Cinema: Walter Hugo Khouri e seus fantasmas
Ao abraçar o realismo existencial, o cineasta foi acusado de alienado pelos cinemanovistas. Era o contrário: fez críticas refinadas ao homo paulistanus, burgueses que devoram aos outros e a si mesmos. Novo livro resgata sua obra, uma das mais pessoais (e controversas) do cinema nacional
Publicado 31/07/2025 às 16:28

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Livro também é cinema. Pelo menos é o caso do robusto volume O cinema de Walter Hugo Khouri, de Donny Correia, que está chegando às livrarias, editado pela renascida editora Cosac. Trata-se de um resgate crítico de uma das obras mais pessoais e controversas da cinematografia brasileira.
O paulistano Walter Hugo Khouri (1929-2003), filho de pai libanês e mãe descendente de italianos, começou a carreira como assistente na Companhia Vera Cruz, no início dos anos 1950, e nas cinco décadas seguintes escreveu e dirigiu duas dúzias de longas-metragens. Em alguns deles foi seu próprio produtor, em outros recorreu a produtores da Boca do Lixo e/ou a parceiros europeus.
O importante é que Khouri sempre fez, com as condições que tinha em mãos, os filmes que refletiam sua concepção de mundo e de cinema. Um cinema fortemente intimista, de preocupações existenciais, frequentemente acusado (sobretudo pelos cinema-novistas) de alienado, burguês, decalcado em Bergman e Antonioni.
Burguesia e alienação
O maior mérito do livro de Donny Correia, ao revisitar com atenção toda a filmografia de Khouri, é o de mostrar que seu cinema, ao menos em seus momentos mais altos, não é “alienado” ou “burguês”, e sim um mergulho na alienação da burguesia brasileira, em especial da paulistana.
Seu protagonista arquetípico, o abonado Marcelo Rondi, um falso alter ego do cineasta, vivido alternadamente nas telas por Paulo José, Fernando Amaral, Roberto Maya, Tarcísio Meira e Ben Gazzara, é um empresário paulistano com um verniz de refinamento intelectual, um individualismo feroz e uma relação basicamente predatória com as mulheres, eventualmente com um traço de homossexualidade reprimida.
O filme que fixa, de certo modo, os traços fundamentais desse homo paulistanus é a obra-prima Noite vazia (1964), ainda que esta seja anterior ao surgimento do personagem Marcelo (que só se daria em As amorosas, de 1968). Na longa jornada de dois amigos (Mário Benvenutti e Gabriele Tinti) noite paulistana adentro, acompanhados por duas prostitutas de luxo (Odete Lara e Norma Bengell), estão contidas em embrião as grandes inquietações de Khouri: a insatisfação existencial dos homens que “têm tudo”, as arestas do desejo sexual e da relação com as mulheres, a voracidade da metrópole que tudo devora.
Fiel a si mesmo
Senhor absoluto de seus meios de expressão, Khouri foi sempre fiel a si mesmo, ainda que ocasionalmente tenha sido levado a fazer concessões a produtores oportunistas, mas estas se resumiram a um pouco mais de nudez aqui e ali, à mudança eventual de um título (de O prisioneiro para O prisioneiro do sexo, por exemplo), a certos cartazes e slogans sensacionalistas.
Da análise exaustiva da filmografia de Khouri empreendida no livro ficaram de fora os filmes “de gênero” do diretor, como O anjo da noite (1974) e As filhas do fogo (1978), exercícios no campo do fantástico que, de acordo com Donny Correia, mereceriam um livro à parte.
No mais, a praia de Khouri é essencialmente o realismo psicológico/existencial, geralmente com poucos personagens se comendo (nos sentidos figurados do verbo) e se digladiando num único ambiente. Um cinema ao mesmo tempo autoral, econômico e refinado.
Um dos capítulos mais interessantes do livro é o que disseca o escândalo criado em torno de Amor, estranho amor (1982), em que Xuxa Meneghel, então uma modelo em início de carreira, conhecida apenas como “namorada do Pelé”, aparece numa cena de sexo com um menino. Entre as filmagens e o lançamento da obra em VHS, alguns anos depois, Xuxa havia se transformado numa estrela de programas infantis e tentou embargar a exibição do filme em qualquer meio. Hoje ela atribui a celeuma ao excesso de zelo de sua assessoria na época, e se diz orgulhosa do trabalho com o diretor.
Reabilitação tardia
Embora marginalizado pelo Cinema Novo nos anos 1960, Khouri foi sendo progressivamente “reabilitado” pelo movimento. Afinal, o próprio Glauber Rocha havia reverenciado seu talento e seu conhecimento técnico. No belo documentário Cinema Novo (2016), de Eryk Rocha (filho do homem), os primeiros filmes de Khouri ganham um espaço afetuoso e respeitoso. Uma compensação tardia, mas válida.
Em 1970, Khouri e seu irmão William produziram Pindorama, delírio tropicalista de Arnaldo Jabor, em seu primeiro longa-metragem de ficção. No final dos anos 1990 presenciei, por acaso, um encontro entre Khouri e Jabor, numa pré-estreia qualquer em São Paulo. Jabor relembrou: “Você [Khouri] apareceu um dia nas filmagens e me perguntou: ‘Você não vai rodar planos de cobertura?’ E eu respondi: ‘Que plano de cobertura o quê? Isso é caretice. O negócio é plano-sequência’. Semanas depois, na sala de montagem eu pensei: ‘O filho da puta do Khouri tinha razão. Não dá pra montar esta merda’.” Khouri se limitou a rir gostosamente. Por último e melhor.
Seria muito oportuno que o surgimento desse livro fundamental fosse acompanhado por uma mostra de filmes de Walter Hugo Khouri no cinema. Enquanto torcemos por isso, é possível encontrar alguns deles, de graça e em cópias razoáveis, no YouTube. É o caso, por exemplo, de Noite vazia, a melhor introdução possível ao universo estético e existencial do cineasta:
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