O pós-modernismo e este ar cínico que se respira
Os filósofos gregos aspiravam à verdade nua e crua. Mas o cinismo que os pós-modernos legarão às gerações futuras será a desconfiança geral e uma terrível propensão para ironizar e ridicularizar, sem nenhuma ambição de redimir
Publicado 17/01/2025 às 17:10 - Atualizado 17/01/2025 às 19:28
Por Alfons C. Salellas Bosch
Chegava ao teatro de costas e saia andando pela porta da frente. Peidava em público. Convidado para ir à casa de um homem rico, cuspiu-lhe na cara porque, como disse, não encontrou lugar mais adequado. Morava num barril e um dia Alexandre, o Grande, que o admirava, fez-lhe uma visita. Eu lhe concedo um desejo, lhe disse, e ele respondeu, saia da frente do meu sol que está me fazendo sombra. Com uma lanterna acesa em plena luz do dia, ele andava pela cidade dizendo no meio da multidão “Procuro um homem”. Mas o que ele procurava mesmo era alguém que estivesse acima das convenções sociais, dos caprichos da fortuna, capaz de viver de forma independente, de acordo com a sua própria natureza e, desta forma, ser feliz.
Os exemplos e anedotas sobre a vida de Diógenes de Sinope, a figura mais lendária do cinismo antigo, são muitos, mas o que, entre tantas histórias, se perde de vista é que, como todas as escolas e correntes de pensamento gregas, o cinismo foi nem mais nem menos que isso, uma proposta de felicidade. Uma alternativa desinibida, sarcástica e irreverente, sim, mas no seu objetivo final não se desviou nem um milímetro do que perseguiam as outras filosofias do seu tempo. Recomendou uma gaia ciência, um conhecimento alegre e insolente, em vista de uma sabedoria prática eficaz. “Não seja escravo de nada nem de ninguém do seu pequeno universo” foi a máxima a partir da qual o cínico se dedicou a quebrar uma após outra as máscaras da vida civilizada e a opor à hipocrisia dos bons costumes a vida do cachorro (cynós: “ cachorro” em grego). A sua vontade era estética – considerava a ética apenas uma modalidade de estilo – e aplicou-a à sua vida, que concebeu como um jogo. No cínico, o filósofo deixa de ser geômetra (Platão, Aristóteles…) para se tornar artista, cenógrafo e experimentador de novas formas de existência. Cada vida, uma obra de arte que não aceita cópias.
Antístenes, Diógenes, Crates e Hipparchia, Demônax… Para os cínicos só são livres aqueles que nada esperam e a quem nada assusta. Desesperar-se, então, isto é, deixar de esperar receber o significado das coisas nos mitos e nas ilusões metafísicas, que eles entendiam como instrumentos de domesticação humana, e responder apenas à sua própria norma. Portanto, não procurar em outro lugar, em qualquer transcendência alienante, o princípio que deve nortear a nossa ação. Crítico dos papéis que nos são atribuídos pela máquina social – familiar, profissional, política… –, o cinismo é um bom solvente para a maioria das ideologias, denunciadas como fábulas, consolações e distorções da história, mas isso não o isenta de um idealismo marcante que, a partir de certo ponto, acaba por trair a si mesmo. É, sem dúvida, o pai espiritual da Realpolitik, a política dos fatos consumados – a mais cínica de todas as políticas – e do individualismo capitalista neoliberal, que pretende que cada homem é uma ilha e se basta a si mesmo.
A diferença fundamental entre o cinismo clássico e o contemporâneo é que o primeiro, com todas as suas contradições, aspirava à verdade nua e crua para mostrá-la a quem não queria vê-la (a parresia de que falou Michel Foucault na sua última lição, em 1983), enquanto o segundo atua manipulando e ocultando a verdade para apresentá-la como mentira. O cinismo do nosso tempo baseia-se num desprezo pela bondade, numa desconfiança sistemática da honestidade e numa suspeita constante do altruísmo, se não numa negação direta da benevolência que outros possam expressar. Uma atitude geral em relação ao mundo e à vida caracterizada por um anti-idealismo deliberadamente provocativo – e, por vezes, estupidamente rude – através de um pretenso pseudo-realismo amoral, que descarta como ingênuo ou falso tudo o que pode conferir ao comportamento humano algum tipo de esplendor. Não precisa acrescentar que, ao contrário do passado, o cinismo de hoje só toma a felicidade como motivo de escárnio.
No final do seu livro A morte da verdade (Intrínseca, 2018), a crítica norte-americana Michiko Kakutani afirma que na década de 60, quando o pós-modernismo – a expressão artística, literária e filosófica da pós-modernidade – decolou, foi uma corrente antiautoritária que, através da ironia, se apresentou como um antídoto saudável para as velhas crenças e convenções rígidas, numa época em que o mundo parecia cada dia mais absurdo. Anexemos que, desde então, a derrubada não só de todas as tradições humanistas, mas também do humanismo tout court, pareceu a muitos uma grande ideia. Este anti-humanismo encontra sua fonte de inspiração – o que não significa que nele se defenda explicitamente – nas últimas páginas de As palavras e as coisas, o célebre ensaio da primeira fase de Foucault, publicado em 1966.
O escritor David Foster Wallace, que morreu em 2008, pensava que embora a ironia pós-moderna fosse uma poderosa ferramenta crítica para explodir tudo, o pós-modernismo era em si uma teoria destrutiva, boa para fazer faxina, mas excepcionalmente “inútil na construção de alternativas para substituir as hipocrisias que desmascara.” O pós-modernismo, continuou Wallace, propagou um cinismo que tornou os escritores mais relutantes em relação a valores considerados agora antigos como “sinceridade, originalidade, profundidade e integridade”. Protegeu “do escárnio o colecionador de escárnios” e, ademais, parabenizou-o por estar “acima da massa que ainda se apega a pretensões antiquadas”.
O pós-modernismo, como lembra Kakutani, também produziu obras genuínas e inovadoras como, por exemplo, A piada infinita (1996), do próprio David Foster Wallace, mas o legado pós-moderno para as gerações futuras terá sido, segundo o mesmo escritor, sarcasmo e cinismo, desconfiança geral e uma terrível propensão para ironizar e ridicularizar sem nenhuma ambição de redimir. Este beco sem saída é o que se infiltrou na nossa cultura e se tornou a nossa língua. “A ironia pós-moderna tornou-se o nosso meio ambiente”, escreveu Wallace, esse ar cínico que se respira, indiferente na melhor das hipóteses, hostil na pior, que só sabe ver cálculo e estratégia em tudo e em todos – o que em algumas sociedades levou à normalização do ódio – e cujo oposto não é a afetação e a ingenuidade, mas o respeito e a sensibilidade.