Os Condenados: sétimo trecho da trilogia de Oswald
“Na desvairada Pauliceia, carroças rodando nos viadutos, silhuetados em aço pelos relâmpagos curtos… Silêncio! Um homem vai morrer, voluntariamente, vitoriosamente…”
Publicado 06/07/2014 às 10:32 - Atualizado 15/01/2019 às 17:39
“E na desvairada Pauliceia, as carroças rodando nos viadutos, silhuetados em aço pelos relâmpagos curtos… Silêncio! Um homem vai morrer, voluntariamente, vitoriosamente…”
Por Oswald de Andrade | Imagem Gregório Gruber
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No âmbito da série “Oswald 60″, Outras Palavras publica semanalmente, em formato de folhetim, a trilogia “Os Condenados”, obra perturbadora que Oswald de Andrade escreveu entre 1922 e 1934. Acesse aqui os capítulos já publicados.
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Na sequência anterior, Alma vive uma felicidade. O filho conhece outra vida na casa rica. A jovem se encontrara com Mauro. Ele lhe fala das mulheres, ela da vida de safiras. Uma curiosidade joga um para o outro. Uma tarde, o engenheiro, avisado, chega quando o cáften sai. Numa cena dilacerante, faz a amante confessar e expulsa-a. Ela sai num desespero. Volta a se prostituir e sente-se castigada. Recorda o telegrafista dedicado, o cãozinho morto, o sobrado trágico, onde fora feliz. O filho adoece gravemente. Tempos depois, a criança morre. A costureira cobra-lhe a roupa que fizera para Luquinhas. Alma acompanha procissão do Cristo morto e compara a sua própria condição à de Maria. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60”)
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As lágrimas desciam silenciosas à vista das roupinhas empilhadas, na gaveta que D. Genoveva lhe dera.
Quando outra mãe, feliz, descuidosa, passava com a sua criança viva, tinha um choque no coração.
E nas horas do recomeçado trabalho, na sala escura, onde com ele brincava tanto, vinha-lhe à cabeça flamejante, uma pena imensa e quieta.
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Aos domingos, partia cedo de bonde, levando lios de margaridas brancas e saudades, compradas na feira da véspera. E achava uma injustiça ele estar ali, debaixo da terra, do cemitério suburbano, ao canto litúrgico das árvores, enquanto os outros meninos corriam e brincavam ao claro sol.
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Soube, num cinema, que Mauro Glade estava preso.
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Com os cabelos corridos, a cabeça martirizada para o alto, João do Carmo transmitia telegramas. Mais de um ano se tinha passado sobre a sua derrota. E ele amava-a sempre.
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No início, a mão gelada de um grande torpor tocara tudo, emudecera tudo. As suas ações automáticas passaram a refletir um desvio que ele controlava com pena.
Rondou, durante meses, o bungalow das Perdizes. A casa permanecia sempre escura. Como se não fosse para vê-la, ia postar-se demoradamente a uma esquina. Numa imobilidade de espírito e de gestos, pressentia-a às vezes num chegar ruidoso de automóvel.
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O coração afinal não se lhe apertou tanto como antes. Mas, em torno dele, tudo morrera pouco a pouco, ou se envenenara ou se trocara. Era um cemitério, o bairro, o clube aquático e o emprego, com os seres inexpressivos, inexistentes que lhe falavam.
Os dias vinham às vezes, pálidos, encontrá-lo chorando de olhos salsos.
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Voltava espaçadamente a nadar no rio.
E sabia de tudo – o regresso de Mauro, a briga irritada do engenheiro, a morte imprevista de Luquinhas.
Dez vezes, quisera ofertar-se, correr, erguê-la. Um obstinado plano de salvamento formara-se-lhe no íntimo, vivia-lhe no coração.
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A tarde baixara sobre a cidade um incomensurável ocaso preto. E ele pensou definitivamente em emprestar o revólver policial de Dagoberto Lessa.
Chamaram-no ao telefone. A voz angustiada de Frederico Carlos Lobão esganiçou-se. Disse-lhe que tinha visto Alma, fatal como a Esfinge de Édipo.
– Falou com você?
– Falou. Perguntou pelo teu amor…
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Encaminhou-se para o bar pitoresco do Braz, onde na parede se recortava, em roxo-batata, a Estação da Luz.
E foi sentindo baixar pelas ruas o áureo ocaso negro da cidade, reposta num equilíbrio grandioso de linhas e de cúpulas.
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Na solidão amiga do quarto pobre, onde se tinham tanto prometido, ele levantara-se. Aproximou-se e, dissimulando mal um carinho grato, tomou-a pelos ombros palpitantes.
Demoraram-se assim, na expectativa de qualquer coisa imensa e nova. E os lábios encontraram-se incertos, violentos, terríveis.
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–Faze olhos grandes!
Na penumbra, Alma escancarou as alvas, moldura para as pupilas verdes de veludo e cristal.
As narinas fremiram.
E, numa mobilidade de puzzle imprevisto, a máscara cascateou um riso desigual com altos e baixos de animalidade lasciva, os dentes brancos e perfeitos engastados até o fundo nas gengivas sadias.
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Descobriram um ninho de duas saletas na Rua de São Caetano. Um trânsito ininterrupto de carroças barulhava.
Na área fechada da casa, havia duas araras ornamentais e inquietas.
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Ele ia jantar só, pela última vez. Uma psicologia tenebrosa de noivo empalava-o. Tudo estava de parabéns: as árvores, as casas, as gentes. Sentia que ia fazer uma grande coisa, uma grave coisa.
A cidade tremeluziu nas primeiras luzes. E sobre ele desceu a noite de festivas lanternas.
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Deixava o velho aposento de solteiro. Descera Baudelaire da parede.
Um delírio tomou-o na noite de pressentimentos e de glória. A cabeça destampara-se-lhe. E, pela fresta aberta, fugiam tropéis pensativos – a mobília, ela, a mobília…
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Tatearam-se, procurando reconhecer, um no outro, velhas eleições.
As araras decorativas punham gritos finais nos dias morrentes.
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Nas noites apagadas do leito, ele começou a sentir que a castidade de Alma gastara-se como a sua saúde inicial. No contágio canalha dos homens, ela se tinha desmoralizado pouco a pouco.
Um gesto, uma frase, repunham-no no calvário passado. E não se sabiam dar a prometida festa do amor.
Acordavam às clarinadas dos quartéis. A ambos, o quarto e a vida pareciam estranhos.
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João perscrutava a desolação do seu paraíso atingido. Alma tinha uma tirania de hábitos, opostos aos seus medíocres contentamentos. Pensava no filho e no automóvel verde que perdera.
Nas noites contrafeitas, ele saía ao seu lado, para ir ouvir, no escuro, a chorosa festa das valsas de cinema.
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Ao passar o portão, na volta do emprego, afligia-se numa pouca segurança. Aquele ambiente improvisado, onde os seus livros e as suas pequenas coisas punham uma nota solitária, não o sentia seu.
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Horrorizou-se nele o sonho pertinaz.
E Camila Maia, numa reaparição, levou-a de novo, oferecendo-lhe perigosos vestidos.
Era uma presença inquietante, molesta, a desse ser de pequenino sorriso, que não partilhava das suas obscuras angústias.
Quis protestar. Alma perguntou-lhe quantos presentes lhe tinha dado.
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Passou a sonhar diante das liquidações.
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Percebia desoladamente que ela não era a mulher que tinha amado.
Voltou a procurar Frederico Carlos Lobão que lembrava, numa triste gordura, a sua portuguesa cataclísmica. Ela voltara para o trair de novo.
Nos passeios longos de bonde, pela noite à toa, igualados na importância que davam às minúcias heroicas das próprias batalhas inglórias, indagavam se era possível que na vida não houvesse para eles os poemas consolantes.
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E inventavam o passado:
– Ela, uma vez, me disse… E eu disse…
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Ia lendo um livro. Esbarrou a uma esquina com Dagoberto Lessa. E o venenoso homem calvo, apossando-se dele, como de uma presa perdida, lançou-o num báratro de dúvidas e revoltas.
Contou-lhe, sob palavra de honra, que ela tinha outro amante, a cidade toda sabia…
Andaram vagarosos na tarde confidente, parando, prosseguindo. Dagoberto era uma vocação exercitada de bombeiro do amor. Sentia-se aparelhado de escadas, de cordas, de mangueiras.
O outro escutava-o como uma criança. Precisava deixar aquela Lucrécia Borgia.
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Sofria muito. Decidiu-se covardemente. Não voltaria à casa aquela tarde. Estava ao lado de Lobão que fora chamado. Ficaria com ele. Era o seu leal amigo. Vinha-lhe uma irreprimível vontade de chorar.
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Solenemente seco, Dagoberto partiu para separá-los. Alma fê-lo sentar, indiferente. E soube que João a abandonava com todos os móveis, retirando apenas os livros, a mala e os objetos íntimos.
Camila apareceu de repente, radiosa, com um chapéu claro, num vestido azul de franja de seda. E interveio, irônica e violenta, longe daquela humilde aventura. Trouxas eram as mulheres! Alma, um suco, nas mãos daquele miqueado!
Dagoberto, enfiada a dolorosa carapuça, retesou-se rapidamente de ódio, de venenos.
A mulher petulante, decidida, imprevista, achava grosseiro o procedimento do amante e mais ainda o do novidadeiro.
Num arrebatamento de discurso, ele levantara-se. Repeliu sonoro. Classificou as mulheres. E, furioso ante a inesgotável arrogância da contendora elegante, gritou, num supremo argumento, que era da polícia, que prenderia as duas…
Alma continha o seu ódio fulgurante a um canto.
Camila apostrofou-o num esganiçado grito:
– Indecente! Secreta! Sai azar!
Ele teve uma rabanada heroica da capa espanhola:
– Prontuariada! Eu te conheço…
Alma estalara em lágrimas nervosas, intervindo.
– Saia daqui!
Ele rodou os degraus numa fúria, os dedos de estrangulamento.
E berrou da calçada:
– Vá para uma pensão! Role na esterqueira! Role!
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Na inconsciência da noite longa, no barzinho eleito do Braz, João e Frederico Carlos, no confessionário dos copos, disseram mal de Dagoberto.
Era um estraga-tudo irrequieto, que pairava numa suspensa ironia, sobre a beleza dos seus vivos sentimentos, sobre a credulidade e a força dos seus devotados corações.
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Ela era a sua vida, toda sua vida.
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A cidade noturna festejava São João. Havia fogueiras, rojões, estouros de bombas.
Num remorso, o seu coração fagulhava como os pobres fogos da cidade, trêmulos e curtos.
Reataria. Talvez fosse tudo mentira. Sentia que devia reatar.
Apenas, na reconciliação dolorosa, imporia condições novas de vida. Camila não voltaria a frequentá-los.
Tomou rapidamente um bonde, para passar por lá. Talvez a visse. Talvez se falassem…
O seu coração fagulhava como os pobres fogos da cidade, trêmulos e curtos.
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Imporia condições. A vida de ambos…
Seria ela?… Por uma divisão do tosco caramanchel, no Jardim Público, onde a esperava sem que Dagoberto soubesse, viu-a caminhar por uma aleia, elegante, sólida e simples, num vestido claro de Camila, a gola alta, um feltro branco de onde despencavam cerejas enormes. Como estava magra, o rosto severo e abatido.
E ante o seu orgulho flamejante, às primeiras palavras, ele sentiu o velho coração ceder.
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Na volta para o quarto, onde tinham tentado a jornada da felicidade, ela foi recordando a vida. E o homem grande e bom que a acompanhava, numa retornada ventura, comoveu-a.
Lá dentro, atirou-se para beijá-lo. Ele fugiu num ressentimento inesperado do coração ofendido.
Houve uma caçada de bocas.
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E, pelo dia adentro, interrogou-a sobre o calculado rival. Não houvera nada de grave.
– Nada de grave… dizes?
Ela pôs, nos lábios debonários, um sorriso evocativo de beijos.
O coração traído cortava-se num silêncio. Mas, súbito, Alma investiu, a boca terrível, de confessada:
– Tu és o único culpado. Encontrei um amor quente, louco… amor de menino… Não um esquisitão, como tu…
E disse ainda, de pé, na gola alta, que não queria o seu perdão se o não merecesse. A culpa das mulheres caírem era dos homens que não sabiam amar…
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Agora, nas noites longas, o outro deitava-se com eles, ao leito, interpondo no amor inaugurado o seu estranho corpo.
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Lobão que promovera o reatamento, contou tudo a Dagoberto.
A culpa era dos homens que não sabiam amar.
Mas ele venceria as complicações embaraçantes da sua psique doentia. Seria igual aos outros.
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Num deslumbramento, comprou para ela um chapéu cheio de peninhas e fitas numa loja esquiva. As peninhas vermelhas e verdes faiscaram na matinal luz, onde sinos brincavam. Embrulharam-no num vasto papel de seda.
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Mas a vida era uma tristonha desigualdade.
Não podia afastar a diabólica presença de Camila. Ela aparecia com vestidos estranhos, em peles, em fitas, e levava-a num risonho tumulto, dando-lhe écharpes modernas, luvas inteiriças de pelica.
Tinham marcado um encontro essa noite. Iriam dançar. Camila arranjara com Artur, sempre gingando e sorrindo pelas ruas, um convite para a festa mensal do Vitória Clube. De lá, iriam à sua garçonnière, na Rua da Boa Morte.
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Alma vestia-se numa auréola, rindo muito o seu riso desigual e lascivo, daquele amor macambúzio.
Sob o abat-jour, ouro e azul, o belo corpo numa camiseta transparente e curta, maxixava cantando:
– Tari-tari! Bem picadinho! Vou dançar…
João sentara-se pensando na impossibilidade de prolongar aquela vida.
Na íntima penumbra do peito, sentia correr-lhe um rio de tristezas atávicas, inexpressivo, surdo e tenebroso.
Pensava na sua incapacidade invencível para as festas da terra. Seus pais nunca haviam maxixado, nem seu irmão padre, nem sua irmã louca, pobre Ofélia sem Hamlet…
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Ah! Coração enganado! Coração enganado!
Alma prometera voltar à meia-noite. Eram quase duas horas e ele esperava ainda.
Deitou-se com a própria sombra, estirada na parede pálida do quarto, que tinha a janela aberta.
E ficou vendo a vida continuar.
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As duas letras que assinara, na anunciação do amor, venciam-se com dez dias de intervalos. O usurário grande, de fala fina, propôs-lhe que fizesse uma maior incluindo os juros. Aceitou a transação emprestando de um colega o dinheiro necessário.
E, no dia inimigo, percebeu que sua vida caminhava para um desastre.
Não atingira a finalidade procurada na longa expectativa do seu amor.
O desequilíbrio em que corriam os seus dias anunciava-lhe uma espécie de exame final, em que seria fatalmente reprovado.
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Não compreendia os gastos de Alma, a sua despesa crescente.
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Acordara tarde ao lado dela. E deixou-se ficar no quarto por arrumar. Queria falar-lhe, expor-lhe tudo, dizer-lhe a sua dor e a sua revolta.
Alma cantarolava um tango, num vestido inteiriço de lã, sobre sandálias altas. Dispunha objetos e móveis, num atarantado carinho. Iria no outro dia, com Camila e Artur, ao Alto da Serra.
Expulsou-o estouvadamente do leito. Ele vestiu-se.
Depois começou, tímido, incerto… Queria falar-lhe. Pediu-lhe que fossem ao Jardim da Luz. Ela repeliu a idéia. Falasse ali mesmo no quarto que precisava arranjar.
Ele pôs o chapéu e saiu só.
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Para dar-lhe roupa branca, tomou a máxima resolução de seus dias.
Ia desfazer-se da única lembrança materna que tinha. Era uma jóia antiga.
Esperou que Alma não estivesse. Foi ao fundo de sua velha mala. Procurou, desembrulhou cautelosamente. Derramou-se de uma flor de ouro um chuveiro de minúsculos diamantes. Uma emoção estrangulou-o de joelhos.
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Foi ao Monte de Socorro. Dariam, pela jóia, quinhentos, talvez seiscentos mil-réis…
Esperou que um dos cubículos abertos, onde uma mulher negociava, se desocupasse.
Um velhote enrugado veio tomar-lhe o objeto.
Levou-o sem exame, lançou-o a uma minúscula balança de precisão. Ia pesar o seu destino. Talvez colocasse no outro prato um grande meio quilo. Tomara cinqüenta gramas insignificantes. A balança virou. Ele pesava aquilo também…
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Nas tardes efusivas de sol, deixando de ir ao clube do rio, entrava desbordante, pedindo uma compensação, ao menos, para a sua existência desmantelada – o amor que ela lhe devia.
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Passou a esperar, diante de seus gestos incoerentes, com uma serenidade de suicida, que o destino o rebentasse num último choque.
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Não tinham mais contatos.
E ela, sentindo-o obstinado e estranho, começou a sofrer.
Resolveu contar-lhe que fora boa como ele e crédula e mais o que sabia do mundo e mais como os outros lhe haviam destroçado às risadas as últimas inocências.
Uma manhã, disse-lhe beijando-o, que não podia viver sem o seu amor.
À noite, voltaram-lhe as dores do mal antigo. Ele ficou acordado até três horas da madrugada, renovando-lhe compressas de água fria sobre o doloroso ventre.
O martírio acalmou-se. Estavam no escuro: João, sentado a uma cadeira, esperando, insone e humilde. Ela pediu-lhe que acendesse a luz. Ele obedeceu, sorrindo:
– Queres me ver…
E ela num carinho novo, disse:
– Não preciso de luz para te ver…
Ele então estremeceu, acordando para a vingadora felicidade que lhe sorria.
O seu coração estuou tão forte que não quis mais deixá-la. Passou a segui-la quando podia, de longe, nas ruas.
E viu-a uma tarde passear no Jardim Público com outro homem. Era um desconhecido, vigoroso e claro.
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Deixara de espioná-los, por entre árvores e moitas, numa canseira nervosa.
Voltou ao bar perdido do Braz.
No crepúsculo do bairro, velhos sujeitos dançantes entravam. Havia calças brancas e peliças suspeitas.
Reviu, na parede fronteira, a Estação da Luz.
Ao seu lado, o imenso orquestrão de campainhas guichava uma valsa. Era a alma vária e imprevista, desencontrada e musical do bairro pobre, onde a sua vida se destroçara.
O orquestrão calou-se. Ele leu insistentemente um reclamo num espelho.
Sentiu um desenlace descer. Tocavam-no dos últimos redutos da esperança. Não possuía mais nada, nunca possuíra nada. Um desconforto físico dobrava-o. Toda a sua finalidade fora aquela mulher. Amara-a numa teimosia épica, através de todos os reveses, de todas as lágrimas, de todos os desencontros. Acreditara sempre nela…
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Pagou a humilde despesa. Saiu pelas ruas escuras e frias.
Um nojo indizível envolvia-lhe os passos automáticos. Revia o caminho enganoso que trilhara. O sentimento de repulsa dominava-o, inflexível e definitivo. Não havia mais remédio, nunca houvera remédio para aquele amor…
A figura de Alma passou, demoníaca, num meio-dia de luz, os dentes perfeitos, engastados até o fundo nas gengivas de romã. As araras decorativas punham gritos finais nos dia morrentes…
Reagiu. Uma imperativa mão afastava-o de novos contatos, de novas explicações, de novas mentiras.
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Como? A molhada noite de relâmpagos apagados num instante… E a cidade armada em capela mortuária, com as carroças nos viadutos…
O labirinto de Creta só tinha uma saída, só uma porta. E na desvairada Paulicéia, as carroças rodando nos viadutos, silhuetados em aço pelos relâmpagos curtos… Silêncio! Um homem vai morrer, voluntariamente, vitoriosamente…
E as carroças nos viadutos…
Lá embaixo, um gato humano miou esfrangalhado.
Os embuçados que passam nas pontes a essas horas, espiaram.
Um relâmpago silhuetou em aço o viaduto e o suicida estendido e calado.
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Dez horas… onze horas… Alma quase dormia.
Jorge d’Alvelos, seu primo escultor, chegara da Europa. Reconhecera-o nos Correios, ouvindo-lhe o nome estranho que um outro dizia. Passeara com ele para contar-lhe a vida. Agora, apresentá-lo-ia a João… Que demora na noite… Ela quase dormia… Na distância, um cão ladrava: bau… bau… bau…
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Na manhã do Tietê, o clube de natação içou a sua bandeirola, triangular e vermelha, a meio-pau.
FIM
da primeira parte d’ Os Condenados
A seguir
II – A Estrela de Absinto
(Continua na próxima semana)