Melanie Klein e o direito de sentir
Psicanalista procurou entender as ambivalências afetivas e o desafio de dar lugar ao amor e ódio que sentimos. “A vida psíquica existe para lidar com a passagem do tempo”, afirmou. Revista Cult apresenta sua obra, no mês em que faria 140 anos
Publicado 15/03/2022 às 18:45 - Atualizado 23/12/2022 às 19:22
Por Elisa Maria de Ulhôa Cintra e Marina F. R. Ribeiro na Revista Cult
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> Este texto é parte da edição 279 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne um dossiê sobre a psicanalista austríaca Melanie Klein. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP
Melanie Klein é amplamente reconhecida como uma das mais importantes e originais sucessoras de Sigmund Freud. Por que Melanie Klein? E por que hoje?
“Pensar na transmissão do legado de Klein leva diretamente aos efeitos que seus escritos vêm produzindo e à infinidade de autores que a seguiram pelo mundo afora. Trata-se, pois, de uma obra seminal, cujas concepções contêm sementes de futuros pensamentos, suscitando, alimentando e criando uma posterioridade viva. Não há dúvidas de que o alcance de um autor se mede em sua posterioridade, em sua capacidade de nutrir o pensamento e suscitar novas formas de fazer terapêutico e compreensões conceituais”, conforme escrevemos em Por que Klein?.
Klein nos coloca diante do desafio de conviver com a complexidade de nossas emoções e de nossos estados mentais, do início ao fim de nossa vida. Observando seus próprios filhos e a si mesma no começo do século 20, percebeu nossa intensa turbulência afetiva: o que fazer com nosso amor e nosso ódio? Precisamos aprender a intimidade com a vida psíquica. Reconhecer a necessidade de sermos amados e compreendidos. Talvez seja isso o mais importante, o mais simples e o mais difícil de ser vivido; e é tão acalentador quando pode acontecer. Ser compreendido e sustentado em nossa turbulência e ambivalência afetiva é um bálsamo que nos humaniza.
Melanie nos brindou com uma referência diagnóstica simples e extremamente importante: uma criança que não brinca está adoecida, algo nela está em sofrimento. Hoje, é comum indicar uma criança para o processo analítico – essa foi uma contribuição fundamental dela para a psicanálise. Apresentamos aqui breves exemplos de pacientes infantis, e de que forma a análise lhes trouxe condições favoráveis para atravessar as angústias em que estamos imersos desde o início da vida. A vida psíquica é instável e nossos recursos para lidar com o sofrimento são frágeis.
Muitas perdas significativas desde o início da vida deixaram em Melanie Klein marcas profundas e a levaram a dar atenção às inevitáveis separações afetivas e à exigência do processo de luto em adultos e crianças. A partir disso ela criou a teoria da posição depressiva, que é a intuição genial de que a vida psíquica existe, fundamentalmente, para lidar com a passagem do tempo e com a transitoriedade de tudo, com a necessidade de deixar passar o passado e a exigência de recomeçar a investir novos amores e projetos.
Freud nos trouxe a constatação de que dentro de nós se movem forças inconscientes sem medida e sem controle racional, muito além de nossa ingênua crença na força da racionalidade humana. Não somos senhores de nossas próprias terras. Por sua vez, Klein completou a descoberta freudiana ao conceder direito de cidadania às angústias: nascemos imersos em um caos de emoções, que vão se organizando de forma gradativa em um amálgama extremamente complexo do encontro com o mundo e com nossos primeiros grandes amores – mãe e pai, ou qualquer outro nome dado aos que nos recebem no mundo. Chegamos desamparados, à deriva de sensações corporais, acometidos por intensas angústias; por mais bem acolhidos e amados que possamos ser, todo início é difícil e desafiador. Freud e Klein são dois autores do mal-estar humano, dos desafios intermináveis, das contínuas elaborações e sublimações que a vida exige, um enfrentamento inescapável da realidade, impermeável a nossos desejos.
Klein teve a ousadia de dizer que somos acometidos por sentimentos invejosos desde o início da vida. O que isso quer dizer? Que sonhamos com um estado de plenitude sem incômodos, sem frustração e sem dor e, ao mesmo tempo, imaginamos que alguém tem a posse desse estado e está roubando de nós esse Paraíso na Terra. Seria a mãe? O analista? O vizinho? O irmão? A pessoa pela qual nos apaixonamos? Quando somos tomados por inveja, sonhamos com o sentimento oceânico, um estado em que não há falta nem turbulência. Klein democratizou o sofrimento humano: todos nós somos em alguma medida invejosos, tudo é uma questão da intensidade dos sentimentos que predominam. Quando intensa, a inveja destrói o vínculo com os outros e consigo mesmo; é um sentimento que destrói o próprio psiquismo e nos impede de sentir alegria de viver e gratidão.
As oscilações são uma constante na mente humana; entristecemos, sentimos culpa, nos humanizamos ao perceber que fomos violentos, destrutivos, vorazes, invejosos. Da mesma forma que Asclépio, o médico ferido que aprendeu a curar, Melanie ensinou a arte humana da reparação, de cuidar das feridas da alma, em si e nos outros. A gratidão surge desse estado reflexivo, ciente de nossa fragilidade e desamparo e de que precisamos dos outros para sermos nós mesmos. Os vínculos nos constituem, com toda sua ambiguidade de emoções, amor e ódio sempre presentes.
A capacidade de ser grato a quem cuida e cuidou de nós – figuras parentais, irmãos, amigos ou analistas –, além de ser o melhor antídoto contra a inveja, ajuda-nos a fazer as pazes com a condição humana, cujo núcleo central é um estado de desamparo diante das realidades mais irredutíveis, como a falta, a perda e a morte.
Somos gratas à sra. Klein e a todos os analistas que, com seu legado, nos ajudam a oferecer o que há de mais precioso em uma análise: um processo de humanização que, uma vez iniciado, tende a se expandir cada vez mais; uma vida criativa, ainda que isso exija atravessar muita turbulência e muita ambiguidade.
Alguns colegas neste dossiê também participaram da Edição Melanie Klein – 100 anos, da revista Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (2021), e tiveram a gentileza de nos brindar com parte de seus textos. Agradecemos a eles e à revista e convidamos os leitores a conhecer os trabalhos em sua íntegra na publicação da SBPdePA.
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Elisa Maria de Ulhôa Cintra é psicanalista e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP
Marina F. R. Ribeiro é psicanalista e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP
Que terno o texto, muito bom conhecê-la a partir dessa ótica.
Obrigada pela apresentação de uma mulher brilhante que contribuiu nos primórdios da psicanálise, com um olhar mais humano para nossos sentimentos, as culpas, os medos, o abandono e principalmente as perdas que vivenciamos desde criança. Já quando saímos do útero materno deparamos a uma atmosfera completamente adversa que vai sendo tecida a contínuas laçadas de perdas, perdas de afetos até culminar no luto, inferindo aqui que seria a perda mais significativo pois atinge uma parte da nossa individualidade ou então daquilo que, racionalmente, conhecemos como “eu”.
Muito obrigada!
Texto fantástico e quanto falou comigo.
Sendo uma curiosa desta matéria ainda não tinha sentido o quando me faz falta.
Vou continuar a tentar entender e entender-me.
Gratidão
Belíssimo
Acabo de conhecer essa página… excelente texto!
Perfeita reflexão sobre Klein, mulher que rompeu todas as barreiras e fez uma revolução na análise com crianças. ?
Que abordagem maravilhosa essa sobre a vida e a obra de Melanie Klein.
Me impressiona a capacidade de observação sobre seus sentimentos e emoções, e a sensibilidade para considerar e comparar o sofrimento alheio pensando fora da caixa.
Como seres humanos, somos iguais em muitas coisas, mas isto não facilita ou justifica nivelar, algo como copiar e colar, qualquer definição ou diagnóstico comportamental ligando ou comparando uma pessoa a outra.
Fica muito mais fácil entender o nosso “eu” quando, antes, aprendemos a entender o “eu” dos nossos semelhantes.
O problema, na verdade, está na “exuberância” do nosso exacerbado egoísmo, como encontrei citado neste artigo, tão bem elaborado.
Quanto aprendizado em um texto tão curto, quantas janelas abertas para a luz.
Só não aprende sobre a vida quem não procura por ela.
Muitos brigado !!!
Que lindeza o texto referente a Melanie Klein, do direito ao sentir! Uma leitura que permite uma reflexão acalentadora sobre nossa condição humana e suas intempéries afetivas.
Agradecida pela oportunidade!
Excelente abordagem sobre essa Diva da Psicanálise! Em minha opinião, uma figura que muito nos ensina, sobre Psicanálise, até hoje!
Excelente abordagem sobre essa Diva da Psicanálise!
Sempre é um prazer ter um relacionamento ao conhecimento como o demonstrado aqui, fico feliz em observar minha fragilidade e compensação ao aprendizado para reverter estas fraquezas. Obrigado.