uma das minhas gravuras (“Caçador de Onça) mostrava exatamente uma das cenas do livro”, conta.

Suassuna então publicou uma gravura de Borges nesse livro, fazendo nascer a parceria (artística e pessoal) que marcou vida de ambos. “Dei entrevista a um canal de televisão na terça-feira. No sábado, já tinha um monte de gente na minha porta, querendo comprar o meu trabalho. Nunca mais tive sossego.”

Das feiras de Bezerros para o Museu do Louvre

Se nos anos 50 o cordel era chamado de “coisa de preguiçoso e vagabundo, hoje essa literatura ganha cada vez mais espaço e reconhecimento em escolas e universidades. “Muita gente boa saiu porque existia preconceito. Mas eu bati na tecla de que eu não estava fazendo nada de errado.” Por 20 anos, J. Borges trabalhou como ambulante, vendendo cordel. “Tenho saudades dessa fase até hoje. Dos lugares que conheci, dos amigos que fiz, das namoradas que arranjei”, conta.

“Toda a vida, o cordel ensinou. É ilustração, instrução, diversão e jornalismo, porque informava o que acontecia no sertão. Hoje, ele ensina os professores e intelectuais. O cordel nunca cai, é uma miscelânea”, avalia Borges.

Se antes de vender cordel ele já havia trabalhado como pedreiro, carpinteiro, marceneiro, pintor de casa e ido para a lavoura de cana, foi com essa literatura que Borges aprendeu a viver tranquilo, perdoar e defender aquilo em que ele acredita. “Nas feiras, às vezes tinha gente que vinha pra brigar. O cordel me ensinou a passar de lado pelo ruim, a ter paciência para deixar essas pessoas passarem. Isso aconteceu muito na minha vida social, artística e pessoal”, conta o artista, com a prosa poética do Agreste.

Após o apadrinhamento de Suassuna, que considerava Borges um mestre da cultura popular nordestina, a obra do artista conquistou novas galerias no Brasil e no mundo. Suas xilogravura atravessaram fronteiras e chegaram a dividir espaço no Museu do Louvre, um dos maiores do mundo, com artistas como Leonardo da Vinci e Renoir.

Museu da Xilogravura

Imagem: Alessandra Goes Alves

Criado em 2003, o Museu da Xilogravura – Memorial J. Borges reúne inúmeras obras do artista. Além dos cordéis escritos por Borges, cerâmicas, camisetas, canecas e quadros, o museu abriga matrizes em madeira que servem de base para as gravuras que são impressas no papel.

Nos fundos do museu, existe uma área destinada à oficina de carpintaria e ao depósito de madeira. Os visitantes podem ver cada uma das etapas de produção das xilogravura – desde a confecção do desenho na Madeira, o seu corte, a pintura da matriz, a impressão no papel e os retoques com tinta que dão o acabamento final à gravura.

O trabalho de Borges não é solitário, o que fica evidente pela quantidade de mesas, cadeiras, pincéis e potes de tinta presentes na oficina. Alguns de seus filhos também tem obras autorais expostas no Museu, como é o caso de Pablo Borges.

Além dele, o museu tinha pelo menos seis pessoas trabalhando na confecção de novas peças no dia em que foi visitado pra reportagem. Além da oficina, o museu também tem uma loja com peças para venda. Antes de entregar gravuras compradas por visitantes, Borges assina cada uma delas com lápis.

(Des)encontros com a morte

Imagem: Alessandra Goes Alves

Entre os temas mais retratados na obra de Borges, está a vida cotidiana dos sertanejos, a fauna e a flora da caatinga, além de festas populares como o carnaval, o bumba meu boi, a ciranda e a Folia de Reis. Embora seja outra temática recorrente na região, que ainda conta com a presença de carpideiras, a morte não dá as caras na obra de Borges.

Atravessar um tumor e um enfarto não foram doloridos como a experiência de enterrar cinco filhos crescidos. O último deles faleceu em 2018, em decorrência de um enfarto, aos 49 anos. “Não faço mais xilogravuras sobre a morte, parece que ofendi ela. O pai enterrar um filho é a pior dor do mundo. Quase endoideci”, conta, com o olhar sombreado e a fisionomia séria.

Borges não aguentou e saiu do velório do filho após ver duas cenas: a camiseta do Náutico sobre o caixão e as unhas do filho com pingos de tinta azul e amarela. “Ele morreu trabalhando, pintando uma madeira com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Quando vi aquilo, me senti muito triste e revoltado. Precisei sair e só voltei para o enterro.”

Outro (des)encontro de Borges com a morte aconteceu após uma cirurgia no joelho. Ao acordar do pós-operatório, uma das enfermeiras contou a Borges que ele havia passado três horas morto, sem batimentos cardíacos. “Ela disse que eu estava lá, morto, quando um médico passou e disse que eu não tinha morrido. Aí eles deram uma balançada no meu peito e o meu coração disparou”, diz, rindo, em referência à massagem cardíaca.

Aos 84 anos, Borges diz com tranquilidade que não tem medo de morrer. “Já morri uma vez, tenho experiência”, diz, rindo. “Não tenho medo, porque a morte é natural. Eu tenho medo é de sofrer e fazer meus familiares sofrerem”, afirma, fitando sério os olhos da repórter.

Dono de uma boa prosa, o xilogravurista conta que só não pode cumprir uma recomendação. “Só não quero que o médico me proíba de beber whisky e minha cervejinha, porque daí eu morro mais rápido”, ri o matuto.

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